quinta-feira, 30 de julho de 2015
Os Lusíadas de Camões
CAMÕES E O CLASSICISMO PORTUGUÊS
O renascimento literário atingiu seu ápice
em Portugal, durante o período conhecido como Classicismo, entre 1527 e 1580. O
marco de seu início é
o retorno a Portugal do poeta Sá de Miranda, que passara anos estudando na Itália,
de onde traz as inovações dos poetas do Renascimento italiano, como o verso
decassílabo e as posturas amorosas do Doce stil nouvo. Mas
foi Luís de Camões, cuja vida se estende
exatamente durante este período, quem aperfeiçoou, na Língua
Portuguesa, as novas técnicas poéticas, criando poemas líricos
que rivalizam em perfeição formal com os de Petrarca e um poema épico,
Os
Lusíadas, que, à imitação de Homero e Virgílio,
traduz em verso toda a história do povo português e suas grandes conquistas,
tomando, como motivo central, a descoberta do caminho marítimo
para as Índias por Vasco da Gama em 1497/99.
Para cantar a história do povo português,
em Os Lusíadas, Camões
foi buscar na antiguidade clássica a forma adequada: o poema
épico, gênero poético
narrativo e grandiloquente, desenvolvido pelos poetas da antiguidade
para cantar a história de todo um povo. A Ilíada e a Odisseia, atribuídas
a Homero (Século VIII a. C), através da narração de episódios da Guerra de Tróia, contam as lendas e a história heroica
do povo grego. Já a Eneida, de Virgílio
(71 a 19 a.C.), através das aventuras do herói Enéas,
apresenta a história da fundação de Roma e as origens do povo romano.
Ao compor o maior monumento poético
da Língua Portuguesa, Os Lusíadas, publicado em 1572, Camões copia a estrutura narrativa
da Odisseia de Homero, assim como versos da
Eneida de Virgílio. Utiliza a estrofação em Oitava Rima, inventada pelo italiano Ariosto, que
consiste em estrofes de oito versos, rimadas sempre da mesma forma: abababcc. A
epopeia se compõe de 1102 dessas estrofes, ou
8816 versos, todos decassílabos, divididos em 10 cantos.
Os Lusíadas (1572)
DIVISÃO DA OBRA
O poema se organiza tradicionalmente em cinco
partes:
1. Proposição (Canto I, Estrofes 1 a 3)
Apresentação da matéria
a ser cantada: os feitos dos navegadores portugueses, em especial os da
esquadra de Vasco da Gama e a história do povo português.
2. Invocação (Canto I, Estrofes 4 e 5)
O poeta invoca o auxílio das musas do rio Tejo, as Tágides,
que irão inspirá-lo na composição da obra.
3. Dedicatória (Canto I, Estrofes 6 a 18)
O poema é dedicado ao rei Dom Sebastião,
visto como a esperança de propagação da fé católica e continuação das grandes conquistas
portuguesas por todo o mundo.
4. Narração (Canto I, Estrofe 19 a Canto X, Estrofe 144)
A matéria do poema em si. A viagem de
Vasco da Gama e as glórias da história heroica
portuguesa.
5. Epílogo (Canto X, Estrofes 145 a 156)
Grande lamento do poeta, que reclama o fato de sua “voz
rouca” não ser ouvida com mais atenção.
NARRAÇÃO
A narração consiste, portanto, na maior parte do poema. Inicia-se
"In Media Res", ou seja, em plena ação. Vasco da Gama e sua frota se
dirigem para o Cabo da Boa Esperança, com o intuito de alcançarem
a Índia pelo mar. Auxiliados pelos deuses Vênus
e Marte e perseguidos por Baco e Netuno, os heróis lusitanos passam por
diversas aventuras, sempre comprovando seu valor e fazendo prevalecer sua fé cristã. Ao pararem em Melinde, ao atingirem Calicute, ou
mesmo durante a viagem, os portugueses vão contando a história
dos feitos heroicos de seu povo. Completada a viagem, são
recompensados por Vênus com um momento de descanso e prazer na Ilha dos
Amores, verdadeiro paraíso natural que em muito lembra a imagem que então se
fazia do recém descoberto Brasil.
ESTRUTURA NARRATIVA
O poema se estrutura através de
uma narrativa principal, que apresenta a viagem da armada de Vasco da Gama. A
esse fio narrativo condutor é
incorporada inicialmente a
narração feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde, em que
conta a história de Portugal até a sua própria
viagem. Na voz do Gama, ouvem-se os feitos dos heróis
portugueses anteriores a ele, como Dom Nuno Álvares Pereira, o caso de amor
trágico de Inês de Castro, o relato de sua própria
partida, com o irado e premonitório discurso do Velho do Restelo e o episódio
do Gigante Adamastor, representação mítica
do Cabo da Boa Esperança.
Em seguida são acrescentadas as narrativas
feitas aos seus companheiros pelo marinheiro Veloso, que relata o episódio
dos Doze da Inglaterra. Por fim, já na Índia,
Paulo da Gama, irmão de Vasco, conta ainda outros feitos heroicos
portugueses ao Catual de Calicute.
A estrutura narrativa do poema é composta, portanto, por três narrativas remetendo à história de Portugal, interligadas pela narração da viagem de Vasco da Gama.
ECLETISMO RELIGIOSO
O poema apresenta um ecletismo
religioso bastante curioso. Mescla a mitologia greco-romana a um catolicismo
fervoroso. Protegidos pelos deuses, os portugueses procuram impor aos infiéis
mouros sua fé cristã. O português é visto por Camões como representante de toda a cultura ocidental,
batendo-se contra o inimigo oriental, o árabe não-cristão.
Todo esse fervor religioso não impede a utilização pelo
poeta do erotismo de cunho pagão,
como no episódio da Ilha dos Amores e seus defensores lusitanos são
protegidos, ao longo de todo o poema, por uma deusa pagã, Vênus.
É curioso notar que a imagem clássica
do deus romano Baco (o Dioniso dos gregos), amigo do vinho e do desregramento,
inimigo maior dos portugueses, é
a de um ser de chifres e rabo.
A mesma que foi utilizada pela igreja católica para representar o demônio.
EPISÓDIOS PRINCIPAIS
Diversos são os
episódios célebres de Os Lusíadas que merecem um olhar mais atento. Um deles é o da ilha dos Amores, (Canto IX, estrofes 68 a 95) em que a "Máquina do Mundo", com suas inúmeras profecias, é apresentada aos portugueses. Nessa passagem do final do poema
o plano mítico – dos deuses – e o histórico – dos homens – encontram-se: os portugueses são elevados simbolicamente à condição de deuses, pois só aos últimos
é permitido contemplar a “Máquina do Mundo”. Foi o episódio
da ilha dos Amores que inspirou o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade a
compor seu poema "A Máquina do Mundo".
Outro é o do Gigante Adamastor, (Canto V, estrofes 37 a 60), representação figurada do Cabo da Boa Esperança,
que simboliza os perigos e tormentas enfrentados pelos navegadores lusitanos no
caminho da Índia. Adamastor é o próprio
Cabo, que foi transformado em rocha pelo deus Peleu, como vingança
por ter seduzido sua esposa, a ninfa Tétis. Esse episódio
foi recriado por Fernando Pessoa (1888-1935) no poema "O Mostrengo" do livro Mensagem (1934):
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais
do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Abaixo temos a explicação, estrofe por estrofe, de dois episódios
fundamentais. O de Inês de Castro e o do Velho do Restelo.
Episódio de Inês de Castro
(Canto III, estrofes 118 a 135)
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
O rei Afonso voltou a Portugal,
depois da vitória contra os mouros, esperando obter tanta glória
na paz quanto obtivera na guerra. Então aconteceu o triste e memorável
caso da desventurada que foi rainha depois de ser morta, assassinada.
Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
O Amor, somente ele, foi quem
causou a morte de Inês, como se ela fosse uma inimiga. Dizem que o Amor
feroz, cruel, não se satisfaz com as lágrimas, com a tristeza, mas
exige, como um deus severo e despótico, banhar seus altares (“aras”) em
sangue humano: requer sacrifícios humanos.
A palavra "pérfido",
na obra, geralmente se refere aos Mouros inimigos. Nesse verso, parece indicar
que Inês foi morta com a mesma crueldade que se usava
contra eles.
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Inês estava em Coimbra, sossegada, usufruindo (“colhendo
doce fruito”) da felicidade ilusória (“engano
da alma, ledo e cego”) e breve (“Que a Fortuna não deixa
durar muito”) da juventude. Nos campos, com os belos olhos úmidos
de lágrimas de amor, repetia o nome do seu amado aos
montes (para cima, para o alto) e às ervas (para baixo, para o chão).
As formas "fruito" e
"enxuito" são variantes de “fruto” e “enxuto”. Durante muito tempo, enquanto
a Língua Portuguesa se solidificava, essas variantes
foram utilizadas simultaneamente. A Língua Portuguesa acabou por
definir "fruto" e "enxuto" como a forma culta. Na época
de Camões, palavras como despois, fruito, enxuito e escuito
eram as mais usadas. Ele, então, prefere estas formas para se adequar à estrutura poética de Os Lusíadas - a oitava rima -, formada
por versos decassílabos (heróicos ou sáficos),
e respeitar o sistema rítmico dos versos - abababcc. Portanto, fruito (verso
2) e enxuito (verso 6) são as rimas cabíveis a muito (verso 4). Estas
formas arcaicas ainda são utilizadas em muitas regiões.
Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
As lembranças do Príncipe
respondiam-lhe, em pensamentos e em sonhos, quando ele estava longe. Isto é, a
memória do amado fazia com que Inês conversasse
com ele, quando este estava ausente. Ambos não se esqueciam um do outro e se
“comunicavam” através da
memória, em forma de pensamentos e sonhos. Assim, tudo
quanto faziam ou viam os fazia felizes, porque lembravam dos respectivos
amados.
Esta estrofe é bastante ambígua.
As lembranças do Príncipe vinham à mente de Inês como resposta aos seus cuidados amorosos; por
outro lado, as mesmas lembranças, agora de Inês, existiam (moravam) na alma
do príncipe quando estava longe da amada. Os sonhos e os
pensamentos dos versos 5 e 6, dois modos de lembranças, pertencem
indistintamente ao amado e à
amada. E o sujeito de cuidava e
via, no verso 7, tanto pode ser ela quanto o Príncipe.
De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
O Príncipe
se recusa a casar com outras mulheres (tálamo: casamento, leito conjugal)
porque o amor despreza, rejeita tudo que não seja o rosto do amado (gesto significa
rosto, semblante) a quem está
sujeito. Ao ver este estranho
amor, este comportamento estranho de não querer se casar, o pai sisudo
(sério, grave) atende ao murmurar do povo e…
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo c’o sangue só da morte ladina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra hûa fraca dama delicada?
…decide
matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O
pai acredita que só o sangue da morte apagará o fogo do amor. Que fúria foi essa que fez com que a
espada cortante que afrontara o poder dos Mouros fosse levantada contra uma frágil
e indefesa mulher?
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
Quando os horríveis
e cruéis carrascos trouxeram Inês
perante o rei, este já estava compadecido (com dó) e
arrependido. No entanto, o povo persuadia, incitava o rei a matá-la.
Inês, então, com palavras ou com a voz
triste, sentindo mais pela dor e saudade do príncipe e dos filhos do que pela
própria morte…
Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:
Levantando os olhos cheios de lágrimas
ao céu (somente os olhos, porque um carrasco prendia-lhe
as mãos) e, depois, olhando para as crianças -
que amava tanto e temia que ficassem órfãs -,
disse para o avô cruel (o rei):
Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como c’o a mãe de Nino já mostraram,
E c’os irmãos que Roma edificaram:
“Se já
vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são
cruéis, e as aves de rapina têm
piedade com as crianças, como demostraram as histórias
da mãe de Nino e a dos fundadores de Roma…”
Semíramis,
rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num
monte. Nino foi alimentada por aves de rapina. Rômulo e Remo, fundadores de
Roma, foram abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.
Ó tu, que tens de humano
o gesto e o peito
(Se de humano é matar hûa donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Sendo assim, ele, o rei, que
tinha o rosto e o coração humanos (se é que é humano matar uma mulher só porque esta ama um homem que a
conquistou), poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda que não se
importasse com a triste morte da mãe. Inês
suplica, então, que o rei se compadeça dela
e das crianças, já que não
queria perdoá-la ou absolvê-la de uma culpa, um crime, que
não tinha cometido.
E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A quem peja perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
E se o rei sabia dar a morte,
como o mostrara ao vencer os Mouros, também saberia dar a vida a quem era
inocente. Mas, se apesar da sua inocência, ainda a quisesse
castigar, que a desterrasse, expulsasse, para uma região
gelada ou tórrida, para sempre.
Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, c’o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.)
Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia
encontrar a piedade que não achara entre os homens. Ali, por amor daquele por
quem morria ou sofria, criaria os filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da mãe.
Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra hûa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
O rei bondoso queria perdoar Inês,
comovido por suas palavras. Mas o povo obstinado, persistente e o destino de Inês
(que assim o quis) não lhe perdoaram. Os que proclamavam que ela deveria
morrer puxam suas espadas. Mostram-se valentes atacando uma dama.
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
C’o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos, com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha),
Na mísera mãe postos, que
endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:
Assim como Pirro se prepara com a espada (“ferro”)
para matar Policena, por ordem do fantasma de Aquiles, e ela - mansa e
serenamente -, movendo os olhos para a mãe, enlouquecida de dor,
oferece-se ao sacrifício…
Aquiles, herói da guerra de Tróia,
era invulnerável por ter sido submergido, logo ao nascer, na água
da lagoa Estígia (Lagoa da Morte). Personagem da Ilíada
de Homero, morreu durante a guerra de Tróia, quando foi atingido por uma
seta no calcanhar, o único ponto vulnerável do seu corpo. Pirro, filho
de Aquiles, teria sido aconselhado pelo fantasma (“sombra”) do
pai a matar Policena, noiva do herói morto. Matou-a quando esta se
encontrava sobre o túmulo de Aquiles.
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, fervidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
Do mesmo modo agem os cruéis
assassinos de Inês. No pescoço (“colo”)
que sustenta o belo rosto (“as obras”: o sorriso, o olhar, os
movimentos do rosto) pelo qual se apaixonou (o deus Amor, Cupido, fez morrer de
paixão) o príncipe, que depois a fará rainha, eles (os matadores) banham, lavam suas espadas e também as
faces pálidas (“brancas flores”) e
molhadas de lágrimas de Inês; atacavam enraivecidos, sem
pensarem no castigo que o futuro lhes reservava. Camões
supõe que Inês foi degolada, como Policena
oferecendo o pescoço ao golpe, e o sangue escorreu sobre seu rosto.
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.
Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como
fizera quando Tiestes comeu os próprios filhos em um banquete
servido por Atreu, para não ver o terrível crime. A última
palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe
- ecoou longa e repetidamente através da região.
Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e Tiestes. Tiestes era filho de Pélops
e irmão de Atreu. Seduziu a esposa do irmão.
Atreu deu a comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.
Como uma flor colhida
precocemente pelas mãos travessas (“lascivas”) de
uma menina para colocá-la numa grinalda (“capela”),
assim está Inês, sem perfume e sem cor. Morta, pálida,
com as faces (“do rosto as rosas”) secas, murchas, sem rubor. O padrão de
beleza feminino era uma combinação de branco na testa, colo, etc. (“branca
e viva cor” ) e vermelho (“viva cor”)
nas “rosas” do rosto.
As filhas do Mondego a
morte escura
Longo tempo chorando
memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que
inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte
rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.
As ninfas do Mondego (rio de
Portugal), durante muito tempo, lembraram chorando a morte de Inês.
E, para sua memória eterna, as lágrimas transformaram-se numa
fonte chamada “dos amores de Inês”, acontecidos ali. A fonte que
rega as flores é refrescante porque é feita de lágrimas
e de amores.
Episódio do Velho do Restelo
(Canto
IV, estrofes 90 a 104)
"Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!"—
Uma mãe
fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la
e cuidar dela na velhice, a está
abandonando para servir de
alimento aos peixes. O lamento das mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente justificado: a frota de Vasco da Gama deixou o cais
do Restelo com 170 homens, dos quais apenas 55 retornariam vivos a Portugal.
"Qual em cabelo:—"Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?"—
Outra mulher, com o cabelo
descoberto (“em cabelo”), pergunta ao marido, sem o
qual não poderá viver, o motivo de ele ir
arriscar a vida ao mar bravio, quando a vida dele pertence a ela, e não a
ele; e como ele pode esquecer ou trocar o sentimento deles pela incerteza dos
ventos e do mar. Será que ele deseja que o vento leve, com as velas da
embarcação, o seu amor? Note-se a aliteração final (Velas leVe o Vento) que imita o som do Vento.
"Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
Com estas e outras palavras de
amor e de piedade, os velhos e as crianças, a quem a idade faz mais
fracos, os seguiam. E os montes, como se estivessem comovidos, respondiam a
estes lamentos com ecos. As lágrimas molhavam a areia, e eram tantas que, em
quantidade, se igualavam à areia.
"Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Com medo de sofrer ou se
arrepender, os nautas (navegantes), não olhavam para as mães e
esposas. Vasco da Gama decidiu que embarcariam sem a despedida costumeira,
porque, ainda que seja um bom costume porque mostra o amor das pessoas, faz
sofrer a quem parte e a quem fica.
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
Mas um velho de aspecto respeitável
(venerável), que estava entre as pessoas, na praia, olhando
para os navegadores e balançando a cabeça negativamente, levantou um
pouco mais alto a voz grave, que foi ouvida claramente pelo que estavam no mar,
e com uma sabedoria feita de experiências disse algumas palavras sábias,
inteligentes, e profundas (“experto peito” - “experto” = experiente, experimentado, culto, inteligente).
—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que
se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Este prazer dos homens de dominar e a cobiça fútil
e sem valor da fama são tolices ilusórias, passageiras (“vaidade”).
Esta satisfação falsa, enganadora, é estimulada pelas pessoas, que a
chamam de honra. Isso castiga grandemente os homens de coração tolo, vazio (“peito vão”)
que ambicionam o poder e a fama; fazendo com que experimentem muitos suplícios
(“mortes”, “perigos”, “tormentas”) e
crueldade.
Note que a expressão “peito
vão”, nesta estrofe, se opõe à “experto peito”, na estrofe anterior.
Essas estrofes remetem ao livro bíblico
de Eclesiastes, em que o rei Salomão afirma e argumenta que “é tudo vaidade”
(Eclesiastes 1:2) e que “Melhor
é ouvir a repreensão do sábio,
do que ouvir alguém a canção do tolo.” (Eclesiastes 7:5).
—"Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
Esta ambição causa angústia e perturbação (“inquietação d’alma e da vida”), é origem de abandonos e adultérios e destrói
fortunas e Estados. Chamam-na de nobre e elevada, quando é digna, merecedora, de desmoralizantes insultos, palavras infamantes.
Fama e glória são palavras para enganar o povo
ignorante e tolo.
—"A que novos
desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
E o velho pergunta que novos desastres serão
causados ao reino e ao povo, em
nome de (disfarçados em) alguma palavra
enobrecedora. Que promessas fáceis serão
feitas de reinos, de minas de ouro, famas, histórias
e triunfos para enganá-los?
—"Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:
Mas o gênero
humano, descendente do insensato e demente cujo pecado provocou não
somente sua expulsão e exílio (“desterro
e triste ausência”) do paraíso (“reino
soberano”), mas também privou-o do estado de paz e
de inocência da idade de ouro e o colocou, o abateu (“te
deitou”) na idade do ferro e das guerras.
—"Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
Já que, nessa prazerosa tolice, o
homem tanto empenha, arrebata a imaginação, a criatividade; já que dá o nome de esforço e valentia à violenta crueldade e perversidade; já que dá tanto valor ao desprezo pela vida, que deveria ser
sempre amada e preservada, pois até quem a deu teve medo de perdê-la
(refere-se a Cristo, que receou a morte, na noite anterior à sua crucificação).
—"Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Já
que é assim, não estão ali perto os Mouros (“o
Ismaelita”), com quem sempre terá guerras de sobra (muitos
combates)? Não seguem eles a lei maldita dos árabes
(refere-se ao Corão –
lei islâmica,
criada por Maomé, profeta de Alá), enquanto você guerreia (“pelejas”) pela lei de Cristo? Se luta
para enriquecer (“terras e riqueza mais desejas”),
os mouros tem muitas cidades e terra; eles são guerreiros valentes (“por armas
esforçado”), se o que deseja é ser glorificado, elogiado pelas
vitórias na guerra.
Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de Abraão e
da escrava Agar. Os ismaelitas viviam numa confederação de tribos no deserto da Arábia e deram origem aos árabes.
—"Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
Descuida do inimigo próximo para buscar outro
distante, por quem o reino iria se despovoar, se enfraquecer e se perder.
Procura o perigo impreciso e desconhecido, para que a fama o celebre e elogie
chamando-o, em grande quantidade (“larga cópia”),
de senhor da Índia, Pérsia, Arábia
e Etiópia.
O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no
decorrer do discurso. Primeiro é
um sentimento descrito como “glória
de mandar” etc; depois é a “geração daquele insano”, isto é, o
gênero humano; então é alguém que procura a guerra na Índia
(provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e, finalmente, o título
de “senhor da Índia, Pérsia,
Arábia e de Etiópia” que identifica o próprio rei de Portugal.
—"Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
O Velho amaldiçoa o
homem que fez o primeiro barco (“pôs velas nas ondas”), como
merecedor do inferno (“dino da eterna pena do profundo”),
se houver justiça como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um
alto conceito, nem música (“cítara sonora”) ou
poesia (“vivo engenho”) que eternize sua memória
por este feito (“Te dê
por isso fama nem memória”),
mas que, com o inventor do primeiro barco, morram sua fama, sua reputação (“seu nome”) e sua glória.
—"Trouxe o filho de
Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
Afirma que o fogo que o filho de Jápeto
trouxe do céu e deu aos homens, esse fogo o mundo acendeu em
armas, em mortes, em desonras. Foi um grande erro (“engano”)
dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e
causado menos dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu não
tivesse o fogo do desejo que a movera.
O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o deu aos homens. Prometeu
trouxe o fogo do Olimpo escondido em uma estátua humana. Foi condenado a
ficar preso num rochedo enquanto uma águia lhe comia as entranhas.
—"Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!"—
Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável
e digno de pena não teria ousado guiar o carro do pai, nem o grande
arquiteto e seu filho teriam se arriscado a voar (“cometera
o ar vazio”). Um deu nome ao mar e o outro deu fama ao rio. Camões
se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o deus Sol, que foi imprudente e
caiu com o carro do pai no rio Eridano e Dédalo, arquiteto do labirinto,
que, com cera e penas, construiu asas para si e para seu filho Ícaro
que, descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no mar.
Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer
modo realizado (“Por fogo, ferro, água, calma e frio”), o
gênero humano (“humana geração”) não tenta realizar (“deixa intentado”). É um destino miserável e uma estranha obrigação (ou um estado, um modo de ser esquisito).
O ANTICLÍMAX
O episódio do Velho do Restelo
representa um notável contraponto à glorificação das navegações portuguesas intentada por Camões
no transcorrer de todo o poema. O professor Alfredo Bosi o considera, portanto, o anticlímax
da narrativa. Em seu livro Dialética da Colonização (Companhia das Letras, 1992) afirma que:
A fala do Velho destrói ponto por ponto e mina por dentro o fim
orgânico dos Lusíadas, que é cantar a façanha do Capitão, o nome de Aviz, a nobreza guerreira e a máquina mercantil lusitana envolvida no projeto. (…)
A viagem e todo o desígnio que ela enfeixa aparecem como um
desastre para a sociedade portuguesa: o campo despovoado, a pobreza
envergonhada ou mendiga, os homens válidos dispersos ou mortos, e, por toda parte, adultérios e orfandades. “Ao cheiro desta canela / o reino se despovoa”, já dissera Sá de Miranda.
A mudança radical de perspectiva (que dos olhos do
Capitão passa para os do Velho do Restelo) dá a medida da força espiritual de um Camões ideológico e contra-ideológico, contraditório e vivo. (…)
No largar da aventura
marítima e colonizadora o seu maior escritor orgânico se faria uma consciência perplexa: “Mísera sorte! Estranha condição!”
O poeta admite, portanto, no momento de ápice
de sua narrativa, o instante tão sonhado em que a esquadra de Vasco da Gama inicia
sua viagem, uma voz contrária à
aventura que pretende
glorificar.
INTERTEXTUALIDADE
Nos últimos
quatro séculos Os Lusíadas serviram de fonte de
inspiração para inúmeros poetas e prosadores da língua
portuguesa. Os poemas abaixo, de dois dos maiores escritores portugueses do século
XX, apresentam diferentes visões da fala do Velho do Restelo.
FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
José Saramago
in Poemas Possíveis (1966)
Aqui na terra a fome continua
A miséria e o luto
A miséria e o luto e outra vez a fome
Acendemos cigarros em fogos de napalm
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejos
De mais alto que nós, de melhor e mais puro.
No jornal soletramos de olhos tensos
Maravilhas de espaço e de vertigem.
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede onde não chove.
Mas a terra, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalm são brinquedos)
Onde come brincando só a fome
Só a fome, astronauta, só a fome.
MAR PORTUGUÊS
Fernando Pessoa
In Mensagem (1934)
Ó mar salgado, quanto do
teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
O texto de Fernando Pessoa
aparenta ser uma resposta à
fala do Velho do Restelo.
Admite o sofrimento advindo das grandes navegações, mas considera que foi
necessário para a conquista do mar. A resposta de Pessoa ao
Velho do Restelo é que “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.” Já
o poema de Saramago atualiza a
fala camoniana, trazendo-a para o contexto da exploração espacial. Como o velho, Saramago alerta o astronauta,
moderno navegador, para os problemas que deixa na terra. Assim, Saramago
reitera o discurso da personagem camoniana, agora em contexto universal.
Vida e Obra de Luís Vaz de Camões
Um homem do Renascimento
Pouco se sabe com segurança
sobre a vida de Luís Vaz de Camões. É provável que tenha nascido por volta de 1525, talvez em Lisboa. Deve ter tido
uma educação esmerada, apesar de pertencer à camada menos abastada da corte portuguesa. Supõe-se
que tenha estudado no Convento de Santa Cruz, no qual trabalhava Dom Bento de
Camões, seu tio. Lutando contra os mouros, na investida
portuguesa em Ceuta, em 1549, perde a vista direita, razão
pela qual será sempre representado futuramente com um tapa-olho.
Preso durante o ano de 1552 por se envolver em brigas, embarca para o Oriente
no ano seguinte em serviço militar. Vivendo na miséria
em Goa e Moçambique durante 16 anos, chega a ter o seu Auto de Filodemo representado na Índia e, graças
ao auxílio financeiro de amigos, regressa a Lisboa em 1569.
Data desse período de dura peregrinação pelas colônias
ultramarinas portuguesas a imagem de Camões que os românticos
haveriam de perpetuar: a do poeta miserável, exilado e saudoso de sua
terra, sofrendo humilhações no cotidiano e escrevendo os mais sublimes versos
como vingança. A conhecida história de seu relacionamento com
Dinamene, companheira chinesa do poeta, reforça essa imagem. Navegando pelo
rio Mecon, na Indochina, o casal sofreria um naufrágio.
Diz a lenda que Camões teria conseguido salvar a si e aos manuscritos
dos Lusíadas, enquanto a infeliz Dinamene
morria afogada. Camões dedicaria à amada morta vários
de seus poemas líricos, procurando elevá-la às mesmas
alturas da Laura de Petrarca ou da Beatriz de Dante. Retornando a Portugal, consegue
publicar, em 1572, a sua obra-prima, Os Lusíadas, e passa a viver de uma modesta pensão
oferecida por Dom Sebastião, a quem dedicara seu poema épico.
Morre em 1580, mesmo ano em que
Portugal perdia sua autonomia política, caindo sob o domínio
da temível Espanha. Em carta a Dom Francisco de Almeida, o
poeta sintetiza este momento: "...acabarei a vida e verão
todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não me contentei em morrer nela,
mas com ela".
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