"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Uma lenda antiga

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.....Há na Índia uma lenda antiga que nos conta sobre dois amigos que há algum tempo não se viam e que marcaram uma pescaria para se reencontrarem e pôr a conversa em dia. Para alegria deles, o dia marcado foi de um límpido céu azul e uma brisa agradável que soprava às margens do rio onde iriam passar as horas pescando.
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Entre uma e outra fisgada entretinham-se em contar as novidades, os causos e outras piadas que sabiam. Além de suas vozes alegres a natureza expressava a sua exuberância no farfalhar das folhas ao vento e no marulhar das águas da correnteza que seguia rio abaixo.
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Um dos amigos contava uma piada que foi interrompida por um grito. Olhando para frente e para os lados nada viram, a não ser a água cristalina que se movia ligeira por entre as pedras do rio. Mais alguns instantes e outros gritos se seguiram invadindo seus corações de angústia — mãos e pernas que ora estavam submersas, eram agora visíveis a uma certa distância da margem.
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.....Eram duas crianças que a correnteza levava rio abaixo. Sem trocar sequer um olhar ambos saltaram da margem e, exímios nadadores que eram, recuperaram as duas crianças inconscientes, mas vivas. Com o fôlego no limiar e mal recuperados do susto, eis que novos gritos surgem. Chocados, avistam vários pares de pernas e braços, entremeados por cabeças que sobem e descem ao agitar das águas bravias.
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.....Eram quatro crianças que a correnteza levava rio abaixo. Recobrados os ânimos pelo perigo iminente, os dois amigos lançam-se às águas, mas conseguem salvar somente duas, das quatro crianças que tentaram resgatar. Abalados emocional e fisicamente pelo esforço descomunal desprendido e pela perda das duas crianças, os dois amigos mal podiam acreditar nos gritos que novamente espalhavam-se pelos ares e chegavam aos seus ouvidos.
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.....Eram oito crianças que a correnteza levava rio abaixo. Um dos amigos, sem expressar palavra ou gesto, dá as costas ao cenário macabro e começa a correr. O outro, em desespero e perplexo pela reação do amigo, o interpela atônito: Que é isto? Está louco? Não vai me ajudar?
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.....O outro, que começara a correr, não parou e bradou a viva voz: Resgate quantas puder. Preciso impedir que continuem jogando crianças correnteza abaixo.
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sábado, 27 de novembro de 2010

O emprego do "hífen" com o Novo Acordo Ortográfico

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Nova Regra:
O hífen não é mais utilizado em palavras formadas de prefixos (ou falsos prefixos) terminados em vogal + palavras iniciadas por "r" ou "s", sendo que essas devem ser dobradas
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Regra Antiga: ante-sala, ante-sacristia, auto-retrato, anti-social, anti-rugas, arqui-romântico, arqui-rivalidae, auto-regulamentação, auto-sugestão, contra-senso, contra-regra, contra-senha, extra-regimento, extra-sístole, extra-seco, infra-som, ultra-sonografia, semi-real, semi-sintético, supra-renal, supra-sensível
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Como Será: antessala, antessacristia, autorretrato, antissocial, antirrugas, arquirromântico, arquirrivalidade, autorregulamentação, contrassenha, extrarregimento, extrassístole, extrasseco, infrassom, inrarrenal, ultrarromântico, ultrassonografia, suprarrenal, suprassensível
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obs: em prefixos terminados por "r", permanece o hífen se a palavra seguinte for iniciada pela mesma letra: hiper-realista, hiper-requintado, hiper-requisitado, inter-racial, inter-regional, inter-relação, super-racional, super-realista, super-resistente etc.
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Nova Regra:
O hífen não é mais utilizado em palavras formadas de prefixos (ou falsos prefixos) terminados em vogal + palavras iniciadas por outra vogal
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Regra Antiga: auto-afirmação, auto-ajuda, auto-aprendizagem, auto-escola, auto-estrada, auto-instrução, contra-exemplo, contra-indicação, contra-ordem, extra-escolar, extra-oficial, infra-estrutura, intra-ocular, intra-uterino, neo-expressionista, neo-imperialista, semi-aberto, semi-árido, semi-automático, semi-embriagado, semi-obscuridade, supra-ocular, ultra-elevado
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Como Será: autoafirmação, autoajuda, autoaprendizabem, autoescola, autoestrada, autoinstrução, contraexemplo, contraindicação, contraordem, extraescolar, extraoficial, infraestrutura, intraocular, intrauterino, neoexpressionista, neoimperialista, semiaberto, semiautomático, semiárido, semiembriagado, semiobscuridade, supraocular, ultraelevado.
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Obs: esta nova regra vai uniformizar algumas exceções já existentes antes: antiaéreo, antiamericano, socioeconômico etc.
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Obs2: esta regra não se encaixa quando a palavra seguinte iniciar por "h": anti-herói, anti-higiênico, extra-humano, semi-herbáceo etc.
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Nova Regra:
Agora utiliza-se hífen quando a palavra é formada por um prefixo (ou falso prefixo) terminado em vogal + palavra iniciada pela mesma vogal.
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Regra Antiga: antiibérico, antiinflamatório, antiinflacionário, antiimperialista, arquiinimigo, arquiirmandade, microondas, microônibus, microorgânico
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Como Será: anti-ibérico, anti-inflamatório, anti-inflacionário, anti-imperialista, arqui-inimigo, arqui-irmandade, micro-ondas, micro-ônibus, micro-orgânico
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obs: esta regra foi alterada por conta da regra anterior: prefixo termina com vogal + palavra inicia com vogal diferente = não tem hífen; prefixo termina com vogal + palavra inicia com mesma vogal = com hífen
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obs2: uma exceção é o prefixo "co". Mesmo se a outra palavra inicia-se com a vogal "o", NÃO se utiliza hífen.
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Nova Regra:
Não usamos mais hífen em compostos que, pelo uso, perdeu-se a noção de composição
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Regra Antiga: manda-chuva, pára-quedas, pára-quedista, pára-lama, pára-brisa, pára-choque, pára-vento
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Como Será: mandachuva, paraquedas, paraquedista, paralama, parabrisa, parachoque, paravento
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Obs: o uso do hífen permanece em palavras compostas que não contêm elemento de ligação e constitui unidade sintagmática e semântica, mantendo o acento próprio, bem como naquelas que designam espécies botânicas e zoológicas: ano-luz, azul-escuro, médico-cirurgião, conta-gotas, guarda-chuva, segunda-feira, tenente-coronel, beija-flor, couve-flor, erva-doce, mal-me-quer, bem-te-vi etc.
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OBSERVAÇÕES GERAIS
O uso do hífen permanece:
Em palavras formadas por prefixos "ex", "vice", "soto".
Ex.: ex-marido, vice-presidente, soto-mestre
Em palavras formadas por prefixos "circum" e "pan" + palavras iniciadas em vogal, M ou N.
Ex.: pan-americano, circum-navegação
Em palavras formadas com prefixos "pré", "pró" e "pós" + palavras que tem significado próprio.
Ex.: pré-natal, pró-desarmamento, pós-graduação
Em palavras formadas pelas palavras "além", "aquém", "recém", "sem".
Ex.: além-mar, além-fronteiras, aquém-oceano, recém-nascidos, recém-casados, sem-número, sem-teto
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Não existe mais hífen:
Em locuções de qualquer tipo (substantivas, adjetivas, pronominais, verbais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais).
Ex.: cão de guarda, fim de semana, café com leite, pão de mel, sala de jantar, cartão de visita, cor de vinho, à vontade, abaixo de, acerca de etc.
Exceções: água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao-deus-dará, à queima-roupa
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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

NÍVEIS DE LINGUAGEM

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(popular médioelevadotécnico)
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O
nível popular caracteriza-se pelo uso da chamada linguagem coloquial, que emprega estruturas simples e, às vezes, apresenta desvios da norma culta e gírias;
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O
nível médio constitui a linguagem culta informal, bastante usada no cotidiano, que se caracteriza pela obediência à norma culta e pelo uso de uma linguagem-padrão;
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O
nível elevado revela o bom conhecimento léxico e gramatical da norma culta, como no caso da linguagem empregada por um palestrante;
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O nível técnico caracteriza-se pelo emprego de um léxico próprio, ou seja, de termos técnicos, com conceitos específicos.
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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sobre a política educacional e o ENEM

Prometi escrever sobre a prova do Enem. A indignação quase me paralisa. O MEC, deste incrível Fernando Haddad, comete um crime contra a educação brasileira. É isto: trata-se de um exame intelectualmente criminoso, que soma inépcia e pretensão, patrulha ideológica e proselitismo libertário, simplismo e pernosticismo. Como o Enem quer ser “o” vestibular nacional, ele concorre é para desorganizar o que eventualmente pode haver de sólido no ensino médio. Deveria ser o principal elemento a forçar a definição de um currículo mínimo nacional se desse ao menos pistas do que pretende. Mas é impossível saber. As 45 questões desse cretinismo chamado “Linguagens e Códigos e Suas Tecnologias”, cinco delas de língua estrangeira, testam uma única coisa: interpretação de texto. As outras 45 de “Ciências Humanas e Suas Tecnologias” são uma peneira para testar o “cidadão consciente” — desde que ele entenda minimamente o que lê. A prova do Enem seleciona os estudantes que, não sendo analfabetos funcionais, estão cheios de boas intenções e sentimentos de cidadania. Não busca os mais aptos, os mais sabidos ou os mais informados, mas os menos energúmenos de bom coração.
As 40 questões sobre o que um dia já foi “Língua Portuguesa e Literatura” —disciplina rebaixada a “Comunicação e Expressão” antes de ganhar aquele nome que Paulo Francis chamaria “pseudo” — nada cobram: leitura de livros, conhecimento de gramática, repertório… O governo brasileiro, que estatizou o vestibular, não pede que a escola seja mais eficiente ao ensinar literatura e gramática: ele simplesmente as tornou dispensáveis. O texto é longo, sim. Tomou uma boa parte da minha madrugada. Apelo à paciência de vocês. É preciso expor a miséria a que chegamos. Deixarei as tais ciências humanas para outro dia.
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Comecemos pela questão 96 (prova azul). Um avô está com seu neto num museu de arqueologia no ano de 2059, na Amazônia. Mostra uma árvore ao garoto. Há o seguinte diálogo:
— Árvore era assim, desse jeito, Juquinha, tá vendo?
—  Que barato, vovô!
Vamos ver o que o Enem quer saber (em vermelho) :
As diferentes esferas sociais de uso da língua obrigam o falante a adaptá-la às variadas situações de comunicação. Uma das marcas linguísticas que configuram a linguagem oral informal usada entre avô e neto neste texto é
A - a opção pelo emprego da forma verbal “era” em lugar de “foi”.
B - a ausência de artigo antes da palavra “árvore”.
C - o emprego da redução “tá” em lugar da forma verbal “está”.
D - o uso da contração “desse” em lugar da expressão “de esse”.
E -  a utilização do pronome “que” em início de frase exclamativa.
Eu já tenho vontade de pegar o chicote quando leio “as diferentes esferas sociais do uso da linguagem”. Por quê? Para perguntar uma besteira, uma banalidade, o examinador recorre a esse jargão pernóstico, de mau redator. Não existem “diferentes esferas sociais do uso da linguagem”. Alguém poderia definir o que é isso, onde fica, em que lugar se aloja? É complicômetro de cretinos. Existem linguagens distintas nas diferentes esferas sociais (se é para usar esse vocabulário pomposo). Há entre uma coisa e outra a distância que vai da abstração bucéfala ao fato concreto. A alternativa correta é a C, claro…
A questão 97 é aquela da falsa dificuldade e que apenas aparentemente cobra repertório . Notem que é uma variação daquela brincadeira infantil: “De que cor era o cavalo branco de Napoleão?”
A biosfera, que reúne todos os ambientes onde se desenvolvem os seres vivos, se divide em unidades menores chamadas ecossistemas, que podem ser uma floresta, um deserto e até um lago. Um ecossistema tem múltiplos mecanismos que regulam o número de organismos dentro dele, controlando sua reprodução, crescimento e migrações.”
Predomina no texto a função da linguagem
A - emotiva, porque o autor expressa seu sentimento em relação à ecologia.
B - fática, porque o texto testa o funcionamento do canal de comunicação.
C - poética, porque o texto chama a atenção para os recursos de linguagem.
D - conativa, porque o texto procura orientar comportamentos do leitor.
E - referencial, porque o texto trata de noções e informações conceituais.
Ainda que o estudante ignore as “funções da linguagem”, confunda “canal da comunicação” com tratamento de canal e pense em sacanagem (os de vocabulário mais amplo) ao ler a palavra “conativa”, não deve ter grande dificuldade para perceber que o texto trata de “noções e informações conceituais” —  mesmo que não saiba o que significa “conceitual”. A questão é exemplar da falta de eixo da prova porque só aparentemente cobra um repertório.
A de nº 98 traz um texto de horóscopo — as características do signo de Câncer e como  devem se comportar as pessoas desse signo na família, no trabalho, nos cuidados com a saúde… E qual a curiosidade do examinador? Isto:
O reconhecimento dos diferentes gêneros textuais, seu comunicativo e seu contexto de uso, sua função social específica, seu objetivo comunicativo e seu formato mais comum relacionam-se aos conhecimentos construídos socioculturalmente. A análise dos elementos constitutivos desse texto demonstra que sua função é
A - vender um produto anunciado.
B - informar sobre astronomia.
C - ensinar os cuidados com a saúde.
D - expor a opinião de leitores em um jornal.
E - aconselhar sobre amor, família, saúde, trabalho.
Eu não estou brincando, não. Essa questão é exemplar de uma prática comum na prova. O enunciado é pomposo, quase incompreensível, cheio de macumbarias conceituais para indagar, no fim das contas, se está claro que um texto de horóscopo dá conselhos…
Da 100 à 104, tudo segue nesse ritmo, cobrando do candidato o óbvio; indagando, no fundo, se ele sabe ler. Do nada, de inopino, aparece na prova, na questão 105, uma reprodução de “Mulher com Sombrinha”, de Monet.
Atenção para a questão:
Em busca de maior naturalismo em suas obras e fundamentando-se em novo conceito estético, Monet, Degas, Renoir e outros artistas passaram a explorar novas formas de composição artística, que resultaram no estilo denominado Impressionismo. Observadores atentos da natureza, esses artistas passaram a
A - retratar, em suas obras, as cores que idealizavam de acordo com o reflexo da luz solar nos objetos;
B - usar mais a cor preta, fazendo contornos nítidos, que melhor definiam as imagens e as cores dos objetos representados;
C - retratar paisagens em diferentes horas do dia, recriando, em suas telas, as imagens por eles idealizadas;
D - usar pinceladas rápidas de cores puras e dissociadas diretamente na tela, sem misturá-las antes na paleta;
E - usar as sombras em tons de cinza e preto e com efeitos esfumaçados, tal como eram realizadas no Renascimento.
Vamos ver. Afirmar que o impressionismo surgiu da busca de maior “naturalismo” nas obras é só evidência de conceitos mal digeridos em alguma consulta rápida na Internet. É uma besteira. Quanto às alternativas… Quem souber o que é um “contorno” e o significado das palavras “preto” e “cinza” já descarta as alternativas B e E. Sobram a A, a C e a D, a mais correta sem dúvida. Assim como desafio o formulador da questão a provar o “naturalismo” do impressionismo, gostaria que ele provasse que a A e a C podem ser descartadas. Pergunta: a reprodução da imagem era colorida? Se estava em preto e branco, o examinar tem de ir para a cafua.
A questão 106 existe para verificar se o aluno sabe que o balé não pertence ao folclore brasileiro. A 107 pergunta indaga se a palavra “corasamborim”, de uma música de Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, é um estrangeirismo, uma gíria, um neologismo, um regionalismo ou um termo técnico. A 108 mostra um livro digital e um mapa com áreas imensas do país que ainda não têm conexão sem fio. É preciso concluir que a democratização da leitura esbarra na insuficiência do acesso à Internet. A 109 diz respeito a  chat. Reproduzo alguns trechos:O significado da palavra chat vem do inglês e quer dizer “conversa”. Essa conversa acontece em tempo real (…) Para entrar, é necessário escolher um nick, uma espécie de apelido que identificará o participante durante a conversa. (…) mas não existe nenhum controle para verificar se a idade informada é realmente a idade de quem está acessando (…)
Muito bem. O examinador pretende saber o que o aluno acabou de ler. Entre as hipóteses , há esta, que quase repete o texto motivador da pergunta:
Possibilita que ocorra diálogo sem a exposição da identidade real dos indivíduos, que podem recorrer a apelidos fictícios sem comprometer o fluxo da comunicação em tempo real.
A questão 110 é ilustrada com a imagem de uma bailarina fazendo alongamento e indaga se seu exercício é de velocidade, resistência, flexibilidade, agilidade ou equilíbrio. Eu juro! Estão anotando aí: Monet, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Chat, flexibilidade… A questão 111 pergunta obviedades sobre um texto que trata do Twitter. A 112 reproduz o trecho de uma reportagem e tem a intenção de saber se está claro que se trata de um texto informativo…
Há literatura na prova? A 113 vem com um fragmento de “Laços de Família”, de Clarice Lispector. Vejam o que fizeram os gênios de Fernando Haddad:Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A  cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas.
A autora emprega por duas vezes o conectivo mas no fragmento apresentado. Observando aspectos da organização, estruturação e funcionalidade dos elementos que articulam o texto, o conectivo mas
A - expressa o mesmo conteúdo nas duas situações em que aparece no texto;
B - quebra a fluidez e prejudica a compreensão se usado no início da frase;
C - ocupa posição fixa, sendo inadequado seu uso no abertura da frase;
D - contém uma ideia de sequência temporal que direciona a conclusão do leitor;
E - assume funções discursivas distintas nos dois contextos de uso.
É preciso marcar a “E”, embora tudo aí esteja errado. Quem foi que elaborou essa miséria? Quero que me provem que o “conteúdo” do primeiro “mas” é diferente do “conteúdo” do segundo “mas” — e favor não confundir o “conteúdo do mas” com o contexto em que é empregado. Não só isso: exijo que definam “função discursiva distinta nos contextos de uso”. Que borra é essa? A questão 114 pede que se interprete um texto sobre inquisição; a 115, não menos óbvia, quer que o aluno responda se entendeu que uma língua, mesmo extinta, deixa sinais em outras línguas. A 116 reproduz uma pequena biografia de Machado de Assis: teria o estudante percebido tratar-se da “apresentação da vida de uma personalidade organizada sobretudo pela ordem tipológica da narração, com um estilo marcado pela linguagem objetiva”. Escrever “Ordem tipológica da narração”  numa prova vestibular deveria estar entre os crimes previstos no Código Penal.
A 117 também pretende ser de literatura: um soneto do grande Álvares de Azevedo, poeta da segunda geração do Romantismo.Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!
Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!… já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece…
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!
O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.
Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!
Trata-se de mais uma questão de interpretação, a única da prova inteira a trazer certa dificuldade. O problema aqui, para não variar, está na questão propriamente. Diz o examinador:“O núcleo temático do soneto citado é típico da segunda geração romântica, porém configura um lirismo que o projeta para além desse momento específico. O fundamento desse lirismo é”Deve-se responder “a melancolia que frustra a possibilidade da reação diante da perda”. Certo! Mas por que isso estaria “além” das características da segunda geração romântica? Não está. Trata-se apenas de uma bobagem!
A 118 reproduz um fragmento de Capitães de Areia, de Jorge Amado, e outro de um conto de Dalton Trevisan. Ambos retratam pessoas vivendo em dificuldades. Segundo o examinador, os dois textos, sob diferentes perspectivas, são exemplos de uma abordagem recorrente na literatura do século 20: “O espaço onde vivem as personagens é uma das marcas de sua exclusão”. Qualquer um que tente associar Trevisan ao  Jorge Amado da fase realista-socialista, como é o caso, é só um iletrado. Aquele troço que vai entre aspas não significa absolutamente nada!
A questão 119 volta com uma obviedade sobre a Internet. A 120, é sério!, mostra três fotos com jogadores de vôlei. O primeiro se prepara para sacar, o segundo defende uma bola, e os dois outros da terceira foto fazem um bloqueio. A prova pergunta que diabo eles estão fazendo. As alternativas são estas:
A - sacar e colocar a bola em jogo, defender a bola e realizar a cortada como forma de ataque.
B - arremessar a bola, tocar para passar a bola ao levantador e bloquear como forma de ataque.
C - tocar e colocar a bola em jogo, cortar para defender e levantar a bola para atacar.
D - passar a bola e iniciar a partida, lançar a bola ao levantador e realizar a manchete para defender.
E - cortar como forma de ataque, passar a bola para defender e bloquear como forma de ataque.
Eu não sabia que Educação Física pertencia à categoria “Linguagens e Códigos e Suas Tecnologias… O que faz uma questão sobre vôlei depois de uma sobre literatura e antes de outra (121) sobre o acordo ortográfico? Perguntem a Fernando Haddad. A seguinte, a 122, traz um texto sobre os males de que padece o fumante passivo e uma imagem de um não-fumante sendo sufocado pela fumaça do cigarro do vizinho. O Enem pergunta o que os “textos” querem dizem. Bem, a resposta é esta: “os não fumantes precisam ser respeitados e poupados, pois estes também estão sujeitos às doenças causadas pelo tabagismo”. Não é piada! Ou melhor: é, mas não minha!
Deixem-me ver: horóscopo, Carlinhos Brown, Clarice Lispector, vôlei, Álvares de Azevedo, Monet, tabagismo… Então é chegada a hora de cair de boca no surrealismo, não é? Por que não um pouco de Salvador Dali? É o que encontramos na questão 123, que abre com uma frase deliciosamente provocativa do artista:“Todas as manhãs, quando acordo, experimento um prazer supremo: o de ser Salvador Dalí.”
Aí vem o examinador, na sua sapiência:Assim escreveu o pintor dos “relógios moles” e das “girafas em chamas” em 1931. Esse artista excêntrico deu apoio ao general Franco durante a Guerra Civil Espanhola e, por esse motivo, foi afastado do movimento surrealista por seu líder, André Breton. Dessa forma, Dalí criou seu próprio estilo, baseado na interpretação dos sonhos e nos estudos de Sigmund Freud, denominado “método de interpretação paranoico”. Esse método era constituído por textos visuais que demonstram imagens…
O certo é “do onírico, que misturava sonho com realidade e interagia refletindo a unidade entre o consciente e o inconsciente como um universo único e pessoal”. Sei…
Problemas: Voltem à questão. É MENTIRA QUE DALÍ TENHA DADO APOIO A FRANCO DURANTE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA. Ele se mudou para os EUA. Voltou à Espanha em meados da década de 50. Aproximou-se do ditador depois — e é bem possível que essa tenha sido outra manifestação de suas excentricidades. O “movimento surrealista” não era um clube, do qual pudesse ser afastado. Prestem atenção ao “dessa forma” em negrito do texto. Parece que o pintor só “criou o seu próprio estilo” porque André Breton, que era comuna, o hostilizara. Ah, sim: a alternativa dada como correta é uma salada conceitual. Quer dizer… NADA!
As questões 124, 125, 126 e 127 voltam à interpretação de texto mais rasteira. A 128 retoma a literatura, com Machado de Assis. E, Deus meu!, estamos realmente no pior dos mundos. O estudante é convidado a ler um trecho do romance “Quincas Borba”, em que Rubião, que recebera a herança de Quincas Borba, é obrigado a conviver com os hábitos que lhe impõe Palha, o pilantra que acaba roubando todo o seu dinheiro. Pois bem. Para quem elaborou a prova, a “peculiaridade do texto que garante a universalização de sua abordagem (!) reside” “no conflito entre o passado pobre (de Rubião) e o presente rico, que simboliza o triunfo da aparência sobre a essência”.
Talvez seja a coisa mais estúpida de toda a prova, até porque envolve Machado de Assis, o único escritor verdadeiramente universal da literatura brasileira. Afirmar que Machado estabeleceria uma oposição entre “aparência” e “essência” é insultar não apenas esse livro, mas toda a obra do autor. Talvez se pudesse dizer que, para ele, na essência, o que há é só uma aparência ainda não revelada. É de uma tolice estupenda, assustadora.
A questão 129 reproduz um trecho de “Negrinha”, de Monteiro Lobato, o autor que a turma de Haddad tentou censurar. Limita-se, mais uma vez, à mera interpretação óbvia do texto. Entendeu o candidato que a personagem citada não aceitava o fim da escravidão? Huuummm… Assim escreve Lobato sobe Dona Inácia: “Nunca se afizera ao regime novo - essa indecência de negro igual”.
De Monteiro Lobato para um jogo do Flamengo! O objetivo da questão 130 é saber se o aluno entendeu que, no trecho “Mesmo com mais posse de bola, o time dirigido por Cuca tinha grande dificuldade de chegar à área alvinegra (…)”, há uma idéia de “concessão”… A 131 trata da pintura de Anita Malfatti, que remete mais uma vez a Lobato, que continua a ser maltratado pelo Ministério da Educação. A questão é esta:Após estudar na Europa, Anita Malfatti retornou ao Brasil com uma mostra que abalou a cultura nacional do início do século XX. Elogiada por seus mestres na Europa, Anita se considerava pronta para mostrar seu trabalho no Brasil, mas enfrentou as duras críticas de Monteiro Lobato. Com a intenção de criar uma arte que valorizasse a cultura brasileira, Anita Malfatti e outros artistas modernistas…
A resposta certa é esta: “buscaram libertar a arte brasileira das normas acadêmicas europeias, valorizando as cores, a originalidade e os temas nacionais.”
Vamos ver. De fato, Lobato desceu o sarrafo na exposição de Anita. Mas isso nada tinha a ver com a “libertação das normas acadêmicas européias”. A acusação era outra: apego às vanguardas da Europa — ele cita especificamente Picasso. Da forma como vai a coisa, tem-se a impressão de que Lobato se opunha à valorização da cultura brasileira…
A questão 132 publica um gráfico indicando que as mulheres escolhem mais as carreiras ligadas às pessoas, como “psicologia”, “humanas-artes”, “educação” e “medicina”. Já os homens preferem as carreiras ligadas às “coisas”, como matemática, engenharia, mineração e física. Se que faz a prova não entendeu o gráfico, não tem problema. Há duas legendas explicando: “Ela têm mais habilidades em compreender pessoas e emoções. Então dominam as carreiras que têm a ver com isso” e “eles tendem a usar a cabeça para lidar com coisas inanimadas e abstrações. Por isso são maioria nos cursos de exatas”.
Vocês podem ver com os próprios olhos. Depois disso tudo, constata e indaga o Enem:
Segundo pesquisas recentes, é irrelevante a diferença entre sexos para se avaliar a inteligência. Com relação às tendências para áreas do conhecimento, por sexo, levando em conta a matrícula em cursos universitários brasileiros, as informações do gráfico asseguram que:
A - os homens estão matriculados em menor proporção em cursos de Matemática que em Medicina por lidarem melhor com pessoas.

B - as mulheres estão matriculadas em maior percentual em cursos que exigem capacidade de compreensão dos seres humanos.
C - as mulheres estão matriculadas em percentual maior em Física que em Mineração por tenderem a trabalhar melhor com abstrações.
D - as homens e as mulheres estão matriculados na mesma proporção em cursos que exigem habilidades semelhantes na mesma área.
E - as mulheres estão matriculadas em menor número em Psicologia por sua habilidade de lidarem melhor com coisas que com sujeitos.
As questões 133, 134 e 135 voltam à interpretação rasteira de texto. É o fundo do poço!
Não comentei neste longo texto as cinco questões de língua estrangeira e a prova de redação, que merecem artigo à parte. Essa prova é um crime contra o bom senso, contra a cultura, contra o próprio sentido de escola. Não é que ela precise mudar aqui e ali. Simplesmente não tem conserto. A história de que o Enem inova porque não exige decoreba, mas raciocínio, é uma empulhação. Não bastasse o fato de que a quase totalidade dessas 40 questões se limita à interpretação de texto mais estupidamente óbvia, estamos diante de uma impressionante penca de tolices e de imprecisões.
Haddad não veio para melhorar a escola. Ele está aí para torná-la inútil. O abismo nos espreita.
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Por Reinaldo Azevedo
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Operadores argumentativos no texto

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Aula com o Profº Ernani Terra
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Numa lista dos bons professores de língua portuguesa que atuam no Brasil, certamente o nome do professor Ernani Terra há de constar entre os melhores.
Possuidor de uma excelente postura magisterial, o prof. Ernani procura destacar a necessidade do ensino da linguagem através da prática discursiva, da interação, dos textos, e a partir dos textos, adentrar na questão dos gêneros.
É incoerente um ensino de língua portuguesa que seja estruturado a partir de frases isoladas, pois o que espera é que haja um envolvimento com os gêneros que circulam socialmente. Não é concebível que os docentes insistam em trabalhar somente com os gêneros literários, mas que também procurem explorar os diversos gêneros existentes no dia-a-dia dos falantes. Desta forma, apregoa-se que o ensino da língua adote as várias pedagogias possíveis: a pedagogia do oral, a da escrita, a da leitura, e por fim, complementa, a pedagogia lexico-gramatical.
Ao sugerir que os professores de português devam aprofundar na prática da interpretação de textos para o pleno desenvolvimento da aprendizagem, Ernani Terra nos cita Isabel Solé, uma escritora que é pedagoga e trabalha com leitura nas séries iniciais em Barcelona, na Espanha. Isabel Solé, em sua obra, nos diz que “o texto é um iceberg”, o que implica dizer que o que está escrito no texto é apenas uma pequena parte daquilo que realmente acontece, isto porque num iceberg apenas uma pequena parte fica exposto na superfície, o restante fica submerso. Assim funciona com os textos, e cabe ao leitor decifrar o que não está explícito.
Como exemplo da construção de sentido do texto, observa-se uma matéria publicada na grande mídia  sobre a industrialização de produtos alimentícios em que são apresentadas duas notícias:
§   32% dos produtos omitem informações sobre gordura trans.
§   Pesquisa feita pelo Idec com 370 alimentos industrializados mostra que 62% cumprem a lei, em vigor há dois anos.
è O advérbio é um operador argumentativo que leva o leitor a construir o sentido do texto.
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Em outro exemplo de orientação argumentativa, desta vez, sobre o ex-técnico da Seleção Brasileira de Futebol, dizia que:
49% dos brasileiros apoiam o Dunga
è Quase a metade dos brasileiros apoiam o técnico.
è Menos da metade dos brasileiros apoiam o técnico.
Vejam como os operadores argumentativos fazem toda a diferenção na hora da interpretação.
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Mais exemplos de operadores:
§   Corinthians empata com o Grêmio Prudente pelo Brasileirão.
§   Fernandão pega apenas dois jogos de suspensão.
§   Nem executivo cuida direito da próstata.
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Veja também, quanto à organização do período:
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§  Foi em legítima defesa, mas Pedro matou.
§  Pedro matou, mas foi em legítima defesa.
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è Não se tratam de frases iguais. Num julgamento, a promotoria usaria a primeira, enquanto que a defensoria usaria a segunda.
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