"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 25 de julho de 2015

São Bernardo

Graciliano Ramos

A obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, apesar de pertencer à Segunda Geração Modernista, cujos propósitos, em prosa, ligam-se à denúncia social, à apresentação questionadora e crítica do Brasil, afasta-se, ao mesmo tempo, da mesma.
Notamos, ao analisar o romance, que, se há denúncia, esta fica em segundo plano. Todo o romance envolve a tensão psicológica de Paulo Honório, que se desenvolverá, aqui, em dois planos: o Paulo Honório narrador e o Paulo Honório personagem.
Paulo Honório causa-nos o "estranhamento" por ser um herói problemático, buscando o entendimento na avaliação de si mesmo. A história é contada num tempo posterior aos fatos, ou seja, Paulo Honório, no passado, vivenciou uma série de experiências, que, agora, num tempo atual (já com cinquenta anos), pretende relatar em livro. Toda a narrativa se envolverá num processo de circularidade e alternâncias: no enredo central, teremos Paulo Honório personagem; na narração, aparecerá o Paulo Honório avaliativo, distante dos fatos, buscando entender a si, ao mundo e até mesmo ao seu processo de criação.
Inicialmente, o narrador explica ao leitor todo o seu processo de escritura, fazendo-o participar da obra. Em todo o primeiro capítulo do livro, Paulo Honório narrador expõe seu projeto de fazer a obra pela "divisão do trabalho". Para tanto, "Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do ‘Cruzeiro’."(p.7).
Percebe-se que, por meio de um processo de metalinguagem, coloca-se o processo da escritura em discussão. Junto com ele, descobrimos que o processo de elaboração é falho ("O resultado foi um desastre."- p. 8), pois mascara seu autor: ele é um homem rústico, e não aquilo que estavam fazendo que ele parecesse (...está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá quem fale dessa forma!- p.9).
Desta maneira, Paulo Honório coloca-se como alguém simples, não afeito a técnicas narrativas normalmente consideradas sofisticadas, daí as referências à "língua de Camões". É por isso que assumirá a escritura do romance que tratará de sua história, desde guia de cegos a proprietário da fazenda São Bernardo: narrativa que se pretende escrita de forma rústica para tratar de uma "alma agreste", conforme ele se autoqualifica.
Porém, engana-se o leitor se imagina encontrar um texto desconexo, escrito por alguém que se diz semi-analfabeto; ao contrário, deparamo-nos com um texto, que, em termos de linguagem, poderia, inclusive, ser classificado como clássico: a linguagem é "enxuta", sem preocupação descritiva ou abuso de linguagem figurada; é a nítida preferência pelo substantivo, pela informação direta, aproximando-se de uma linguagem referencial, bastante afastada daquilo que chamaríamos, tradicionalmente, de poético. Neste sentido, poderíamos fazer uma comparação com Machado de Assis, pois é a mesma preferência pela análise psicológica, por conseguinte ocupando maior espaço na obra.
É aí que encontramos a iconicidade: é a linguagem reveladora da personagem, ambos agrestes, áridos. Todavia, essa simplicidade toda não nos leva a uma narrativa primitiva, linearmente organizada. O texto é carregado de digressões e processos metalinguísticos.
O narrador quer criar a ilusão de que está escrevendo o texto sem planejamento, sem cálculo prévio, forjando um primitivismo literário num livro de memórias: Paulo Honório narrador conta a história de Paulo Honório personagem. Seu método seria algo semelhante à técnica narrativa impressionista, contando os fatos conforme vão surgindo na memória, daí a "desordem", a falta de linearidade cronológica; por exemplo, ficamos sabendo que o filho de Madalena já havia nascido, porque o narrador o apresenta chorando:

O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória e Madalena:
- Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa, e pode o mundo vir abaixo. A criança esgoelando-se!
Madalena tinha tido um menino. (p.123).

Agora, sem dúvida, um dos pontos mais altos desse processo de digressão é o capítulo 19. Ele é todo digressão: Paulo Honório - já com seus cinquenta anos, em seu tempo presente - interrompe o desenrolar dos fatos para escrever um capítulo fluxo de consciência, que o leitor, que entra em contato com a obra pela primeira vez, só vai entender quando acabar de ler o romance. No auge do seu conflito psicológico, com Madalena já morta, Paulo Honório a vê aproximar-se dele:

- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvido. Também já não a vejo com os olhos." (p. 102).

Ele só a vê em suas lembranças, em sua consciência, mas é como se ela se materializasse diante de si; é aí que ele faz algumas conjecturas sobre ela e ele:

A voz de Madalena continua acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura uma pessoa estar ao mesmo tempo irritada e tranquila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar.
Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos. (p. 102 e 103).

A contradição o assola ("... é uma irritação antiga que me deixa inteiramente calmo."); o desejo de compreender acentua-se, daí as constantes referências às contradições: é o desejo de rever Madalena, mas, simultaneamente, o não entendimento de suas atitudes, o que ainda o irrita, como no passado:

Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente, estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito. (p. 103).

Este capítulo traz o mesmo Paulo Honório do final da obra: sozinho, triste, convivendo com seus fantasmas, como o senhor Ribeiro e d. Glória, já distantes no momento presente:

Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d. Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras. (p.103 e 104).

Todo esse momento do enredo nos revela tanto os conflitos de Paulo Honório quanto a consciência técnica do narrador; afinal, esse fluxo de consciência é extremamente bem feito para alguém que se diz semianalfabeto.
Por conseguinte, enxergamos, por trás de Paulo Honório, o escritor Graciliano Ramos, consciente pleno do processo narrativo, capaz de criar uma "desordem" apenas aparente, reveladora, na verdade, do tempo atual da personagem.
Após o capítulo 19, o texto retoma o seu desenvolvimento normal. É interessante observar que, apesar de o narrador deixar claro que tem consciência de tudo o que se passou, inclusive antecipando fatos, cria o suspense em citações de intensa emoção, como no momento da "despedida" de Madalena, preparando já o seu suicídio, por meio de um diálogo rápido e vigoroso:

- O resto está no escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para o jardim quando eu escrevi.
- A quem?
- Você verá. Está em cima da banca. Não é caso para barulho. Você verá.
- Bem.
Respirei. Que fadiga!
- Você me perdoa os desgostos que lhe dei, Paulo?
- Julgo que tive minhas razões.
- Não se trata disso. Perdoa?
Rosnei um monossílabo.
- O que estragou tudo foi esse ciúme. Paulo. (p. 160).


A metalinguagem também tem o papel de apresentar o narrador avaliativo. Paulo Honório coloca-se na posição de quem, além de autoavaliar os dois primeiros capítulos como "inúteis", avalia as atitudes da personagem, com uma visão adiantada dos fatos:
Já viram como perdemos tempo com padecimentos inúteis? Não era melhor que fôssemos como os bois? Bois com inteligência. Haverá estupidez maior que atormentar-se um vivente por gosto? Será? Não será? Para que isso? Procurar dissabores! Será? Não será? (p. 148).
O de que sempre temos certeza é da dúvida de Paulo Honório. Ele é alguém que jamais fechará um raciocínio sequer, como veremos no desfecho.
Todo o foco central da ação desse personagem se liga à posse de São Bernardo e ao relacionamento com Madalena, e até nisso o narrador se utiliza das digressões, numa pretensa "desorganização natural" das lembranças. No capítulo dois, por exemplo, temos exposto seu grande objetivo na vida: "O meu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. " (p.11)
Porém, no capítulo 3, observamos um retrocesso temporal, pois o narrador apresenta-nos a sua história de vida - o menino de origem humilde, que vendia doces para a velha Margarida, e o guia de cegos; a prisão, o aprendizado mínimo da leitura na cadeia e a posterior saída, pensando já em "ganhar dinheiro" (p.13). Tal processo digressivo é flagrante tentativa de autojustificação; Paulo Honório usará de meios pouco lícitos para conseguir São Bernardo (aproveita-se da miséria e vício de Padilha, para conseguir a fazenda por valor baixo); sua infância sofrida, a falta de oportunidades, as dificuldades, tudo para "justificar" suas atitudes e a falta de remorsos.
Na verdade, não se conforma com o descaso de Padilha para com tão boa propriedade; era realmente muito injusto vê-la nas mãos de um farrista, e não em suas mãos, que, como veremos, trabalharão essa terra:
Trabalhava danadamente, dormindo pouco, levantando-se às quatro da manhã, passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e cartucheira, comendo nas horas de descanso um pedaço de bacalhau assado com um punhado de farinha. (p.29).
Claro que não podemos dizer que o narrador queira envolver, emocionalmente, o leitor. Não há interesse em deixar o leitor penalizado, justificando-se frente a ele, como se o estivesse fazendo frente à sociedade.
Se há alguém frente a que Paulo Honório queira justificar-se, esse alguém é ele mesmo, na busca do autoconhecimento.
A posse de São Bernardo, para ele, será fundamental. Adquiri-la significa adquirir respeito. A criança humilde aprendera que só os poderosos são respeitados, daí a obsessão por ganhar dinheiro, por mandar; nota-se tal procedimento já na posse da fazenda:

Pensei que, em vez de aterrar o charco, era melhor mandar chamar mestre Caetano para trabalhar na pedreira. Mas não dei contraordem, coisa prejudicial a um chefe. (p.28).

Paulo Honório personagem está-se acostumando a ser chefe, daí a necessidade de se impor para ser respeitado. Para isso São Bernardo chegará a ter objetos de que ele sequer se utiliza:
Comprei móveis e diversos objetos que entrei a utilizar com receio, outros que ainda hoje não utilizo, porque não sei para que sirvam. (p.39). Paulo Honório acredita que ter é fundamental. Sendo assim, tudo será válido para conseguir seu objetivo:
A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de São Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las . (p . 39).
E é por isso que tudo será avaliado pelo valor monetário que possui, até mesmo a velha Margarida:
A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu. (p.12 e 13).
É a isso que Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, chamará de "universo do ter", que se amplia a cada atitude sua. A instrução, a cultura, para ele, é uma das coisas mais inúteis – são supérfluas, frente à necessidade maior, que é a da posse. Mesmo assim, chegará a construir uma escola na fazenda, buscando, em troca, "a benevolência do governador" (p.44); assim será também com a igreja ("A escola seria um capital. Os alicerces da igreja eram também capital" - p. 44 e 45).
A filosofia do ter endureceu Paulo Honório. Ao pensar, por exemplo, em relacionamento entre homem e mulher, vê-os como "machos e fêmeas" (p.65).
Por isso, no casamento, buscará, inicialmente, o "herdeiro para São Bernardo", alguém capaz de herdar sua obsessão pelo ter.
Madalena parece adequada. Cogitando a possibilidade de casar-se com ela, imagina, de imediato, a reprodução dos "bons espécimes"; reproduzir filhos não é diferente de reproduzir animais:
Se o casal for bom, os filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootecnia. ( p. 87).
Sendo assim, também acredita que atrairá Madalena, mostrando-lhe o que há em São Bernardo, desde as aves até a extensão das terras.
Chega a, inclusive, colocar a Madalena o casamento como uma espécie de negócio, como algo que lhe possa "garantir o futuro":

- O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Job, entende?
- Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a um acordo, quem faz negócio supimpa sou eu. (p. 90).

Madalena não se revelará, mais tarde, como alguém que valorize os bens materiais (vemos, por exemplo, sua dedicação aos pobres e funcionários que viviam na fazenda), o que torna difícil acreditar que se tenha casado por dinheiro. Porém, não se podem fazer, por outro lado, colocações fechadas em relação ela; o narrador, em relação a Paulo Honório, mantém distância mínima, pois se trata de um processo de desdobramento, mas, em relação à Madalena, a distância é máxima.
Tudo isso significa que o leitor não tem acesso direto à consciência dela, o que reforça a ambiguidade - será que não haveria, por parte de Madalena, nenhum interesse financeiro, nenhuma necessidade de adquirir segurança por meio do casamento? O diálogo acima transcrito permite essa análise. Para dificultar ainda mais as coisas, não nos podemos esquecer de que quem conta essa história é Paulo Honório, diretamente envolvido com ela.
Por conseguinte, o foco narrativo é dele, o que gera uma visão parcial da história. O próprio narrador dará subsídios para este tipo de enfoque; vejamos, por exemplo, os comentários dele sobre a transcrição de um de seus diálogos com d. Glória:

Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras. O discurso que atirei ao mocinho do rubi, por exemplo, foi mais enérgico e mais extenso que as linhas chochas que aqui estão. A parte referente à enxaqueca de d. Glória (a enxaqueca ocupou, sem exagero, metade da viagem) virou fumaça. Cortei igualmente, na cópia, numerosas tolices ditas por mim e por d. Glória. Ficaram muitas, as que as minhas luzes não alcançaram e as que me pareceram úteis. É o processo que adoto; extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço. (p.77 e 78).

Se ele expurgou seu diálogo com ela, por que não faria o mesmo em sua conversa com Madalena, ou mesmo contaria tudo como lhe conviesse?
Mas por que Madalena? Ela não se revelará como alguém que se harmonize, em nada, com Paulo Honório; para ele, ela tem defeitos irremediáveis, como, por exemplo, ser culta, instruída, altruísta, ou pior, escreve artigos:

- Mulher superior. Só os artigos que publica no Cruzeiro!
Desanimei:
- Ah! Faz artigos!
- Sim, muito instruída. Que negócio tem o senhor com ela?
- Eu sei lá! Tinha um projeto, mas a colaboração no Cruzeiro me esfriou.
Julguei que fosse uma criatura sensata. (p. 85).

Porém, ele a escolheu. A justificativa que parece mais lógica é o fato de ela ser exatamente aquilo que ele não é. Paulo Honório - como já anteriormente citado - busca o respeito alheio, busca estabilizar-se e ser reconhecido. Uma esposa professora seria mais respeitável do que qualquer cabocla comum.
De início, ele imaginou-a como uma menina frágil, fácil de dominar.
Enganou-se: Madalena tem iniciativa, quer trabalhar, ajuda aos outros sem pedir autorização e não dá importância às aparências:

Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar afinar a minha sintaxe pela dela, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo. Tolice. Madalena não se incomodava com essas coisas. Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano. (p.95).

O protagonista sente necessidade de adaptar-se a ela, tenta de tudo, porém todas as tentativas são infrutíferas.
O grande problema é que as energias que regem a vida dos dois são diferentes: ele é regido pela posse, pelo ter; ela, pelo ser.
São diretrizes de vida muito diversas, daí a dificuldade de compreensão de Paulo Honório. A consequência será um ascendente ciúme; os alvos desses sentimentos serão vários: Padilha, seu Ribeiro, Gondim, Padre Silvestre, chegando ao ponto de imaginar que o amante vinha encontrá-la à noite, dentro de sua própria casa ("Três anos de casado. Fazia exatamente um ano que tinha começado o diabo do ciúme."- p. 164).
Madalena, apesar de forte, será destruída por tudo isso. Seu suicídio é o auge disso tudo:

"Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma branca nos cantos da boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado. No assoalho havia mancha de líquido e cacos de vidro. (p.165).

E, assim, chegamos ao momento presente. Justificativas e justificativas... No final, um Paulo Honório que escreveu um livro e só consegue ter certeza de sua solidão, seu estado de abandono, sua inutilidade:
“Cinquenta anos”! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?" (p.181).
A sequência de exclamações é icônica; temos, diante de nós, um homem revoltado, reconhecendo a inutilidade de sua vida. Isso o redime?:

Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte! A desconfiança é também consequência da profissão. (p.181).

Enfim, a circularidade da narrativa acontece: o mesmo Paulo do início, que reconhece, parcialmente, seu erro, mas a culpa é jogada aos fatores externos. Meio possível de acalmar a consciência, mas que não elimina a dor do reconhecimento e da perda. Quem queria acumular bens, mas acumulou perdas: destruiu a si e aos outros.

Assim, Paulo Honório torna-se apenas um ser humano, não típico espacialmente, mas um ser humano universal, capaz de refletir, mas incapaz de chegar a respostas definitivas.

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