sábado, 4 de julho de 2015
Clarice Lispector e A hora da Estrela
A hora da Estrela
Clarice Lispector
O romance “A Hora da
Estrela”, de Clarice Lispector, foi publicado pela Francisco Alves Editora, 17ª;
edição, da qual foram extraídas as citações utilizadas na análise.
Rodrigo S.M., narrador
onisciente, conta a história de Macabéa, personagem protagonista, vinda de
Alagoas para o Rio de Janeiro, onde vivia com mais quatro colegas de quarto,
além de trabalhar como datilógrafa (péssima, por sinal).
Macabéa é uma mulher
comum, para quem ninguém olharia, ou melhor, a quem qualquer um desprezaria:
corpo franzino, doente, feia, maus hábitos de higiene. Além disso, era alvo
fácil da propaganda e da indústria cultural (para exemplificar, seu desejo
maior era ser igual a Marilyn Monroe, símbolo sexual da época). Nossa
personagem não sabe quem é, o que a torna incapaz de impor-se frente a qualquer
um.
Começa a namorar
Olímpico de Jesus, nordestino ambicioso, que não vê nela chances de ascensão
social de qualquer tipo. Assim sendo, abandona-a para ficar com Glória, colega
de trabalho de Macabéa; afinal, o pai dela era açougueiro, o que lhe sugeria a
possibilidade de melhora financeira.
Triste, nossa
personagem busca consolo na cartomante, que prevê que ela seria, finalmente,
feliz... a felicidade viria do "estrangeiro".
De certa forma, é o
que acontece: ao sair da casa da cartomante, Macabéa é atropelada por Hans, que
dirigia um luxuoso Mercedes-Benz. Esta é a sua "hora da estrela",
momento de libertação para alguém que, afinal, "vivia numa cidade toda
feita contra ela".
"Enquanto eu
tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever. (...) Pensar é
um ato. Sentir é um fato."
Existe a necessidade
constante de descobrir-se o princípio, mas o homem, limitado que é, não conhece
a resposta a todas as perguntas. A personagem narradora não é diferente dos
outros homens, porém, mesmo sem saber tais respostas, de uma coisa ela tem
certeza e, por isso, ela afirma: "Tudo no mundo começou com um sim."
É preciso dizer sim para que algo comece, por isso, ela diz "sim" a
Macabéa. Alguém que forçou seu nascimento, sua saída de dentro do narrador,
tornando-se a nordestina, personagem protagonista de seu romance.
É o grito do narrador
que aparece no corpo de Macabéa: "Mas a pessoa de quem falarei mal tem
corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a
ninguém. Aliás - descubro eu agora - também não faço a menor falta, e até o que
eu escrevo um outro escreveria. Um outro escritor sim, mas teria que ser homem
porque escritora mulher pode lacrimejar piegas."
Assim, ela é uma entre
tantas, pois quem olharia para alguém com "corpo cariado", franzino,
trajes sujos, ovários incapazes de reproduzir? Com ela o narrador
identifica-se, pois ele também nada fez de especial (qualquer um escreveria o
que ele escreve); teria de ser escritor, mas nunca escritora; por outro lado,
não se pode esquecer de que quem escreve é Clarice Lispector, conforme se
afirma na dedicatória.
Dessa forma,
desencadeia-se, na primeira parte do livro, todo um processo de metalinguagem,
que entrecortará a narrativa até o seu desfecho. O narrador homem - Rodrigo S.
M. - tecerá reflexões sobre a posição que o escritor ocupa na sociedade, seu
papel diante dela e, principalmente, sobre o processo de elaboração da escritura
de sua obra:
"Escrevo neste
instante com prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior
e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá
quem sabe escorrer e coagular em cubos de geleia trêmula. Será essa história um
dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história
é verdadeira embora inventada - que cada um reconheça em si mesmo porque todos
nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade
por lhe faltar coisa mais preciosa do que ouro - existe a quem falte o delicado
essencial.
Proponho-me a que não
seja complexo o que escreverei, embora seja obrigado a usar as palavras que vos
sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai ter uns sete personagens
e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato
antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de
originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história
com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e chuva caindo."
Ironizando, repetidas
vezes, o desejo que os leitores têm da narrativa tradicional, Clarice Lispector
(aqui transfigurada no narrador Rodrigo S. M.), em contrapartida, não abre mão
de suas características mais marcantes, ou seja, a reflexão, o elemento acima
do enredo, o "silêncio e a chuva caindo", que marcarão a personagem
protagonista.
Como contar a vida sem
menti-la? Para isso, pondera o narrador, a narrativa há de ser simples, sem
arte. O narrador está enjoado de literatura. Não usará "termos
suculentos", "adjetivos esplendorosos", "carnudos
substantivos", verbos "esguios que atravessam agudos o ar em vias de
ação". A linguagem deve ser despojada para ser precisa e para poder alcançar
o corpo inteiro e vivo da realidade.
Como escreve o
narrador? "Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e
francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais
dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um
desonesto. (...) Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou.
A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que
eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim."
Chegamos, aqui, ao
ponto mais importante desse trabalho de metalinguagem: a consciência do escritor
como um marginalizado. É aqui que o narrador se funde com sua personagem: ambos
são marginalizados, num espaço que não os aceita. Tal fusão se dá em todos os
níveis - não apenas no desejo de simplicidade da linguagem despojada; para
poder falar de Macabéa, o escritor torna-se um trabalhador braçal, faz-se
pobre, dorme pouco, adquire olheiras fundas e escuras, deixa a barba por fazer,
lidando com uma personagem que insiste, com seus dezenove anos, mesmo tendo
"corpo cariado", comparada a uma "cadela vadia", "numa
cidade toda feita contra ela", em viver. Assim, personagem e narrador dão
seu grito de resistência em busca da vida.
A resistência de
Macabéa pode ser representada, por exemplo, nos momentos em que sorri na rua
para pessoas que sequer a veem; a resistência do narrador, na busca da palavra,
cheia de sentidos secretos... a "coisa", que, quando não existe, deve
ser inventada (o narrador escritor como senhor da criação).
Tanto Macabéa como a
palavra são pedras brutas a serem trabalhadas. A palavra será a mediadora entre
o narrador e o leitor, e entre o leitor e Macabéa, pois é por meio dela que conheceremos
a história da personagem, os fatos e, principalmente, o nascimento deles. O narrador,
ao contar Macabéa, conta a si mesmo, não só pelas sucessivas identificações com
a personagem, mas porque ela sai de dentro de si, imanente que é a ele
("pois a datilógrafa não quer sair de meus ombros.") .
Dessa união, nasce uma
nordestina vinda de Alagoas para o Rio de Janeiro. Datilógrafa, "o que lhe
dava alguma dignidade", fazendo-a acreditar que tal profissão indicava que
"era alguém na vida" (aqui, não lhe passa pela cabeça que é uma
péssima profissional, semi-analfabeta... ela não tem consciência de nada
disso).
Alguém com aparência
bruta, capaz de enojar suas quatro companheiras de quarto (na pensão onde
morava), trabalhadoras das Lojas Americanas:
"... dormia de
combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de sangue pálido (...) Dormia
de boca aberta por causa do nariz entupido.
Ela nascera com maus
antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar
por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas
chamavam-se ‘panos’, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com
grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento.
Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e
blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como
avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso
mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele
do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém
olhava para ela na rua, ela era café frio.
Assoava o nariz na
barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só
eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela."
Sua falta de percepção
física acompanha a psicológica. Começa com o fato de ela ser alvo fácil da
sociedade consumista e da indústria cultural: gosta de colecionar anúncios;
seus parcos conhecimentos são extraídos da Rádio Relógio (informações ouvidas,
mas nunca entendidas); gosta de cachorro-quente e Coca-Cola. Aceita tudo isso
sem questionar, pois teme as conclusões a que pode chegar (arrepende-se em
Cristo por tudo, mesmo não entendendo o que isso significa; não se vingava
porque lhe disseram que isso é "coisa infernal"; apaixona-se pelo
desconhecido, como no caso da palavra "efemérides", mas nunca
procurava, efetivamente, conhecer o incognoscível, pois era mais fácil
aceitar-lhe a existência e admirá-lo a distância).
Consequentemente,
torna-se personagem "torta", de tanto encaixar-se num meio que tanto
a repele. O próprio emprego de datilógrafa é revelador: ela o era por acreditar
que este lhe dava alguma dignidade. Buscava a dignidade, como se não tivesse
direito a ela. Outro dado revelador é seu relacionamento com Olímpico,
desculpando-se com ele todo o tempo, chegando a dizer-lhe que não é muito
gente, que só sabe ser impossível. Ela não se defende por seus próprios valores,
mas tenta adaptar-se aos valores do namorado, nunca discutindo a validade
deles.
Olímpico representa o
contraponto em relação a Macabéa. Seus valores em nada se relacionam aos dela:
metalúrgico, quer ser deputado, afastar-se de Macabéa e ficar com Glória, a
loira oxigenada, colega de trabalho de Macabéa; afinal, o pai dela era
açougueiro, o que lhe dava maiores perspectivas de vida.
E tudo isso é,
literalmente, engolido, tão deglutido, que ela não admite a ideia de vomitar; afinal,
isso seria um desperdício.
Ao mesmo tempo, é
sensual em seus pensamentos, ou nos momentos de solidão, como quando viu o homem
bonito no botequim, ou ainda quando ficou em casa - ao invés de ir trabalhar -
vivendo a sensação de liberdade. O prazer em Macabéa é algo que sempre se alia
à dor. Ao ver o homem, por exemplo, apesar do prazer que tal visão lhe dá, há o
sofrimento por não o possuir e por ter a certeza de que alguém assim é mesmo só
para ser visto. Macabéa já havia experimentado essas sensações contraditórias
com outra pessoa, a tia, que, ao bater na menina, sentia prazer ao vê-la
sofrer: "... e ela era só ela", imune à vida, vida que era morte, por
tanta aceitação.
O instinto de vida,
que está ligado ao prazer, vem sustentá-la. Diz o narrador: "Penso no sexo
de Macabéa (...) seu sexo era a única marca veemente de sua existência."
E ainda, mais adiante,
ligando o prazer à morte: "Ela nada podia mas seu sexo exigia, como um nascido
girassol num túmulo."
De que "relação
sexual" se pode falar no caso de Macabéa? Da relação com a própria vida,
que ela insiste em manter, no seu conceito tão particular de beleza: usava
batom vermelho, queria ser atriz de cinema com Marylin Monroe, apreciava os
ruídos, pois eram vida.
Essas sensações se
intensificam quando vai à cartomante Carlota (por recomendação de Glória), no
momento em que esta lhe revela: a felicidade viria de fora, do estrangeiro. A cartomante
mostra-lhe a tragédia que é sua vida (coisa de que, até o momento, não havia tomado
consciência), mas, ao mesmo tempo, dá-lhe a esperança de acreditar que as
coisas poderiam ser diferentes... a possível felicidade.
Quando sai da casa da
cartomante, é atropelada por Hans, que dirigia um automóvel Mercedes-Benz,
momento em que a vida se torna "um soco no estômago":
"Por enquanto
Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. (...)
Tanto estava viva que
se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal. Grotesca como sempre
fora. Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava
a si mesma com vontade do doce nada. Era uma maldita e não sabia. (...)"
A morte dela é o
momento em que Eros (Amor) se une a Tanatos (Morte), vida e morte, num momento
doce, e sensual:
"Então - ali
deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte.
(...) E havia certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é como a pré-morte
se parece com a intensa ânsia sensual? É que o rosto dela lembrava um esgar de
desejo. (...)
Se iria morrer, na
morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte pois não a quero para a
moça: só um atropelamento que não significava sequer um desastre. Seu esforço
de viver parecia uma coisa que se nunca experimentara, virgem que era , ao
menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro
vagido. O destino de uma mulher é ser mulher. Intuíra o instante quase dolorido
e esfuziante do desmaio do amor. Sim, doloroso reflorescimento tão difícil que
ela empregava nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma. (...)
Nesta hora exata,
Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que
não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.
O que é que eu estou
vendo agora é e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto
espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!"
Sua boca, agora,
vermelha como a de Marylin Monroe, no apogeu orgásmico da morte, grita, pela
primeira vez, depois de vomitar, à vida:
"E então - então
o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para
os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer,
a vida come a vida."
Chegamos, afinal, ao
momento da epifania do narrador fundido à Macabéa: é a vida que grita por si
mesma, independente da opressão e da marginalização social. O momento,
entremeado com silêncio, da consciência a que se chega pelo ato de escrever:
"(...) O instante
é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca
no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc. , etc., etc. No
fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
Eu vos pergunto:
- Qual é o peso da
luz?
E agora - agora só me
resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a
gente morre. Mas - mas eu também?!
Não esquecer que por
enquanto é tempo de morangos.
Sim."
Enfim, descobrimos,
agora, que tudo começa e acaba com um sim. Também é preciso coragem para
morrer, silêncio para ouvir o grito da vida.
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