"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A beleza de um texto bem escrito!!!

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DORALICE


Leonardo, Elias e João. Sempre foram bons amigos. Desde que nasceram, presumem. Como apóstolos, príncipes, cavaleiros, mosqueteiros. Se recuperassem os filmes de suas vidas poderiam conferir nelas cada momento em que um fez parte da vida do outro.
Quando crianças, sem problemas. Viveram de brincar, perseguir gatos e borboletas, chapinhar com os pés as águas dos riachos, pescar e fritar, em fogo da idade da pedra, os lambaris fisgados em tardes de sol. Viveram de brigar por pouca coisa ou nada, de futebol com bola gasta e gol entre tijolos e garra, de catar frutas oferecidas nos pomares dos vizinhos, como passarinhos libertinos. Enfim, um mini paraíso de amizade plena sem saber de seus usufrutos.
Na escola, horas sérias de desenhar os futuros, eram inseparáveis. Dividiam dúvidas de aprendizagem, curiosidades, tarefas, interesses e descobertas, os castigos e as pequenas malandragens.
Na época de adolescer, o incandescente da vida das gentes, as coisas todas começaram a mudar de figura. O amor chegava sorrateiro e se instalava como única estação. Trazia novas performances. Eis que os três amigos, talvez por conta de tantas histórias tramadas, acabaram atraídos pela mesma quase-mulher, num arrebol tentador.
Doralice. Escandalosamente bela nesse acortinado adolescente e romântico. Era tão dona do nariz! E do coração dos três. Ela não precisou pedir licença para entrar no céu amoroso de cada um. Arrebatou toda a harmonia amiga do trio de amigos.
Para Leonardo, Doralice era luz que amanhecia, perdurava em seu quarto e em sua alma. Era existência em seus suspiros e latejamentos pelo corpo todo. Incontrolável e irresistível. Para Elias, uma espécie de arco-íris, estrela-guia ou bússola que conduzia o seu destino. Onde quer que fosse, onde quer que olhasse, o que pensasse, só dava Doralice. João a tinha encravado no seu DNA mais primitivo. Parecia haver uma sina de Doralice em sua vida. Uma predestinação. Doralice era uma musa. Era um som que começara caótico, dissonante e resplandecia em cadeia de notas musicais, diáfanas, com perfume e forma. Assim, apenas com um leve toque Doralice era uma sinfonia, um espetáculo, um turbilhão. Ela ocupava lugar nobre, importante, único e super real na vida dos três. Sonho e realidade. Em gigabytes.
Quando e como começou essa aventura não sabiam. Todo mundo em casa foi notando. Devagarinho. Mas o dia exato, do calendário, do relógio, ninguém sabe, ninguém viu. Agora, todos os dias são de paixão e comichões. Mesmo num canto, isolados, ficam irmanados pela doce e cruel presença. Doralice é a TV, a carícia, os cabelos, as desculpas, os olhos úmidos, o comercial, o vento, o dia e a noite, o alimento, a febre, o chamado... Coisas de amor eterno. Tudo esquentava, avermelhava-se e liquefazia-se. Doralice era um renascimento constante dentro de cada um. Um deslumbramento infindo. Ponto de espera. Num intento individual, cada um arquitetava um jeito doido e inventado de roubar aquele feminino e mágico coração para sempre.
Doralice era sinal de amor único e verdadeiro.
Um não contava para o outro em palavras. Mas nas atitudes, nos olhares, nos gestos de corpo não havia mais álibis sustentadores ou segredos a encobrir. Nessa hora criaram involuntariamente uma confraria particular. A confraria do triângulo. Longos dias de conversa e negociação. Os argumentos não transformavam essas coisas do coração. O inusitado do amor não poderia ser dissecado e decidido ali. Era se entregar a essa dança da vida que corria a fervilhar feito éter na veia da tríade de amigos ferrenhos. Nessa hora, um vislumbre de bom senso e sorte. O amor tinha também dessas coisas. Idéias. Estratégias de salvação.
Doralice seguia livre, feito música sem pauta, vôo sem pássaro, perfume sem ar no vigoroso céu de encantamento dos três. Seu olhar Capitu, seu sorriso Mona Lisa e seu capricho de miss top model se despejavam gratuitamente no poço fecundo do mais íntimo de cada um. Eles não se aguentavam. Não dormiam direito. Estavam aflitos para ficar à sós, eternamente nos céus de Doralice.
Quando abriram o jogo na confraria provisória do amor em estado de desespero foi um primeiro alívio. Mas só isso. Haveria outros impasses. Por quê? Como resolver isso? Não poderia existir três Doralices. Conheciam os dois maridos de Dona Flor. Poderia haver três maridos para uma mesma Dona Doralice? Na vida isso não era tão maravilhoso como nas entrelinhas dos livros. Na vida real existe gente que tem amantes diversos. Mas quem está estreando no amor, com os fluídos brotando nos pelos, nos músculos, na intensidade da voz, no volume dos tecidos, nos sonhares mais originais não se inicia assim. O caminho para a entrada do amor era outro. Era Doralice. Vertiginosamente.
O ponto estratégico fora decidido, carimbado e assinado pela palavra dos três mais que amigos. Vamos dar corda. Com quem ela ficar, ficará. E isto será líquido e certo. Corroeram-se por dentro para aceitar o decreto crucial. Muito pior que marcar 300 gols contra o timão na final. Pacto feito. Entre os três.
Preparam suas armas e lançaram-se à sorte. Paquerar e seduzir honestamente, sem jogo sujo e sem mentiras. Dardos sutis no alvo Doralice. Cada qual com seu jeito - tímido, ousado, intelectual – até que a bela princesinha desse oeste selvagem pungente de paixão tomasse o rumo do seu desejo, por fim.
Doralice foi perseguida e galanteada durante mais de três meses pelos três flechados por Cupido em situações díspares e alternadas. Acho que ela gostou. Muito. Os meninos tiveram o prazer temporário de experimentar as artimanhas do jogo do amor. Puderam ficar com a Doralice sonhada em alguns tempos especiais de vida enlevada e amorosa. Beijos aconteceram e alguns encontros mais ou menos íntimos, até os primeiros bastas e os agora não, não sei... Pelo andar da carruagem os meninos estavam afoitos demais. E tudo acabava virando um filme açucarado.
A história deles não acabou. Mal começou! Não falaremos dos outonos e invernos da vida. É plena primavera. Tudo floresce nos quatro cantos. E a geometria do tempo tudo azulará.
Conto no ponto que está. Depois das investidas dos cavaleiros do amor, posso presumir que eles não apostaram que tão nobre sentimento dá voltas, curvas e piruetas. Às vezes a gente não costuma nem sequer prever que ele nos pega desprevenido. Ele tem dessas coisas também. Quando menos esperavam e se entregavam a convencer cada amigo rival sobre a melhor performance amorosa, mal sabiam que ela, a Doralice, andava às voltas e meia com um recém chegado à escola e que estava fazendo a sua entrada triunfal no pedaço. Nem tão bonito, nem tão inteligente, nem tão irreverente à primeira vista. O fato é que se inaugurava nova disputa sem armas iguais. Os meninos foram percebendo que os olhares mais lânguidos, a cumplicidade e a bem-querença estampada no olhar feminino, nunca visto, se dirigiam agora para um ponto só. Para o estranho sem histórias que chegava sem alardes marcando ponto certeiro no coração da bem amada.
O que vai dar, não sei. O triângulo se dissolve como rascunho de cartografia. Parece que o que está acontecendo com os meninos é que eles estão abrindo os olhos e corações para outras meninas. O amor dá chances. Promove infinitas surpresas. Mesmo que passageiras e temporárias. O nosso coração sabe disso. Sem confrarias e pactos, gasta o tempo verificando quantas Doralices podem existir para dar lugar a um novo amor.

Antonio Gil Neto
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