"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 26 de abril de 2014

Poema 20, de Pablo Neruda

Poema 20

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros, ao longe”.

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a quis, e às vezes ela também me quis...

Em noites como esta eu a tive entre os meus braços.
Beijei-a tantas vezes debaixo do céu infinito.

Ela me quis, às vezes eu também a queria.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.   

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E cai o verso na alma como na relva o orvalho.

Que importa que meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se contenta com tê-la perdido.

Como para aproximá-la meu olhar a procura.
Meu coração a procura, e ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquear as mesmas árvores.
Nós, os de outrora, já não somos os mesmos.

Já não a quero, é verdade, mas quanto a quis.
Minha voz procurava o vento para tocar o seu ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Já não a quero, é verdade. Mas talvez ainda a queira.
É tão curto o amor, e é tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta eu a tive entre os meus braços,
minha alma não se conforma em tê-la perdido.

Ainda que esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo.



Pablo Neruda

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Análise do conto: A caolha

A caolha
de Júlia Lopes de Almeida
http://juarezfrmno2008sp.blogspot.com.br/2008/11/caolha.html


Elementos estruturais
Quanto ao narrador, o conto apresenta o foco narrativo com o narrador onisciente seletivo. Existem alguns sumários narrativos nesta obra, sendo que o narrador, em 3ª pessoa, não participa do enredo, é predominantemente extradiegético, mas através do discurso indireto livre, consegue externar o ponto de vista das personagens.
Sabendo-se que o enredo não deve ser apenas um resumo, e sim, o conjunto dos fatos (acontecimentos) de uma história, e que toda história tem como começo, meio e fim, o que chega a implicar numa estrutura conflitosa, pode-se afirmar que o enredo se divide nas seguintes partes: exposição, complicação, clímax e desfecho. Na obra em questão, a exposição corresponde à descrição da protagonista e dos ambientes em que ocorrem as cenas, o sofrimento da mulher e de seu filho adolescente. A complicação surge com a paixão de Antonico por uma moça que impôs condições para que pudesse corresponder ao amor recebido. A condição era que o rapaz se afastasse da mãe. Já o clímax se dá quando a protagonista não aceita a situação e se revolta contra a proposta do filho, culminando com a expulsão do jovem e o sofrimento ainda maior entre os dois. Sumarizando, o desfecho está nas linhas finais do conto, quando o filho descobre o verdadeiro motivo da desgraça que sofreu a mãe.
Dentre as personagens que se destacam está a caolha (protagonista) e seu filho Antonico, a moreninha por quem Antonico se apaixonou, e a madrinha. Além destas, podem ser observadas também outras, as personagens secundárias que apenas atuam como figurantes povoando os ambientes descritos. A moreninha, por sua postura desapropriada, pode ser considerada uma antagonista, isto é, uma anti-heroína.
O espaço (horizontal) é predominantemente físico, isto é, os ambientes onde se passam as ações. A humilde casa da protagonista, o colégio, os locais onde Antonico trabalhava. Se dividem em espaços abertos e fechados. São espaços abertos aqueles que retratam ambientes como ruas, jardins, espaços voltados para a natureza, etc. Pode também se falar em espaços psicológicos, nas passagens em que são narradas a reclusão do mundo das personagens, visto que Antonico passava longos intervalos de tempo sem sair de sua casa, uma citação da pequenez do espaço vivido.

O tempo, aparentemente se enquadrando nos moldes da escola literária do Realismo, não é citado explicitadamente na narrativa, entretanto o leitor pode pressupor que historicamente este seja apontado como sendo o final do século XIX ou as primeiras décadas do século XX, seja pelas expressões que nos remete para a referida época, e também pela falta de citações que indiquem tratar-se de algum período mais afastado da contemporaneidade. Quanto ao tempo de duração dos acontecimentos, pode-se dizer que é de aproximadamente 20 anos, visto que relata os fatos desde que a idade do rapaz ainda criança de colo, até a idade em que ele pensa em se casar.
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Curiosidade é uma coceira nas ideias


Eu estava com a cabeça quente. Queria descansar, parar de pensar. Para parar de pensar, nada melhor que trabalhar com as mãos. Peguei minha caixa de ferramentas, a serra circular e a furadeira e fui para o terceiro andar, onde guardo os meus livros.
Iria fazer umas estantes. As tábuas já estavam lá. Nem bem comecei a trabalhar de carpinteiro e fui interrompido com a chegada da faxineira. Com ela, sua filhinha de sete anos, Dionéia. Carinha redonda, sorriso mostrando os dentes brancos, trancinhas estilo afro. O que era de se esperar para uma menina da idade dela era que ficasse com a mãe. Não ficou. Preferiu ficar comigo, vendo o que eu fazia. Por que ela fez isso? Curiosidade. Curiosidade é uma coceira que dá nas ideias... Aquelas ferramentas e o que eu estava fazendo a fascinavam. Queria aprender.
"O que é isso que você tem na mão?", ela perguntou. "É uma trena", respondi. "Para que serve a trena?", ela continuou. "A trena serve para medir. Preciso de uma tábua de 1,20 m. Assim, vou medir 1,20 m. Veja!"
Puxei a lâmina da trena e lhe mostrei os números. Ela olhou atentamente. "Você já sabe os números?", perguntei. "Sei", ela respondeu. Continuei: "Veja esses números sobre os risquinhos. O espaço entre esses risquinhos mais compridos é um centímetro. Um metro tem cem centímetros, cem desses pedacinhos. Veja que, de dez em dez centímetros, o número aparece escrito em vermelho. É que, para facilitar, os centímetros são amarrados em pacotinhos de dez. Um metro é feito com dez pacotinhos de dez centímetros. E 1,20 m são dez desses pacotinhos, para fazer um metro, mais dois, para completar os 20 centímetros que faltam". Marquei 1,20 m na tábua com um lápis e me preparei para cortá-la.
Assim se iniciou uma das mais alegres experiências de aprendizagem que tive na vida. A Dionéia queria saber de tudo. Não precisei fazer uso de nenhum artifício para que ela estivesse motivada. O que a movia era o fascínio daquilo que eu estava fazendo e das ferramentas que eu estava usando. Seus olhos e pensamentos estavam coçando de curiosidade. Ela queria aprender para se curar da coceira... Os gregos diziam que a cabeça começa a pensar quando os olhos ficam estupidificados diante de um objeto. Pensamos para decifrar o enigma da visão. Pensamos para compreender o que vemos. E as perguntas se sucediam. Para que serve o esquadro? Como é que as serras serram? Por que é que a serra gira quando se aperta o botão? O que é a eletricidade?
Lembrei-me de Joseph Knecht, o mestre supremo da ordem monástica Castália, do livro "O Jogo das Contas de Vidro", de Hermann Hesse. Velho, ao final de sua carreira, no topo da hierarquia dos saberes, ele se viu acometido por um enfado sem remédio com tudo aquilo e passou a sentir uma grande nostalgia. Ele queria descer da sua posição para fazer uma coisa muito simples: educar uma criança, uma única criança, que ainda não tivesse sido deformada pela escola. Pois ali estava eu, vivendo o sonho de Joseph Knecht: a Dionéia, que ainda não fora deformada pela escola. Seu rosto estava iluminado pela curiosidade e pelo prazer de entrar num mundo que não conhecia.
Lembrei-me de Aristóteles em "Metafísica": "Todos os homens têm, por natureza, um desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até de sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais...".
Acho que ele errou. Isso não é verdade para os adultos. Os adultos já foram deformados. Acho que ele estaria mais próximo da verdade se tivesse dito: "Todos os homens, enquanto são crianças, têm, por natureza, desejo de conhecer...".
Para as crianças, o mundo é um vasto parque de diversões. As coisas são fascinantes, provocações ao olhar. Cada coisa é um convite.
Aí a Dionéia sumiu. Pensei que ela tivesse voltado para a mãe. Engano. Alguns minutos depois ela voltou. Estivera examinando uma coleção de livros. "Sabe aqueles livros, todos de capa parecida? Os três primeiros livros estão de cabeça para baixo." Retruquei: "Pois ponha os livros de cabeça para cima!".
Ela saiu e logo depois voltou. "Já pus os livros de cabeça para cima." E acrescentou: "Sabe de uma coisa? O livro com o número 38 está fora do lugar". Aí aconteceu comigo: fui eu quem ficou estupidificado... Ela, que não sabia escrever, já sabia os números. 
E sabia mais, que os números indicavam uma ordem. Fiquei a imaginar o que acontecerá com a Dionéia quando, na escola, os seus olhinhos curiosos serão subtraídos do fascínio das coisas do mundo que a cerca e vão ser obrigados a seguir aquilo a que os programas obrigam. Será possível aprender sem que os olhos estejam fascinados pelo objeto misterioso que os desafia?
Pois sabe de uma coisa? Acho que vou fazer com a Dionéia aquilo que Joseph Knecht tinha vontade de fazer...



Rubem Alves, 80, é educador, psicanalista, escreve histórias para crianças e crônicas para adultos. Alguns de seus principais livros são: "O Médico", "Por uma Educação Romântica" (ambos da editora Papirus) e "Livro sem Fim" (Loyola).