"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Macaquice lingüística

....Cá estou eu, ocupando este espaço que o Professor Juarez me confia. E não deixo por menos! Quero começar gritando contra nosso incrível complexo de inferioridade, verdadeira macaquice, estúpida mania de imitar, ignorantemente, tudo aquilo que os queridos “irmãos do norte” fazem.
....Não basta a verdadeira humilhação a que se submetem os brasileiros nas intermináveis filas do consulado americano, com o intuito de obter o precioso visto para comprar tênis em Miami? Não basta o besteirol lingüístico de gente como Luciano do Valle, que insiste em dizer “arina”, “steidium” e outras tolices, em explícitas demonstrações de colonialismo cultural e de desconhecimento da origem e do significado das palavras? E o incrível Elia Júnior, com o seu “delay”? “Tivemos um pequeno delay na transmissão”, diz o inventor do “É pá e bola!”.
....Um locutor de uma FM anuncia o “Tempra Stail”, burra pronúncia inglesada da palavra italiana “stile”, que significa “estilo”. A Fiat, fábrica italiana, não tem vergonha de sua língua pátria e batiza seus produtos com nomes italianos: “Tempra”, que significa “têmpera”, “Palio”, que significa “estandarte” e é o nome de uma festa típica de Siena e Lucca, “Mille”, que significa “mil” etc. Nós, macacos, não fazemos a mínima questão de pronunciar direito nada que venha de língua estrangeira que não seja o inglês. E mais: encarregamo-nos de inglesar tudo.
....Como se não bastassem todas essas manifestações de americanismo doentio, bobo, sou obrigado agora a agüentar mais uma “novidade”. Foi um querido médico e jornalista de Curitiba, Freitas Neto, um culto e respeitável senhor de 74 anos, que me deu a dica. Perguntou-me se eu já havia notado uma “pérola” que as emissoras brasileiras de televisão adotaram há algum tempo. Trata-se da palavra “vivo”, escrita num canto da tela, para indicar, obviamente, que a transmissão é “ao vivo”. Fui verificar e constatei que o bem-humorado Freitas tinha razão.
....Por que “vivo”? De onde terá vindo a inspiração para tamanha demonstração de criatividade? Claro, da matriz. Como nas emissoras (CNN e companhia bela) aparece “live” (que, ao pé da letra, significa “vivo”), num canto da tela, pronto! Palavra mágica! Se na matriz é uma palavra só, na colônia, na filial, também basta uma palavra. Então o que era “ao vivo” virou simplesmente “vivo”. É melhor colocar “morto”. E terminar com uma inscrição: “Aqui jaz a língua portuguesa, assassinada por basbaques, incultos, presunçosos, vendilhões do templo etc.”
....Existia em São Paulo uma empresa pública conhecida por “CMTC”, sigla que significava “Companhia Municipal de Transportes Coletivos”. A expressão é perfeitamente adequada à estrutura da língua portuguesa: um substantivo, “companhia”, caracterizado pelo adjetivo “municipal” e pela locução adjetiva “de transportes”; por sua vez, o substantivo “transportes”, base da locução adjetiva, é caracterizado pelo adjetivo “coletivos”. Repito que a expressão toda é portuguesíssima. Pois bem, o ex-prefeito de São Paulo resolveu fechar a CMTC, para fundar a “São Paulo Transporte”. Esse nome não é português, é inglês. Em inglês, é possível combinar dessa maneira dois substantivos (London Airport, New York City, Chicago Bulls). A língua portuguesa não combina dois substantivos assim. Em português, seria “Transporte de São Paulo”. E é exatamente aí que mora o perigo. Os lingüistas dizem que uma língua começa a ruir quando sua estrutura começa a ser destruída. Mais uma vez, parabéns aos incultos, basbaques, presunçosos, vendilhões do templo etc.
....Quando a demonstração de ignorância vem do poder público, então, que maravilha! Veja-se o caso da palavra “memorial”. Experimente verificar seu significado em um bom dicionário da língua portuguesa. Em quem você acredita mais? Em José Saramago, monumento vivo da língua portuguesa, ou numa “otoridade” qualquer? José Saramago escreveu a obra-prima Memorial do convento, em que, como o nome diz, relata memórias, fatos memoráveis relativos à construção do Convento de Mafra, encantadora cidade portuguesa. Se você prefere acreditar num de nossos cultos governantes, cuidado! Algum deles, certamente babando diante de algum monumento visto durante uma visita à pátria-mãe (United States of America), voltou à colônia com a palavra certa para batizar monumentos erguidos por aqui. “Memorial”, em inglês, é palavra usada exatamente para isso. “Memorial”, em inglês, significa “monumento comemorativo”. Algum basbaque tupiniquim, deslumbrado com as tranqueiras compradas na Galeria Pajé — desculpem, em Miami —, fez a tradução ao pé da letra. Essa palavra é usada indevidamente no Brasil como sinônimo de monumento (Memorial JK, em Brasília, e Memorial da América Latina, em São Paulo, por exemplo). Dá-lhe colonialismo! Dá-lhe macaquice!
....O que fazer? O buraco é mais embaixo. A solução não é tão simples. A coisa leva muito tempo, ou melhor, levaria muito tempo, se algo já estivesse sendo feito.



Até a próxima. Um forte abraço.

Pasquale Cipro Neto

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