"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

“Hoje é permitido:

Ao mundo, consolidar a paz;

Aos governos, destruírem as armas;

Aos homens, redescobrirem a emoção e reinventarem o amor;

Aos gananciosos, não explorarem os outros;

Aos abastados, dividirem sua riqueza com os necessitados;

A humanidade, proibir que criancinhas morram de fome e de abandono;

Ao povo brasileiro, construir uma nação mais justa e mais igualitária;

A fauna e a flora, não sofrerem ataques predatórios;

E a todos os seres humanos, crerem que a utopia possa não ser tão utópica.

Feliz 2010

domingo, 20 de dezembro de 2009

Por que ler a Bíblia é essencial para entender o mundo em que vivemos

"No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado o Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim. (...) Disse então Maria: Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra! E o Anjo a deixou."

Extraída do Evangelho de São Lucas, a passagem acima é uma das mais belas e conhecidas daquele que é, por sua vez, o livro mais lido e célebre de todos os tempos, a Bíblia. Só nessa pequena passagem, tem-se uma síntese de uma questão que está no centro da Bíblia. Como, afinal, esse livro escrito no decorrer de mais de 1.000 anos deve ser lido? Como uma transcrição direta da palavra de Deus, segundo creem tantos? Como um livro histórico, tão somente? Ou, conforme querem outros, como uma ferramenta que grupos diversos podem manejar na busca por poder e supremacia? Seria possível imaginar que, passadas dezenas de séculos do advento desse livro, tais questões não mais teriam lugar no mundo moderno. Sucede exatamente o contrário. A religião nunca deixou de ser força motriz dos rumos da história do homem, tampouco fonte de tensão. E, na última década em especial, ela ressurgiu com efeito redobrado no centro do cenário político global. De onde ler a Bíblia e entender como ler a Bíblia não é nem de longe um conhecimento periférico na vida do século XXI.

Muitos estudiosos se dedicam a mostrar como a forma, o estilo e a escolha de palavras são decisivos no que a Bíblia diz. E mais essencial ainda é o contexto em que ela diz o que diz. O judaísmo e seu descendente (e dissidente), o cristianismo, são fundamentalmente religiões narrativas – muito mais do que qualquer outra das grandes religiões, monoteístas ou não. Vem daí muito da força e da influência sem paralelo da Bíblia sobre o pensamento de uma parcela grande da humanidade, aquela abrangida no que se costuma chamar de civilização judaico-cristã: sem que se faça aqui nenhum julgamento, de natureza alguma, sobre o papel de cada uma das religiões na história dos homens, é um fato da ciência sociopolítica que o judaísmo e o cristianismo tiveram um impacto ilimitado nos rumos dessa história.

Porque contam, entre todas as fés, com o mais extenso, detalhado, profundo e variegado plano jamais disposto para os seguidores de uma divindade, do surgimento do mundo ao seu fim, ou sua transmutação total no reino de Deus: a Bíblia, um conjunto vasto não apenas de ensinamentos, ditames e reflexões, mas de histórias arraigadas em nossa cultura. Para ateus e agnósticos, essa é uma razão para ler a Bíblia: para descobrir por que mesmo quem não crê compartilha a mesma herança que os que creem. É como se a Bíblia e a tradição que ela carrega fossem, enfim, o DNA da civilização ocidental: crer ou não crer corresponde àquela porcentagem infinitesimal de diferenças genéticas que nos separam todo o resto, ou 99% dos genes, são comuns a todos nós.

FONTE: VEJA, 18 de dezembro de 2009

http://veja.abril.com.br/noticia/variedades/ler-biblia-essencial-entender-mundo-vivemos-521392.shtml

sábado, 19 de dezembro de 2009

Escola ao Ar Livre

Num momento em que o caos urbano se instala em toda parte do País, o rural se torna um espaço de refúgio. Mas o discurso desse rural como garantia de qualidade de vida é secular, de acordo com a dissertação do mestre em educação física pela Unicamp André Dalben. Orientado pela professora Carmen Lúcia Soares, Dalben foi em busca da origem do discurso médico que sugere o ambiente ao ar livre como garantia de saúde. A descoberta foi a Escola ao Ar Livre, nascida na Europa no início do século 20 e proposta, na década de 1930, pelo então Departamento de Educação Física da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A pesquisa foi apresentada por Dalben no Ciclo de Seminários do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp.
Dalben constatou que, no início do século 20, a criação da escola ao ar livre estava ligada ao surto de tuberculose. Além da escola, estavam entre as propostas de governo a temporada em colônias de férias e a construção de parques infantis em espaços urbanos. A ideia da colônia passava pelo discurso médico de que o contato com a natureza e os exercícios ajudariam a revigorar o corpo das crianças com problemas de desenvolvimento. As praias e as montanhas eram eleitas como os lugares mais adequados para o desenvolvimento da criança. “Os escolares considerados mais fracos e desnutridos eram enviados para uma temporada de 15 dias em Santos ou em Campos do Jordão”, acrescenta o pesquisador.
Além de proporcionar reforço à saúde das crianças, a experiência nas colônias incluía a cultura de hábitos higiênicos e a oferta de alimentação saudável, supervisionada por um profissional. Os parques infantis, oferecidos a crianças de séries inicias, eram construídos no espaço urbano, mais precisamente no Parque da Água Branca, onde funciona a Secretaria da Agricultura. As aulas eram assistidas em carteiras portáteis e o programa tinha como principal objetivo a prática de exercícios físicos.
A proposta da escola ao ar livre, de acordo com a dissertação, durou até a década de 1950. “Mas com o tempo isso foi se perdendo, até a escola se tornar a que conhecemos hoje”, diz Dalben. Na época em que a escola ao ar livre foi criada não existia o espaço da academia, do exercício feito debaixo de um teto e entre quatro paredes, mas, como acontece nos dias atuais, a realização das atividades em ambiente externo era uma forma da classe médica alertar para os problemas do crescimento da cidade.
Hoje, a área de turismo explora o rural como um lugar para fugir do estresse do caos urbano onde se encontra qualidade de vida. “Os médicos, na época, queriam alertar sobre os problemas da cidade. O que via no discurso médico era uma aversão a ambientes fechados, até mesmo pelo surto de tuberculose”, reforça Dalben. Na época, a escola cercada de cercas-vivas garantiria, na visão dos médicos a purificação do ar e o combate à tuberculose.
.
.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Espírito do Natal

O “espírito do natal” impregna o ar. Ele está nos lares e nas almas bondosas que habitam este planeta. Através da TV e da Internet irradia imagens e mensagens que, como um imperativo categórico, apoderam-se das nossas mentes. Ele está nas ruas, nas lojas, em shopping center e nas calçadas onde se ofertam tudo o que o materializa. Até mesmo na rua em que moro, uma voz, amplificada pelo som de um carro que passa, anuncia que a “farmácia tal” deseja Feliz Natal e etc. Um vereador do bairro teve a mesma idéia. Quanta emoção!

É impossível se desvencilhar do espírito natalino (Eis a tirania da maioria!). Ele se traduz em belas palavras repetidas mecanicamente e à exaustão. A Internet contribui para propagá-lo. Empresas e indivíduos, para quem somos apenas um e-mail, enviam cartões de natal, sons e slides em PowerPoint, imagens e palavras que emocionam. Basta que façamos parte do seu catálogo de endereço. Com apenas um clique enviam milhares de e-mails. Os computadores são infestados pelo “espírito natalino”. Seria um novo tipo de vírus?! Mensagens formais que alimentam o “espírito do comércio” e os egos esvaziados de sentido real. Tudo muito impessoal.

Tento compreender. Fico a pensar se devo enviar votos de “Feliz Natal e Próspero Ano Novo” para os mais de oito mil e-mails do meu catálogo de endereços. Seria uma boa estratégia para espalhar o bem e fortalecer a “corrente do bem”? Desejar o bem sem olhar a quem deve fazer bem a quem o deseja. Mas não soa falso fazê-lo dessa maneira? Entre estes milhares de e-mails conheço alguns pessoalmente e outros representam amizades virtuais. Com estes a relação é direta e individualizada. De qualquer forma, desejo, de coração, o bem de todos, inclusive aos que não conheço.

Reflito longamente e termino por me sentir mal. Sim, porque só uma pessoa não imbuída do “espírito natalino” pode ser tão má a ponto de se diferenciar dos milhões de indivíduos imersos num clima de imensa felicidade. Imagino o que pensam os caros leitores sobre a minha audácia. Os mais condescendentes devem se perguntar se não tenho problemas psicológicos; os críticos talvez pensem em romper as relações, ainda que virtuais.

Recordo de Um Conto de Natal, de Charles Dickens, e do avarento Ebenezer Scrooge, que odeia o natal e pensava apenas nos lucros. Se vivesse hoje, saberia que o natal é um bom negócio e estaria muito feliz. Não sou como ele. Parafraseando Max Weber, tenho ojeriza ao “espírito capitalista do natal”. Dickens mostrava que o “espírito burguês” era uma chaga capaz de se alastrar e aniquilar os bons sentimentos e valores. De certa forma anunciava no que o natal se transformaria sob o capitalismo moderno.

Lembro ainda de Grinch, outro personagem mal-humorado que não aceita o “espírito natalino” e arquiteta um plano para arruinar a festa de natal dos habitantes da pequena Quemlândia (Whoville). Porém, até mesmo indivíduo tão malévolo, capaz de roubar o natal das crianças, se rende ao “espírito do natal”. Será que sou mais malevolente? Adoro crianças, mas elas não me contagiam com o seu entusiasmo natalino e a sua avidez pelos presentes.

Devo ser mesmo muito ruim! Ainda assim, reconheço a bondade dos outros e não sou ingrato a ponto de recusar os votos de Feliz Natal. Se muitos me desejam o bem, talvez eu o alcance. Ademais, para além das formalidades e hipocrisias próprias desta época, existem os sinceros, ainda que expressem seus sentimentos por e-mails. Meu sincero muito obrigado!

Há também os que amamos e que, no final das contas, terminam por nos envolver em seus mais puros sentimentos. O Natal passa, mas eles permanecem presentes em nossas vidas e em nossos corações. Eis o mais importante.

domingo, 13 de dezembro de 2009

O vestibular

Um dos efeitos perversos do vestibular diz respeito aos dilemas vividos pela escola pública entre a intenção de formar cidadãos e preparar os alunos para este exame. Cindida por essa dupla exigência, insiste em priorizar o método decoreba, ainda predominante nos vestibulares. Os conteúdos precisam ser memorizados e a forma de verificação, a prova, também é, invariavelmente, utilizada como instrumento do poder disciplinador. Eis outro engodo: a memorização de conteúdos não garante a aprendizagem dos mesmos. Em geral, o aluno memoriza para tirar a nota e passar de ano.

A idéia de que o vestibular é democrático é mais um engodo. Igualdade de oportunidades não é o mesmo que igualdade real de condições. Como, em geral, o aluno da escola pública se encontra em situação desvantajosa, por sua condição social e pela realidade de sucateamento da educação, é ilusório imaginar que ele concorrerá nas mesmas condições que o aluno com maior capital cultural e social. É certo que algumas escolas públicas, em geral melhor situadas territorialmente, desmentem o mito de que a eficácia educacional só é possível na escola privada. Mas, sejam instituições ou indivíduos, as exceções confirmam a regra.

A lógica do vestibular, assumida por pais, professores e alunos, camufla o fato de que somos socialmente desiguais, que determinados grupos sociais tem acesso à cultura e à educação para além do sistema de ensino, o qual reproduz e legitima as desigualdades: vitoriosos e fracassados são analisados por pretensos dons e méritos individuais. Para uns o sucesso parece natural (o próprio fato de terem sido vitoriosos o comprovaria); a vitória de uns naturaliza o fracasso da maioria. É preciso observar que a seleção é também anterior ao vestibular.

Ensino privado, cursinhos preparatórios pagos, etc., tudo nos parece muito natural: uns podem pagar a mercadoria educação, outros não. Paciência! O mercado oferece as opções para prepararmos nossos filhos para vencer e temos a liberdade – e o dever, pensam muitos! – de fazer a escolha certa; ainda que essa tenha um alto custo econômico e ainda que necessitemos nos render à agiotagem oficial ou nos submeter a uma excessiva carga de trabalho para manter a renda familiar. Mas mesmo o ingresso no ensino superior pode se revelar uma grande ilusão devido ao processo de desvalorização e inutilidade dos diplomas. Bem, restará a sensação do dever cumprido e da consciência tranqüila.

Será utopismo imaginar a possibilidade de ensino superior publico e gratuito para todos sem a necessidade de processo seletivo para o ingresso na universidade? Ainda que seja utópico por que não pensar em outras alternativas que substituam o vestibular e fortaleçam a escola pública e não se restrinjam apenas a um momento da vida estudantil? Por que não adotar sistema de cotas para negros e para os estudantes oriundos de escolas públicas? Aliás, algumas universidades já o fazem. Não seria o caso de ampliar as vagas no ensino superior público? De investir mais na qualificação profissional e na estrutura educacional?

Contudo, o vestibular predomina. Esse mecanismo vicia e submete todo o sistema de ensino: do fundamental ao ensino médio torna-se o centro das preocupações e tudo é feito em sua função. Até mesmo o fato de o vestibular ter se transformado em fonte de receita para as universidades públicas (algumas chegam a fazer dois vestibulares anuais), também é encarado naturalmente. Quem ganha com o vestibular? A resposta parece óbvia e a pergunta redundante. Mas, confessemos, não nos fazemos essa pergunta nem questionamos a resposta. Em suma, há muitos interesses econômicos e políticos em jogo, daí a necessidade de mantê-lo.

.

.

Fonte: http://antonio-ozai.blogspot.com/2009/12/o-vestibular.html

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Chega de prosa

.

Você diz que não me quer

E fica com esse papo de amigo

Não fique brincando de amor

Brincar com o coração é um perigo.

.

Fica a proclamar tua liberdade

E ignoras quem profundamente te ama

Mas quando a solidão se torna verdade

Retorna sofregamente à minha cama.

.

No vai e vem desta relação intrigada

Na indiferença da existência humana

Por que tanta conversa mole?

.

Deixe de lado o orgulho gelado

Fruto de uma superficialidade insana

Quem ama não brinca... Quem brinca não ama!

.

.

(Juarez Firmino)

Beijo na boca

................................ (Juarez Firmino)

.

.

Não! Não vá ainda!!!

Espere um pouco mais.

Observe que ainda há

brilho nas luzes

Lembre-se daquilo que

não me disse ainda.

Talvez possamos ficar

um pouco mais...

Sente aqui pertinho de mim.

Ainda não vieram te chamar.

Fiquemos juntos assim mais tempo.

Abraçando, beijando...

Um beijo molhado

com sabor de pecado.

-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

Ainda não vieram te chamar.

Temos ainda algum tempo

pra um beijo bem demorado.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Oficina de teatro (texto)

NO BOTEQUIM

Freguês — Garçom, por favor. Eu queria um café com leite e uma rosquinha.
Garçom — O senhor vai me desculpar, mas não tem mais rosquinha.
Freguês — Ah? Não tem mais rosquinha?
Garçom — Não senhor.
Freguês — Não faz mal. Então me dá só um cafezinho simples. Isso. Só um cafezinho. (pausa) Com uma rosquinha.
Garçom — Eu acho que eu não me expliquei direito. Eu falei pro senhor que não tem mais rosquinha. Acabou toda a rosquinha.
Freguês — Ah bom. Se é assim, muda tudo. Acabou a rosquinha?
Garçom — Acabou, sim senhor.
Freguês — Então me traz um copinho de leite. Leite tem?
Garçom — Tem, sim senhor.
Freguês — Beleza. Me traz um copo de leite. Com uma rosquinha.
Garçom — Eu disse que não tem mais rosquinha! Torrada tem, rosquinha não tem! Há três anos que não tem mais rosquinha!
Freguês — Calma, o senhor também não precisa ficar nervoso. Não tem, não tem. Eu peço outra coisa. Qualquer coisa. Eu não sou difícil pra comer. Eu tomo o que o senhor quiser. Chocolate, chá, sei lá. Chá o senhor tem?
Garçom — Tenho, sim senhor.
Freguês — Então taí. Traz um chazinho. (pausa) Com uma rosquinha.
Garçom — Eu disse que eu não tenho rosquinha. Faz o seguinte. Vai em outro boteco. Não me enlouquece. Vai em outro boteco!
Freguês — Não, pode deixar. Vamos mudar tudo. O que eu não quero é que o senhor se aborreça. Em vez disso me dá uma coisa que alimente mais. Totalmente diferente. Uma coalhada. Taí. Uma coalhada. Coalhada tem?
Garçom — Tem.
Freguês — Tem mesmo?
Garçom — Tem.
Freguês — Vê lá, hein? Não me vai fazer mudar o pedido de novo à toa.
Garçom — Eu já disse que tem! O senhor vai querer ou não?!
Freguês — Vou querer ou não, o quê?
Garçom — A coalhada!
Freguês — Claro que sim. Acho ótimo. Uma coalhada. (pausa) Mas não se esqueça da rosquinha.
Garçom — O senhor é maluco, é? Não tem rosquinha! Não tem rosquinha!!!
Freguês — Tá bom, tá bom. Não precisa gritar. Traz só a rosquinha, pronto.
Freguês 2 (que está na mesa ao lado) — Escuta aqui. O senhor quer enlouquecer o garçom, é? Há dez minutos que eu estou ouvindo essa sua conversa doida e eu juro que não sei como ele está agüentando!
Freguês 2 (para o garçom) — Olha, não liga pra esse maluco não. Traz logo essa porcaria dessa rosquinha e manda ele embora.

________________

Jô Soares, em sua antiga coluna na revista Veja.

Coerência e coesão textual: questões de gênero

O que queremos mesmo dizer quando afirmamos que um texto ou um trecho dele está incoerente? E quando constatamos que a coesão está prejudicada em determinado trecho? No trabalho com os alunos em sala de aula, é preciso mostrar onde estão os problemas e, sobretudo, indicar possibilidades e pistas de como eles podem ser resolvidos. Esta é a questão que pretendemos começar a discutir aqui, buscando apontar como a coerência e a coesão devem ser avaliadas e estudadas com base na perspectiva dos gêneros textuais.
Dizemos que um texto é coerente quando percebemos a existência de uma amarração planejada entre as partes que o compõem, amarração esta que estabelece uma interdependência semântica: relação entre o sentido de cada uma das partes e o sentido geral do texto. Em outras palavras, a coerência está diretamente ligada à compreensão do sentido geral de um texto, isto é, à possibilidade de interpretação daquilo que se diz, escreve, ouve etc., sendo o que nos possibilita identificar se há uma unidade de sentido no texto.
Um dos mecanismos responsáveis pela interdependência entre as partes de um texto, isto é, por sua unidade de sentido, é a coesão: a ligação que se estabelece entre suas partes. Contribuem para estabelecer estas relações e ligações os elementos de natureza gramatical (como os pronomes, conjunções, preposições, categorias verbais), de natureza lexical (sinônimos, antônimos, repetições) e mecanismos sintáticos (subordinação, coordenação, ordem dos vocábulos e orações).
A coerência e os mecanismos de coesão não funcionam sempre da mesma forma em todos os textos, pelo contrário, se manifestam distintamente nos diferentes gêneros textuais, condicionados pela situação de produção. Vejamos rapidamente alguns exemplos.
Nos gêneros que se agrupam na ordem do narrar, a coerência existe, sobretudo, em função da organização temporal, isto é, do modo como se marca o tempo dos acontecimentos narrados. Mas esta organização está sujeita às especificidades do gênero. Por exemplo, em um conto de assombração, os elementos coesivos acionados para garantir a unidade de sentido são distintos daqueles mobilizados para a construção de um conto de fada: a introdução da narrativa, a seleção dos fatos a serem narrados, o foco nos elementos de cenários e na caracterização de personagens (seus gestos, suas feições, seu modo de ser e agir) são elementos que precisam estar adequados à finalidade do texto, ao efeito de sentido que se quer promover.
No caso do conto de assombração, estes aspectos devem estar voltados para o clima de assombro e tensão que caracteriza este gênero. As construções “era uma vez” e “em um reino encantado”, características de um conto de fadas, tornam-se inconsistentes para o conto de assombração, que tem como um dos fatores essenciais de sua organização a necessidade de construir a credulidade do leitor, definindo tempos e lugares com uma certa precisão.
Em muitos casos, a incoerência ou inconsistência de um texto decorre da inabilidade de selecionar o que é relevante para a situação de produção: um conto de assombração que se demora na descrição de alguns detalhes que não contribuem para a criação do clima de medo, por exemplo, pode perder o foco e tornar-se, se não incoerente, improdutivo para o gênero pretendido. Muitas vezes é este o problema que detectamos nos textos dos nossos alunos, sendo preciso mostrar a eles que a unidade de sentido a ser trabalhada no texto está diretamente relacionada com as características e as condições de produção exigidas pelo gênero.
Nos textos que se agrupam na ordem do argumentar, a coerência se constrói fundamentalmente pela ordenação lógica das idéias. Sabemos que há conectores específicos para expressar as diferentes articulações sintáticas - causa, finalidade, conclusão, condição etc – e que tais elementos devem ser usados adequadamente, de acordo com a relação que se quer exprimir ao desenvolver uma argumentação. Sabemos também que estes articuladores exigem a adequação dos tempos e modos verbais para funcionarem de maneira eficiente e possibilitar a coerência. Todos estes conhecimentos são fundamentais para o trabalho com a argumentação. Entretanto, saber isto não é suficiente para construir uma boa argumentação nos diferentes gêneros circunscritos neste grupo.
Convencer um conjunto de leitores de um artigo de opinião, por exemplo, é muito diferente do que convencer um interlocutor específico em uma carta reivindicatória. As estratégias argumentativas a serem mobilizadas para um e para outro caso se distinguem e precisam levar em conta elementos da situação de comunicação específica. Numa carta dirigida a um prefeito, por exemplo, argumentos que apelem para a sua condição de representante do povo e responsável pelo bem público podem e devem ser utilizados, mas é incoerente mobilizar este tipo de argumento quando o que se pretende é dialogar com um interlocutor que precisa ser convencido e chamado para o seu lugar de cidadão. Neste último caso, pode ser uma boa estratégia, trazer para o texto a voz de um cidadão que fala de igual para igual. Isto significa dizer que a coerência de um e de outro texto precisa ser definida não pelos argumentos em si, mas pelo seu funcionamento em cada situação comunicativa.
É por este motivo que vale a pena mostrar aos alunos a maneira como estes mecanismos funcionam no interior dos textos. Mas como é mesmo que isto pode ser feito?
Certamente esta pergunta não encontrará resposta desejável e produtiva se a opção for fazer os alunos decorarem uma interminável lista de conjunções coordenativas e subordinativas. A compreensão do funcionamento das conjunções, de seu sentido, de sua função argumentativa, das relações que estabelecem entre as idéias em um editorial ou em uma carta aberta é que pode evitar os períodos incoerentes do ponto de vista sintático, semântico e principalmente, do ponto de vista da situação comunicativa que se pretende.
Se o professor quer que seus alunos produzam textos coerentes e coesos, é preciso mostrar o funcionamento destes mecanismos na situação de produção específica em que o texto está inserido. Somente desta maneira o aluno vai se familiarizar com novas aquisições lingüísticas e perceber que solucionar um problema de coerência ou coesão em um texto não significa simplesmente trocar uma palavra, substituir ou modificar um conectivo, nem adequar os tempos verbais, trata-se, antes de mais nada, de perguntar sobre os elementos que envolvem sua produção.
Antes do ponto final são muito comuns reclamações como não sei pontuar, não sei usar vírgulas... Estas dificuldades decorrem quase sempre da idéia de que as regras são rígidas e funcionam em quaisquer situações de produção. Muito mais produtivo do que insistir em regras é aliar o ensino da pontuação ao ensino dos mecanismos de coerência e coesão, mostrando a importância dela para o estabelecimento do sentido do texto em determinadas situações comunicativas. Assim como podemos usar conectores e outros elementos de coesão para articular vocábulos ou orações e indicar as relações existentes entre eles, os sinais de pontuação também contribuem para a "costura" do texto, orientando o leitor para a construção do sentido.
.

Autora: Roselene dos Anjos

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Professor...

O material escolar mais barato que existe na praça é o professor!
É jovem, não tem experiência.
É velho, está superado.
Não tem automóvel, é um pobre coitado.
Tem automóvel, chora de "barriga cheia'.
Fala em voz alta, vive gritando.
Fala em tom normal, ninguém escuta.
Não falta ao colégio, é um 'caxias'.
Precisa faltar, é um 'turista'.
Conversa com os outros professores, está 'malhando' os alunos.
Não conversa, é um desligado.
Dá muita matéria, não tem dó do aluno.
Dá pouca matéria, não prepara os alunos.
Brinca com a turma, é metido a engraçado.
Não brinca com a turma, é um chato.
Chama a atenção, é um grosso.
Não chama a atenção, não sabe se impor.
A prova é longa, não dá tempo.
A prova é curta, tira as chances do aluno.
Escreve muito, não explica.
Explica muito, o caderno não tem
nada.
Fala corretamente, ninguém entende.
Fala a 'língua' do aluno, não tem vocabulário.
Exige, é rude.
Elogia, é debochado.
O aluno é reprovado, é perseguição.
O aluno é aprovado, deu 'mole'.
É, o professor está sempre errado, mas, se conseguiu ler até aqui, agradeça a ele!

.
.
.
AD

O soldado e o poeta

Um olhar, um sorriso, uma promessa...

.

Tantas coisas lindas que o tempo apagou.

.

Muito se perde

mesmo sob um acompanhamento incessante,

como a dedicação de um soldado

que observa, que protege, que se entrega

se entrega incondicionalmente ao seu bem maior

o amor

e por ele luta e morre.

.

.

Não...

não quero ser apenas mais um soldado!

.

Quero ser um poeta!

Estes sim, estão rodeados pelas belezas das coisas.

Estes não se reportam às casernas,

são livres como pássaros ao vento.

.

.

Pobres soldados, que lutam e nem sempre

conquistam a felicidade.

.

Pobres poetas, que idealizam a felicidade

............para contraporem às lutas de seus corações.

.

.

.

JUAREZ FIRMINO

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

PROBLEMA DE PONTUAÇÃO

O ricaço, nas últimas, escreve o testamento às pressas, esquecendo a pontuação: “deixo meus bens à minha irmã não ao meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada dou aos pobres”.

O sobrinho pontuou: “Deixo meus bens à minha irmã? Não. Ao meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada dou aos pobres”.

A irmã pontuou: “Deixo meus bens à minha irmã. Não ao meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada dou aos pobres”.

O alfaiate: “Deixo meus bens à minha irmã? Não. Ao meu sobrinho? Jamais. Será paga a conta do alfaiate. Nada dou aos pobres”.

Chega um descamisado: “Deixo meus bens à minha irmã? Não. Ao meu sobrinho? Jamais. Será paga a conta do alfaiate? Nada. Dou aos pobres”.

O que é Literatura?

Segundo o crítico e historiador literário José Veríssimo, várias são as acepções do termo literatura: conjunto da produção intelectual humana escrita; conjunto de obras especialmente literárias; conjunto (e este sentido, creio, nos velo da Alemanha) das obras sobre um dado assunto, ao que chamamos mais vernaculamente bibliografia de um assunto ou matéria; boas letras; e, além de outros derivados secundários um ramo especial daquela produção, uma variedade de Arte, a arte literária.

Mas por que à simples relação de fatos, à meia expressão de emoções por meio da escrita chamamos arte como à pintura, à escultura, à música?

Talvez porque essa relação ou essa expressão - e em literatura não há outra coisa - admitem ou exigem, para nos comoverem e Interessarem, artifícios de língua, de maneira de dizer de modos de contar ou exprimir, em suma de expedientes e processos estranhos à pura necessidade orgânica da manifestação dos nossos juízos e sentimentos. Para tal, bastaria somente a correção gramatical, isto é, a expressão verbal, segundo as leis lógicas ou naturais, se preferem, da linguagem, sem mais artifícios que os que lhe são inerentes.

A exação puramente lingüística na expressão do pensamento ou das sensações é talvez para a arte de escrever o que o desenho, no seu sentido mais restrito e especial, é para a pintura. Esse desenho, como aquela linguagem simplesmente exata, é, certo, já de si um artifício de representação, mas ainda não constitui uma arte. Por falta de outros artifícios que a completem e a tornem significativa, o que representa não nos logra ainda comover, que é o fim superior da arte. E se o simples desenho, na mão de verdadeiros artistas, o consegue, é que uma combinação especial de linhas, de tons, de sombras e claridades, produzindo uma expressão que quase vale a pintura, fez dele mais alguma coisa que pura representação por linhas combinadas segundo regras preestabelecidas.

São essas linhas especiais, esses tons variados, essas sombras e essa luz no desenho artístico, e as tintas, o claro-escuro, as gradações de cores, a harmonia geral de todos esses elementos na pintura, que fazem da pintura representação gráfica do desenho uma obra de arte. Assim na expressão escrita são artifícios correspondentes a esses que fazem da simples representação versal das coisas vistas ou sentidas uma arte - acaso a mais difícil de todas. Mas se isto basta para fazer da escrita, da literatura, no sentido etimológico, uma arte, um ramo de Arte, não satisfaz, cuido eu, para caracterizá-la toda.

Obras há de ciência (e tomo esta palavra no sentido geral de saber de conhecimentos de fatos, "know-ledger" em Inglês), tão bem escritas como as que melhor o sejam literatura. Darwin passa por um perfeito escritor na Inglaterra, assim, como Spencer. Imagino que os trabalhos de física e de biologia de Goethe não serão menos bem escritos que os seus romances. (Que é literatura? José Veríssimo).

Em O Que é a Literatura?, publicado em 1948, por Jean-Paul Sartre, a função e a natureza da Literatura encontram-se organizadas em três perguntas básicas:

• O que é escrever?
• Por que escrever?
• Para quem escreve?

O que é escrever?

Segundo Sartre, escrever é uma ação de desnudamento. O escritor revela ao escrever, revela o mundo, e em especial o Homem, aos outros homens, para que estes tomem, em face ao objetivo assim revelado, a sua inteira responsabilidade. Não basta ao escritor ter escrito certas coisas, é preciso ter escolhido escreve-las de um modo determinado, expondo seu mundo, com elementos estéticos, de criação literária.

Por que escrever?

O homem que escreve tem a consciência de revelar as coisas, os acontecimentos; de constituir o meio através do qual os fatos se manifestam e adquirem significado. Mesmo sabendo que, como escritor, pode detectar a realidade, não pode produzi-la; sem a sua presença, a realidade continuará existindo. Ao escrever, o escritor transfere para a obra uma certa realidade, tornando-se essencial a ela, que não existiria sem seu ato criador.

Para quem escreve?

Ao escrever, o escritor, segundo Sartre, deve solicitar um pacto com o leitor, que ele colabore em transformar o mundo, a sua realidade. O escritor dirige à liberdade de seus leitores. A Literatura é a tentativa do homem-escritor de criar uma realidade que possa ser exibida no mundo real e modificar as estruturas da sociedade humana.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Anúncio

O dono de um pequeno comércio, amigo do grande poeta Olavo Bilac, abordou-o na rua:

― Sr. Bilac, estou precisando vender o meu sítio, que o senhor tão bem conhece. Poderá redigir o anúncio para o jornal?

Olavo Bilac apanhou o papel e escreveu:

"Vende-se encantadora propriedade, onde cantam os pássaros ao amanhecer no extenso arvoredo, cortada por cristalinas e marejantes águas de um ribeirão.
A casa banhada pelo sol nascente oferece a sombra tranqüila das tardes na varanda”.

Meses depois, topa o poeta com o homem e pergunta-lhe se havia vendido o sítio.

No que o homem responde:
― Nem pensei mais nisso! Quando li o anúncio é que percebi a maravilha que tinha.

Às vezes não descobrimos as coisas boas que temos conosco e vamos longe atrás da miragem de falsos tesouros.Valorize o que tens, especialmente as pessoas, os momentos, as lembranças...

A caolha

Júlia Lopes de Almeida

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus, dentes falhos e cariados.

O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível; haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fistula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa, inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; a proporção que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram se escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beija-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios da doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo — o filho da caolha.

Aquilo exasperava-o; respondia sempre.

Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los — mas a alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

— Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas!

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo — o filho da caolha, a humilha-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilha-lo: que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio por parte dos companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto no lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que um principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se Apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrava sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

— Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjecturas.

Ao princípio pensava:

— “É o pudor”. Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de — nora da caolha, ou coisa semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!

Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...

Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor...

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velho, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

— Limpe a cara, mãe...

Ela sumiu a cara no avental; ele continuou:

— Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

— Foi uma doença, — respondeu sufocadamente a mãe — é melhor não lembrar isso!

— E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

— Porque não vale a pena; nada se remedeia...

— Bem! agora escute: traga-lhe uma novidade: o patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui e eu virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É por força maior; não temos outro remédio senão sujeitar-nos!...

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e medroso.

A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

— Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que eu também sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!

O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.

Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho — e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

— Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!

— Que verdade, madrinha?

— Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá!

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho — queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

— O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

— Cala-te! — murmurou com voz apagada a caolha.

— Não me calo! Essa pieguice é que tem te prejudicado! Olha! Rapaz, quem cegou tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

— Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:

— Pobre filho! vês? Era por isto que eu não lhe queria dizer nada!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Mito da Caverna

O mito da caverna, também chamada de Alegoria da caverna, é uma passagem de um escrito do filósofo Platão, e encontra-se na obra intitulada A República (livro VII). Trata-se da exemplificação de como podemos nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz do conhecimento e da verdade.

Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior.

A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas.

Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.

Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda a luminosidade possível é a que reina na caverna.

Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria.

Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol, e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade.

Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.

Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo.

Extraído do livro “Convite à Filosofia” de Marilena Chaui

Florbela Espanca

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus barcos...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Os porquês

1 – Porque é empregado em frases declarativas, isto é, como conjunção coordenativa explicativa ou conjunção subordinativa causal.
Ex.: Venha, porque sua mãe precisa de você. (conjunção coord. explicativa).
Não compareci à reunião porque estava viajando. (conj. subordinativa causal).
Obs.: - Porque é conj. coord. explicativa quando, normalmente, aparece depois do verbo no imperativo.
.
2 – Por que é empregado:
a) em frases interrogativas (advérbio interrogativo).
Ex.: Por que você está atrasado?
.
b) em frases declarativas, no sentido de a razão pela qual, o motivo pelo qual.
Ex.: Não sabemos por que ela está aborrecida.
.
c) no sentido de pelo(a) qual, pelos(as) quais.
Ex.: Esta foi a razão por que não estive presente.
.
3 – Por quê é empregado nos mesmos casos anteriores, mas no final das frases.
Ex.: Você não saiu mais cedo. Por quê?
........Ele foi demitido sem saber por quê.
.
4 – Porquê é empregado como conjunção substantiva (acompanhado de artigo) no sentido de motivo.
Ex.: Não sei o porquê da sua atitude.
........Vamos discutir os porquês destes problemas.
.
.
ATIVIDADES
I – Complete com porque, porquê, por que ou por quê.
1 – Se estão noivos, .......................... não se casam?
2 – Ele só falou .......................... havia clima para isso.
3 – Não fomos ao jogo ........................... choveu.
4 – O espetáculo foi interrompido ............................ ?
5 – ............................ o espetáculo foi interrompido?
6 – O espetáculo foi interrompido ............................ um dos atores sentiu-se mal.
7 – Não sabemos ............................ o espetáculo foi interrompido.
8 – Ignora-se o ............................. da interrupção do espetáculo.

domingo, 15 de novembro de 2009

O BEIJO NO ASFALTO

O resumo comentado que apresentamos a seguir, é de autoria de Sábato Magaldi, retirado do Prefácio que escreveu para a obra de Nelson Rodrigues – Teatro Completo.
.
“Numa fase especialmente produtiva, ele escreveu, em 1960, a pedido da atriz Fernanda Montenegro, O beijo no asfalto, cuja pré-estréia ocorreu no dia 7 de julho de 1061, no Teatro Ginástico do Rio. Nas primeiras semanas, recordes de bilheteria. A curiosidade não impedia que, na cena em que se gritava o hábito das relações sexuais diárias como prova de virilidade do protagonista, alguns casais se retirassem acintosamente da platéia, pelo constrangimento provável dos maridos relapsos.
O acontecimento deflagrador da tragédia: um atropelado, antes de morrer, pede ao desconhecido Arandir, que passeava casualmente e correu para socorre-lo, um beijo na boca. Registra-se que não é banal o episódio desencadeador da trama. E, a partir dos conflitos que se multiplicam, Nelson pôde exprimir a verdade para ele privilegiada – a profunda solidão do homem e a importância da fidelidade ao pensamento individual, não contaminado pelas crenças massificadas. Em contraposição à ‘unanimidade burra’, ele proclamou o valor do gesto solitário. Protesto de quem respeitou as prerrogativas individuais, condenando as abdicações da antipessoa. (...)
Deve-se ter em mente, em primeiro lugar, que a tragédia vivida por Arandir é o resultado da maquinação de um repórter policial, Amado Ribeiro, que se valeu da cumplicidade do delegado Cunha. Significativamente, o jornalista e o policial estavam brigados, por causa de uma denúncia: Cunha deu um pontapé no ventre de uma mulher grávida, provocando-lhe o aborto. A princípio, Cunha não deseja receber Amado Ribeiro. Depois, vendo a possibilidade de promover-se junto ao superior hierárquico, decide participar da farsa. Amado Ribeiro urge a intriga no propósito de aumentar a tiragem do jornal – autovalorização pelo poder. Imprensa e política dão-se as mãos para produzir o embuste sinistro.
No empenho de assegurar verossimilhança à história, sedimentado as suas convicções sobre a criatura humana, Nelson elabora sadicamente os pormenores. O suposto homossexualismo de Arandir não se beneficia de dúvida. Aproveitando-se da fraqueza de certos caracteres, provas são forjadas. E depoimentos taxativos assumem a aparência de verdade, quando o espectador sabe que nasceram da mentira. Inoculado, o germe da desconfiança trabalha as personagens. O mecanismo que destrói Arandir é o mesmo que inventa os bodes expiatórios. Todos participam, à sua maneira, do assassínio do protagonista.
De início, Arandir depõe na política na simples qualidade de testemunha do atropelamento. Terminadas as declarações ao comissário Barros, chegam Amando Ribeiro e Cunha, e começa o interrogatório aniquilador. De desconhecido, o morto se transforma em alguém que Arandir cultivava. A manchete jornalística – O beijo no asfalto – lança o escândalo e lhe dá a proporção da cidade. Primeiro reflexo: os colegas cercam Arandir, na firma em que trabalham, e Werneck faz a pergunta maligna: viúvo ou viúva do atropelado? Não se acredita que ele desconhece o morto. D. Judith, a datilógrafa, declara que, pela fotografia, ‘parece um moço que esteve aqui, na semana passada’.
No velório, a impostura caminha para atingir a plena dimensão. Amado Ribeiro abstrai a delicadeza do momento, retarda o enterro, para dobrar a viúva. Ameaça-a, informando saber de fonte limpa que ela tem um amante. Embora negue já ter visto Arandir, a viúva, intimidada, fecha-se em atitude passiva, que estimula o delírio do repórter. Conclui-se que não haverá objeção concreta ao induzimento feito por Amado: ‘Seu marido tinha um amigo, chamado Arandir, amigo esse que a senhora está reconhecendo pela fotografia.’
O testemunho precisa produzir efeitos. Num arbítrio que se tornaria rotina apocalíptica na vida política brasileira, Cunha e Amado seqüestram Selminha, para que ponha longe da delegacia, na casa de um amigo do jornalista, na Boca do Mato. Basta ela proclamar que Arandir não conhecia o morto para trazerem à sua presença a viúva. Na malignidade irresponsável de quem deseja salvar a própria pele, não se incomodando com as conseqüências, a viúva mente que conhecia Arandir de sua casa e que ‘os dois tomaram banho juntos’.
Não resolve, no objetivo sensacionalista da imprensa, fixar-se a versão do homossexualismo. Ela se esgotaria sem demora. Para alimentar a curiosidade mórbida dos leitores, Amado Ribeiro cria outra manchete aterradora; ‘O beijo no asfalto foi crime’. Conspurca-se o gesto puro de Arandir, atribuindo-lhe sórdida motivação. O repórter diz inicialmente que prova, mas corrige: ‘Quer dizer, sei lá se provo, nem me interessa.’ Amado Ribeiro ainda incita Aprígio, sogro de Arandir, a dar um tiro na cara do genro. Nenhum juiz o condenaria.
Embora Aprígio pergunte se Amado quer vender mais jornal, prepara-se o sacrifício da vítima. No subconsciente, o sogro registra que, que sejam quais forem suas razões para matar Arandir, está absolvido de antemão pelo consenso. Pode invocar defesa da honra familiar, rompida por um homossexual, que ousou o ludíbrio da filha. Nova manifestação da terrível ironia de Nelson: a última cena desvenda o mistério, para que se saiba que Aprígio é o homossexual. O ódio ao genro é amor. Num mundo dominado pelos preconceitos, ao qual deve acrescentar o agravante de que ama não um homem qualquer, mas o genro, Aprígio vê no crime a única possibilidade de libertação, ou de apaziguamento.
O beijo no asfalto faz um libelo violento contra a falsidade, o juízo fundado na aparência, as convicções unânimes. Não foi necessário muito esforço para que se transformasse Arandir, publicamente, em homossexual – mobilizaram-se testemunhas e produziram-se provas, ainda que enganosas. A fragilidade torna o indivíduo agente ativo ou vitima passiva desse processo de destruição do ser humano, isolando-o numa verdade destituída de valor, ao menos prático. Arma-se verdadeira conspiração para aniquilar os sentimentos puros.
Agentes ativos da perda de Arandir são Amado Ribeiro, Cunha, Werneck, dona Judith, a viúva do atropelado, e Aprígio, coadjuvados por Aruda e por Dona Matilde. O comissário Barros coloca-se como elemento neutro, e Selminha e Dália, por duvidarem do marido e cunhado, marcam-lhe a grande desilusão com o ser humano. Decreta-se real solidão de Arandir quando a mulher lhe retira o apoio e a cunhada, embora o ame, pergunta se ele amava o morto.
Por motivos diferentes, todos contribuem para a morte de Arandir. Pode haver responsabilidades maiores ou menores, conjugadas para o objetivo final. A iniciativa do engendramento da trama coube a Amada Ribeiro, que retira de um episódio simbólico, alheio ao noticiário policial, uma história de homossexualismo e depois de crime. Aprígio, assassinando Arandir, é o autor do golpe de misericórdia. Sobretudo a viúva do atropelado fornece, ao testemunhar falsamente a ligação dos dois homens, a prova de que se necessita para atribuir verossimilhança ao engodo.
Em Amado Ribeiro, junto da projeção em Arandir no próprio homossexualismo reprimido (lembra-se o gosto pelas magras e histéricas), há o exercício do poder, compensando o vazio interior. Nelson imputa ao jornalista a aparência de um cafajeste – maligno, cruel, inescrupuloso, abjeto e, finalmente, desesperado. Seu escopo é de vender jornal, não importa à custa de que artifício. Eletriza-o a sensação de abalar o Rio de Janeiro. Na intimidade de seu quarto desordenado, bebe cerveja pelo gargalo da garrafa e se desculpa da ‘bagunça’ pela gravidez da arrumadeira, que fez aborto em si mesma, com talo de mamona, e vai morrer. Esclarece Amado: ‘Eu não tenho nada com o peixe. O filho não é meu!’ depois do diálogo torpe, em que se confessa a Aprígio bêbado e pau-de-arara, o repórter diz que têm de respeita-lo. Por que parou a cidade e, segundo a rubrica, ‘parte o grito num soluço’. Em síntese , um pobre coitado que deságua no mal a frustração não-conscientizada.
O móvel do delegado Cunha não tem certeza. Denunciado pelo jornalista, vence-os escrúpulos e torna-se seu aliado, no propósito de mostrar serviço para o chefe. Werneck é o colega de escritório que lidera o coro dos detratores, baseados em simples indícios. Dona Judith, tipo da datilografia convencional, se basta na leviandade de tomar a aparência por certeza. Menos simpática ainda é a posição da viúva: receosa de que viesse a público a existência do amante, testemunha contra Arandir, a ponto de forjar que o viu tomando banho com o marido. Aprígio atira em Arandir, objeto de seu amor, pela impossibilidade de proclamar o sentimento para o mundo. O detetive Arruda representa o policial obtuso, que nunca acerta. E dona Matilde simboliza o coro das vizinhas bisbilhoteiras, que se alimentam da tragédia alheia.
Nelson descreve Selminha com ‘a imagem fina, frágil de uma moça, de uma intensa feminilidade’. Conhece Arandir desde garotinho e tem certeza de que o ama e é feliz. Confia mais no marido do que em si mesma. Trabalhada pelos outros, porém, ‘passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse’, quando Arandir vai beija-la na boca. Gesto inconsciente, denunciador de que a dúvida já a contagiara. Na casa na Boca do Mato, raptada por Amado e Cunha, Selminha revela que está grávida. E explode a sua verdade; ‘Eu conheço muitos que é uma vez por semana, duas, e até de quinze em quinze dias. Mas meu marido é todo dia! Todo dia! Todo dia! Meu marido é homem! Homem!’ e desafia o delegado, ao augurar que o noivo da filha dele tenha a virilidade de Arandir.
A experiência conjugal não se mostra suficiente para Selminha. O jornalista havia falado em ‘gilete’ (quem tem relações com os dois sexo. abalou-a a confissão da viúva. Selminha pondera para a irmã: “Arandir tem certas coisas. Certas delicadezas! (...) Mas você sabe que a primeira mulher que Arandir conheceu fui eu. Acho isso tão! Casou-se tão virgem como eu, Dália!” E fica patente que ela não irá ao encontro do marido, no hotel em que ele se refugia. Paralisa-a a idéia de que o beijo de Arandir contém ainda a saliva do atropelado.
A peça apresenta uma variante da vinculação de duas irmãs ao mesmo homem. Desde o começo, percebe-se o amor de Dália pelo cunhado. Evidentemente irritada, ela confirma que o casal é felicíssimo. Havia dito que, se a irmã morresse, se casaria com Arandir. Deixaria a casa de Selminha, mas, ao ler o jornal, resolveu ficar, certamente para servir de apoio ao cunhado. Invectiva o pai, afirmando que descobriu o segredo dele: não gosta do genro, porque nutre por Selminha amor ‘de homem por mulher’. No momento em que a irmã abandona Aradir, Dália sente-se livre para procura-lo no hotel. Ela se oferece, por amor, e diz que morreria ao lado dele. A rubrica anota que Dália, “macia, insidiosa, com uma leve, muito leve malignidade”, pergunta se o cunhado amava o morto. Ela não julga e não condena. Aceita tudo. Será a mesma. A incapacidade de compreender profundamente Arandir faz com que ele a expulse: ‘Você é como os outros. Igual aos outros. Não acredita em mim. Pensa que eu. Saia daqui.’ A incomunicabilidade afasta sem remédio todas as criaturas. Está aí a raiz da tragédia humana.
Arandir percorre o itinerário mais complexo do texto. A tendência é a de incluí-lo no rol das vítimas inocentes, que povoam a evolução da dramaturgia. De certo modo, essa focalização tem fundamento. Importa, contudo, a tomada de consciência, o processo interior da passagem de boneco acionado pelos outros a sujeito de destino. Forja-se, no percurso, a grandeza do herói.
Atendendo ao moribundo, que lhe pede o beijo, Arandir cede ao impulso espontânea, não-racionalizado. Ele não medita sobre a possível estranheza dessa manifestação de última vontade. Seu movimento é generoso, humano sem cálculo. Testemunha do atropelamento, dirigiu-se à delegacia, para as declarações de praxe. Não lhe passaria pela cabeça que outro transeunte ocasional, o repórter Amado Ribeiro, deturpasse o seu gesto sem mácula.
Por que Arandir se encontrava na praça da Bandeira, em companhia do sogro, quando se deu o acidente? Ele havia ido à Caixa Econômica, para apanhar uma jóia . O dinheiro destinava-se ao aborto de Selminha. Segundo ela explica: ‘Meu marido acha que a gravidez estraga a lua-de-mel!’ Casados há menos de um ano, eles viviam um idílio absoluto, que nada deveria perturbar. Ironicamente, a tentativa de preservação do matrimônio perfeito redundou a sua perda. Ou, se quiser, o sacrifício que Arandir procurou impor a quem o continuaria, favoreceu sua morte.
Progressivamente acuado, Arandir intimida-se. Deixa o emprego, esconde-se em casa no quarto da cunhada e finalmente se abriga num hotel ordinário. Ao saber que Selminha não o apóia, começa a tirar do desamparo a força salvadora: ‘Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (...) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que (...) Eu não beijaria um homem que não tivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! ‘Eles’ não percebem que alguém morria?’
O ‘reconhecimento’ faz da solidão a vitória de Aradir. Violento, ele pede a Dália para dizer a Selminha: ‘Que em toda a minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez, Dália, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom! (furioso) Eu me senti quase, nem sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele momento, você deveria ser a irmã nua. E eu desejei. Saí logo, mas desejei a cunhada. Na praça da Bandeira, não. Lá, eu fui bom, é lindo! É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! (grita) Eu não me arrependo. Eu não me arrependo!”