terça-feira, 5 de janeiro de 2016
O velho do Restelo e Inês de Castro
Análise dos Cantos III e IV de Os Lusíadas
Luiz
de Camões
Mar português
Fernando
Pessoa
Ó
mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de
Portugal!
Por
te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos
filhos em vão rezaram!
Quantas
noivas ficaram por casar
Para
que fosses nosso, ó mar!
Valeu
a pena? Tudo vale a pena
Se
a alma não é pequena.
Quem
quer passar além do Bojador
Tem
que passar além da dor.
Deus
ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas
nele é que espelhou o Céu.
1.
Luís
Vaz de Camões,
pequena biografia do "Poeta máximo".
"Camões, só
por si, vale uma literatura
inteira."
(
August- Wilhelm Schlegel)
Todo e qualquer esforço de proceder-se a uma mínima biografia de Luís Vaz de Camões
redundaria por quase inútil, em
face da escassez de dados reais sobre o maior poeta português. Dá-se como certo seu nascimento em 1524 ou 1525, por favor de um
registro seu feito pela Armada portuguesa que lhe atribui, em 1550, 25 anos.
Filho de Simão Vaz de
Camões e Ana
de Sá Macedo,
seu nascimento pode ter ocorrido em Lisboa ou Coimbra, grandes centros da época, embora haja quem afirme nascido em
Alenquer ou Santarém. Era
rei português nessa época D. João III, que governou Portugal entre 1521 e 1557.
Pelo fato de ter tido educação esmerada, possivelmente em curso superior de Artes e Humanidades
(fato atestado pelos escritos do poeta onde se notam conhecimento em Latim,
grego, mitologia clássica, geografia,
cartografia, astronomia, escritores clássicos greco-latinos e cultura geral), querem seus biógrafos fazer crer ter sido Camões oriundo de família de pequena nobreza, embora decaída, dadas as dificuldades pecuniárias por que o poeta passou toda a vida.
O certo é que
nenhuma biografia nega que foi soldado mercenário (pago para lutar) e que já em 1547 esteve em Ceuta e em luta contra os mouros perdeu o olho
direito. Em 1550, como o faziam então os fidalgos, alistou-se na Marinha portuguesa, mas não chegou a embarcar para as Índias.
Em 1552 brigou com Gonçalo Borges, servidor do palácio, ferindo-o com um golpe certeiro de espada. Foi preso pelas
ordens del-Rei e, depois de passar alguns meses na prisão, foi multado e obrigado a embarcar para as Índias. E sua peregrinação pelo Oriente foi longa e tumultuada: Goa, Golfo
Pérsico,
Ternate. Foi provedor de defuntos e ausentes em Macau, onde naufragou e,
segundo consta a lenda, teria perdido Dinamene, sua companheira chinesa. Diz
ainda a lenda que se safou nadando e levando o manuscrito de Os Lusíadas.
Em Goa, dá-se por
certo sua prisão por dívidas, mas esteve sempre próximo das autoridades, em relação de proteção, o que o salvou de outras penalidades mais atrozes. Em 1567, um
amigo do poeta, que fora nomeado capitão para Moçambique,
promete-lhe emprego, adiantando, para as passagens, o pagamento de seus salários. Mas outro grupo de amigos, algum tempo
depois, cotiza-se para pagar-lhe a viagem de retorno a Portugal.
Em 1569 chega a Lisboa. Estava tão pobre que "comia de amigos", ou seja, comia de favor.
Leva na bagagem o livro Os Lusíadas, editado em 1572, sob custódia do rei D. Sebastião, a quem a obra é
dedicada e graças a quem, apesar de conter mitologia, consegue passar pelos rigores
do selo do Santo Ofício. Em
reconhecimento à grandiosidade
de sua obra, o poeta ganha uma tença anual de 15.000 réis, recebida irregularmente, mas que o faz sobreviver com certa
dignidade até a morte
de seu protetor, D. Sebastião.
Ganhou fama e notoriedade, reconhecimento de seu país, mas após a morte daquele rei, morreu em 1580, ao que se registra de varíola, na mais absoluta miséria. Seu enterro tem duas versões: uma, a que lembra que foi pago por uma certa
Companhia dos Cortesãos, obra beneficente;
outra, a que foi enterrado em vala comum, sem caixão que de ordinário acompanhava os defuntos. A última hipótese
parece a mais verossímil.
2.
A OBRA CAMONIANA
De maneira genérica,
podemos dividir a obra do maior poeta português do século XVI
da seguinte forma:
I.POESIA:
A.
ÉPICA
: Os Lusíadas
( 1572)
B.
LÍRICA:
1. lírica tradicional, em versos redondilhos
2. lírica clássica,
sonetos, versos decassílabos
II.TEATRO:
"O teatro camoniano restringe-se a três peças, em que se combinam três influências:
a do auto vicentino, a do teatro clássico e a do romance medieval de cavalaria. São elas: Anfitriões, El-Rei Seleuco e Filodemo.
Anfitriões
tem por assunto a comédia
de igual nome de Plauto. Escrita em versos populares de sete sílabas (redondilha maior), trata da história do deus Júpiter que, para conquistar a virtuosa Alcmena,
disfarça-se
sob a figura de seu marido ausente e amado, Anfitrião. É
um argumento que foi repetidamente
tratado pelos comediógrafos
clássicos
e modernos, a partir da peça latina de Plauto.
El-Rei Seleuco foi composta em versos (redondilhas) e em prosa.
Escrita em 1545, conta um caso narrado pelos antigos autores clássicos, ou seja, a cessão feita pelo rei Seleuco de sua própria esposa. O filho está apaixonado pela madrasta e o pai decide-se
a lhe ceder a esposa.
Filodemo apresenta uma série de quadros que nos contam aventuras romanescas de
personagens que aparecem saídas das páginas das novelas de cavalaria: crianças abandonadas e criadas por pastores,
amores entre jovens aparentemente de classe social diferente, reconhecimento da
verdadeira identidade daqueles que parecem humildes mas são nobres, etc."
(transcrevemos o fragmento de Camões e os Lusíadas, Paulo
B. Monteiro e Beatriz Berrini, Pioneira-SP)
3. A epopeia camoniana
"Cantando
espalharei por toda a parte
Enquanto
me ajudar engenho e arte."
(Os
Lusíadas,
Proposição, versos
15 e 16)
"Os Lusíadas servirão perpetuamente, como até
agora serviram, a manter coeso o sentido
heroico
e realizador da nacionalidade."
(Tasso
da Silveira, crítico
literário)
As conquistas marítimas portuguesas, desde o século XV, já vinham despertando
no povo lusitano um orgulho mal-contido e alguns poetas manifestavam desejo de
escrever uma epopeia para o
país. No
reinado de D. João II o
humanista italiano Ângelo
Policiano ofereceu-se àquele rei
para realizar tal feito e pôr num poema narrativo, de "versos latinos", os ainda
incipientes feitos portugueses.
Mais tarde, já no
reinado de D. João III, Luís Vives elogia os feitos portugueses numa
dedicatória e o
próprio
Garcia de Resende, na introdução de seu Cancioneiro Geral de 1516, mostra-se entristecido pelo fato de não se ter notícia,
ainda, de nenhum poema epopeico que louve condignamente a gente lusitana. E
somente cinquenta anos
depois é que Camões daria à sua pátria
aquele que é considerado
o maior poema épico
escrito em nossa língua.
É interessante
considerar que trazer à luz um
poema narrativo, de características épicas,
com modelo greco-latino, usando mitologia grega e abertamente cultuando um herói, não era tarefa fácil no
final século XVI
mercantilista. Mas Camões
conseguiu tal façanha e
tocou fundamente o peito da gente e do rei de Portugal.
1.
Um modelo
À época de Camões, as viagens ultramarinas, as conquistas das colônias, a heroicização dos navegadores deram ensejo ao uso do modelo grego clássico, mais especificamente ao de Homero e sua Odisseia, escrita tantos séculos antes, mas que tinha, enfim, um mesmo núcleo de ações heroicas.
Embora
se deva a Virgílio o
modelo seguido no início do
poema, especialmente na Proposição, é de Homero
que Camões
empresta o modelo efetivo na realização de sua epopeia.
2.
Um herói
"Nada
é mais
fantástico
que a própria
realidade."
A.
Dostoievski)
Vasco da Gama , navegador que em 1498 abriu o caminho marítimo-comercial para as Índias é o herói individual do poema. É metáfora simbólica, no entanto, de um povo e suas façanhas, de um tempo especialmente rico e pleno
para a Nação
portuguesa.
Ele encarna o modelo heroico de maneira decisiva: põe-se ao mar, ainda "tenebroso" e segue para outras terras.
Abrir o caminho marítimo-comercial
não era
apenas o começo, era um
fim em si mesmo: conquistar através do mar imenso, a grandiosidade, a coragem, a dignidade, expandindo
a monarquia portuguesa e a fé cristã. Sob
outro enfoque, buscar riquezas e fazer jus à coragem com o que se inflamavam as mentes lusitanas.
Vasco é, na epopeia,
um misto de herói e narrador. E representa um outro herói, este coletivo: todo um povo e seu orgulho; uma gente que se pôs ao mar e conquistou o mundo.
1.
O assunto
"(...)
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A
quem Netuno e Marte obedeceram;(...)"
(
Os Lusíadas,
Canto I, 3/ 5 e 6)
O assunto fundamental da epopeia é a viagem de Vasco da Gama às Índias. Ao
redor dele gravitam outros importantes eixos poéticos:
a) A narrativa da história de Portugal;
b) Os ideais renascentistas de expansão do poderio português;
c) O ideal cristão de expandir a Fé;
d) O sentimento heroico-ufanista do
colonizador português.
4. A estrutura da epopeia
A)
NOÇÕES
GERAIS
O poema Os Lusíadas é uma epopeia; isto quer dizer o que
você já sabe e o que os gregos e romanos também sabiam: existe nele a intenção clara de louvar
um herói.
Quando nos referimos ao épico, quer dizer poema
narrativo com intenção
visivelmente demarcada: louvar o herói como modelo de comportamento,
ou, através dele,
louvar uma raça, um
povo, uma comunidade.
Poema narrativo?
Sim. Um poema que conta uma história de maneira detalhada, em ordem cronológica ou acronológica. Por que um poema e não prosa? A resposta é: na Antiguidade, poucas pessoas sabiam ler ou escrever; portanto, as
narrativas eram feitas em versos que, por conterem rimas, ficavam mais fáceis de ser decorados e, consequentemente,
passados de gerações para
outras gerações.
O poema épico Os Lusíadas
está dividido em 10 cantos,
isto é 10 partes,
divisões
internas que, caso fossem prosa, corresponderiam às mesmas divisões internas
de partes ou capítulos dos
romances ou novelas.
Composto de 1.102 estrofes em oitava
rima ou rima-real, o que equivale dizer que cada uma dessas 1.102
estrofes tem oito versos e esses versos são decassílabos. Só isso? Não...
Essas estrofes têm sempre
o mesmo esquema rímico
ABABABCC:
1
"No / mar/
tan/ta / tor/ men / ta e / tan/ to /da /no,
( A )
1
2 3 4 5 6 7 8 9 10
2
Tan /tas/ ve /
zes / a/ mor/ te a/ per/ ce/ bi/ da!
(B)
1
2 3 4 5 6 7 8 9 10
3
Na/ te/ rra,/
tan /ta /gue/ rra,/ tan/ to en /ga/ no,
(A)
1
2 3 4 5 6 7 8 9 10
4
Tan/ ta/ ne/ ce/
ssi/ da/ de a / bo/ rre/ ci/ da!
(B)
1
2 3 4 5 6 7 8 9 10
5
On/ de/ po/ de
a/ co/ lher-/ se um/ fra/ co hu/ ma/ no,
(A)
6
On/ de/ te/ rá/ se/ gu/ra a / cur/ /ta/ vi/
da, (B)
7
Que / não/ se ar/ me e/ se in/ dig/ne
o / Céu / se/ re/no ( C)
8
Com/ tra /um /
bi/ cho/ Te/ rra/ tão / pe/ que/no?"( C)
(
Os Lusíadas,
Canto I, estrofe 106)
Observe: todo o poema é composto
de 1.102 estrofes idênticas ao
exemplo acima transcrito no que diz respeito ao esquema rímico, à oitava rima e versos decassílabos.
Em sua maioria, os versos são decassílabos heroicos (tonicidade na 6a. e 10a. sílabas); há, no entanto, embora em pequena proporção, o uso da tonicidade sáfica
(decassílabos com tonicidade na 4a., 8a. e 10a.
sílabas).
A. AS CINCO PARTES DO POEMA
Tal como a obra clássica, o poema, estruturalmente, divide-se em cinco partes: Proposição,
Invocação,
Dedicatória,
Narração
e Epílogo.
Em palestra proferida no Recife, durante seminário promovido para comemorar os 400 anos da
publicação de Os Lusíadas, o professor Segismundo Spina, uma das autoridades em Camões, professor da USP, indagava se o poeta teria
elaborado a epopeia a partir do primeiro canto e, de maneira contínua, construíra sua obra até o décimo.
A resposta para isso é não,
certamente. Uma obra de tal envergadura não poderia, na sua confecção, prender-se a uma linearidade estrutural que a própria narração não tem. Ou
seja: o poeta foi escrevendo as
partes e só depois de
prontas alinhou-as, alinhavou-as, fez delas um todo. Mas, com certeza, ao fazer
isso, sabia que deveria obedecer a ordem acima.
1. Proposição
Entenda tal procedimento como a apresentação dos assuntos, ou assunto, sobre os quais se
vai narrar. No caso de Os Lusíadas, a uma enumeração grandiosa de feitos, ações, criaturas, povo, reis, atividades portuguesas que são anunciadas minuciosamente em três estrofes. Assim, podemos observar que os 24
primeiros versos formam, pois, a proposta
do narrador:
1
As
armas e os barões assinalados,
Que
da ocidental praia lusitana,
Por
mares nunca dantes navegados,
Passaram
ainda além da Taprobana,
E
em perigos e guerras esforçados
Mais
do que prometia a força humana,
Entre
gente remota edificaram
Novo
Reino, que tanto sublimaram;
2
E
também as memórias gloriosas
Daqueles
reis que foram dilatando
a
Fé,
o Império, e as terras viciosas
De
África
e de Ásia andaram devastando;
E
aqueles que por obras valerosas
Se
vão
da lei da Morte libertando
Cantando
espalharei por toda parte,
Se
a tanto me ajudar o engenho e arte.
3
Cessem
do sábio grego e do troiano
As
navegações grandes que fizeram;
Cale-se
de Alexandre e de Trajano
A
fama das vitórias que tiveram,
Que
eu canto o peito ilustre lusitano,
A
quem Netuno e Marte obedeceram;
Cesse
tudo o que a Musa antiga canta,
Que
outro valor mais alto se alevanta.
Temos aqui três
estrofes que estruturalmente já aprendemos a reconhecer: foram concebidas em oitava-rima ou rima-real; cada uma delas tem
oito versos, dez sílabas métricas e seu esquema rímico é ABABABCC. As três
integram o que denominamos Proposição.
Observe que os versos 15 e 16, na segunda estrofe, correspondem a um enorme
hipérbato, prova da sintaxe opulenta de que os clássicos se utilizavam. Tais versos, em verdade,
deveriam iniciar o poema uma vez que as enumerações sobreo que o poeta cantará, nos catorze versos iniciais, são sucessivos objetos diretos do verbo cantar. Observe-os: "As armas e os barões assinalados"; "as memórias
gloriosas"; "e aqueles que por obras
valerosas".
Fixe-se também na
expressão "por mares nunca dantes navegados"; o que o poeta cantará (cantar no sentido de louvar, glorificar) é a Viagem de Vasco da Gama e seus navegadores
que, saindo da Praia do Restelo ("ocidental
praia lusitana") puseram-se ao mar e foram para além do Ceilão (hoje conhecemos este país como Sri Lanka).
Há também na terceira estrofe uma aproximação entre portugueses e heróis da Antiguidade clássica. "Cessem
do sábio
grego (Ulisses)
e do Troiano (Enéias),/ as navegações grandes que fizeram; cale-se de
Alexandre (Magno)
e de Trajano (imperador romano)/
a fama das vitórias
que tiveram,/ que eu canto o peito ilustre e lusitano/ a quem Netuno e Marte
obedeceram. Quando o poeta pede para cessar o antigo, está automaticamente exaltando os feitos do "novo",
representado aqui pela metonímia "peito ilustre lusitano". É fundamental notar a comparação de caráter heroico,
transformador.
Com
:
"Cesse
tudo que a musa antiga canta,
que
outro valor mais alto se alevanta."
Fica claro observar que os portugueses, no tempo presente da epopeia,
substituem gloriosamente os heróis passados e seus feitos e, se comparados aos dos antigos heróis, são sobejamente superiores:
"outro valor mais alto se alevanta".
Portanto, fica comprovada a mobilização poética
através da
ufania, orgulho nacionalista, e do superdimensionamento dos feitos portugueses.
"À ideia da epopeia pátria andava associada certa ideologia oficial
forjada pela expansão,
e cujas raízes
encontramos já em
Zurara. Segundo essa ideologia, os Portugueses cumpriram uma missão providencial, dilatando tanto o Império como a Fé: eram Cruzados por excelência."
(in História da
Literatura Portuguesa, O Lopes , Antonio J. Saraiva)
2 . Invocação
Os poetas clássicos
também
invocavam suas musas logo após a Proposição do poema épico. Fazia parte da estrutura poética clamar pelas benfazejas criaturas que auxiliam os compositores e
legar-lhes um bom número de
estrofes. Em especial, os poetas épicos invocavam Calipso ou
Calíope, a nona musa, a que auxilia os cantos heroicos, segundo a mitologia
grega.
Camões em Os Lusíadas
heroicizava os feitos portugueses; portanto, as
musas por ele invocadas na Parte II são as tágides, ou seja, criaturas que, segundo a mítica criada pelo autor,
habitariam as águas do
rio Tejo, o rio por onde iam ao mar as naus portuguesas em busca das novas
conquistas. A Invocação inicia-se na quarta estrofe e é composta apenas de duas estâncias, que passamos a transcrever:
4
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas
Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.
5
Dai-me ua fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta
ruda,
Mas da tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Daí-me igual canto aos feitos da
famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda:
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
Observe:
Dirigindo-se às Tágides, lembra-lhes que celebrava o rio onde habitam através "verso humilde", ou seja, na poesia
lírica, o
que é absolutamente
verdadeiro, posto ter sido Camões cantor do Tejo.
Dispõe-se a
usar, se elas o ajudarem, "um novo engenho ardente", que aqui pode
ser interpretado como os versos decassílabos, eloquentes, da
epopeia.
Suplica-lhes "um som alto e
sublimado, um estilo grandíloquo" e compara as águas habitadas pelas Tágides com a fonte aberta pelo cavalo Pegasus, ser alado e divino; quem bebesse de tal fonte,
diz a lenda, tornar-se-ia poeta e faria os mais belos versos de toda a literatura.
Verifique que, além das musas, de Febo e Hipocrene, aparece Marte, o deus da guerra. É tempo, outra vez, de refletir na influência clássica dos gregos e dos latinos não só nessa
epopeia camoniana, mas em todas as atividades literárias ou artísticas da época.
1. Dedicatória
O poema, como já foi
exaustivamente dito, é oferecido
ao rei D. Sebastião, responsável pela
publicação de Os Lusíadas, e responsável pelas
tenças que
Camões
recebeu até 1578, por
favor do elogio à Pátria e ao povo lusitano.
A Dedicatória é longa (ao todo 13 estrofes) e vai da 6a. até a 18a. estrofe,
inclusive. É preciso
não
esquecer o fato de estarmos ainda no Canto I da epopeia. Leia os versos:
6
E
vós,
ó bem
nascida segurança
Da
lusitana antiga liberdade,
E
não
menos certíssima esperança
De
aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor
da maura lança,
Maravilha
fatal da nossa idade,
Dada
ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para
do mundo a Deus dar parte grande.
7
Vós, tenro e
novo ramo florescente
De
uma árvore de Cristo mais amada
Que
nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou
Cristianíssima chamada
(Vede-o
no vosso escudo, que presente
Vos
amostra a vitória já passada,
Na
qual vos deu por armas e deixou
As
que ele para si na Cruz tomou);
8
Vós,
poderoso Rei, cujo alto Império
O
Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio
do Hemisfério,
E
quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que
esperamos jugo e vitupério
Do
torpe Ismaelita cavaleiro,
Do
turco oriental e do gentio
Que
inda bebe o licor do Santo Rio:
9
Inclinai
por um pouco a majestade,
Que
nesse tenro gesto vos contemplo,
Que
já se
mostra qual na inteira idade,
Quando
subindo ireis ao eterno Templo;
Os
olhos da real benignidade
Ponde
no chão: vereis um novo exemplo
De
amor dos pátrios feitos valerosos,
Em
versos divulgados numerosos.
10
Vereis
amor da Pátria, não movido
De
prêmio
vil, mas alto e quase eterno,
Que
não é prêmio vil
ser conhecido
Por
um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi:
vereis o nome engrandecido
Daqueles
de quem sois senhor supremo,
E
julgareis qual é mais excelente,
Se
ser do mundo rei, se de tal gente.
11
Ouvi,
que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas,
fingidas, mentirosas,
Louvar
os vossos, como nas estranhas
Musas,
de engrandecer-se desejosas;
As
verdadeiras vossas são tamanhas,
Que
excedem as sonhadas, fabulosas,
Que
excedem Rodamonte e o vão Rugeiro,
E
Orlando, inda que fora verdadeiro.
12
Por
estes vos darei um Nuno fero,
Que
fez ao rei e ao Reino tal serviço;
Um
Egas e um Dom Fuas, que de Homero
A
cítara
para eles só cobiço;
Pois
pelos Doze Pares dar-vos quero
Os
Doze de Inglaterra e o seu Magriço;
Dou-vos
também aquele ilustre Gama,
Que
para si de Enéias toma a fama.
13
Pois
se a troco de Carlos, rei de França,
Ou
de César, quereis igual memória,
Vede
o primeiro Afonso, cuja lança
Escura
faz qualquer estranha glória;
E
aquele que a seu Reino a segurança
Deixou,
com a grande e próspera vitória;
Outro
Joane, invicto cavaleiro;
O
quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.
14
Nem
deixarão meus versos esquecidos
Aqueles
que nos Reinos lá da Aurora
Se
fizerem por armas tão subidos,
Vossa
bandeira sempre vencedora:
Um
Pacheco fortíssimo e os temidos
Almeidas,
por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque
terrível, Castro forte,
E
outros em quem poder não teve a morte.
15
E,
enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime
Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai
as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis
matéria a nunca ouvido canto.
Comecem
a sentir o peso grosso
(Que
pelo mundo todo faça espanto)
Dos
exércitos
e feitos singulares,
De
África
as terras e do Oriente os mares.
16
Em
vós
os olhos tem o Mouro frio,
Em
quem vê seu exílio afigurado;
Só com nos
ver, o bárbaro Gentio
Mostra
o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis todo o
cerúleo senhorio
Tem
para vós por dote aparelhado,
Que,
afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja
de comprar-vos para genro.
17
Em
vós
se vêm da olímpica morada,
Dos
dous avós as almas cá famosas,
Ua
paz, na paz angélica dourada;
Outra,
pelas batalhas sanguinosas;
Em
vós
esperam ver-se renovada
Sua
memória e obras valerosas;
E
lá vos
têm
lugar, no fim da idade,
No
Templo da Suprema Eternidade.
18
Mas,
enquanto este tempo passa lento
De
regerdes os povos, que o desejam,
Daí vós favor ao
novo atrevimento,
Para
que estes meus versos vossos sejam,
E
vereis ir cortando o salso argento
Os
vossos Argonautas, por que vejam
Que
são
vistos de vós no mar irado;
E
acostumai-vos já a ser invocado.
Observe:
D. Sebastião estava
vivo quando Camões, ao
dedicar-lhe a epopeia, usa todo orgulho lusitano e nele resume a esperança de melhores tempos e empenha-se em
atribuir-lhe um lugar de destaque entre os reis passados.
D. Sebastião é visto
pelo poeta como "bem nascida segurança da lusitana antiga liberdade", ou seja, aquele que, através seu nascimento, impede que o trono português seja anexado ao trono espanhol. Vai além: "E
não
menos certíssima
esperança
do aumento da pequena cristandade".
Criado pelo tio-avô,
arcebispo D. Henrique, o rei fora guiado no sentido de aumentar domínios e aumentar a cristandade (leia-se
catolicismo) em virtude do que acontecera com a Reforma Luterana. Em: "Vós,
ó novo
temor da Maura lança", a mensagem é clara; D. João III
perdera uma batalha contra os mouros e fizera morrer soldados às centenas. O novo rei, D. Sebastião, deveria se empenhar no combate contra os
mouros e encontrar um caminho para estabelecer em Alcácer-Quibir uma base portuguesa na costa atlântica do Marrocos. Havia como uma premonição em Camões ou, pior, levado por tais palavras, é
que o rei, seis anos depois, iria morrer naquele
lugar, à procura
de conquistas.
Ao terminar a Dedicatória, um verso terrível nos faz estremecer:
"E acostumai-vos já
a ser invocado."
Se conhecermos bem a história terrível desse
rei e o que significou posteriormente a sua morte, gerando o sebastianismo invocativo, visionário, mítico e místico,
veremos que o poeta escreveu não apenas uma Dedicatória, mas, sobretudo, uma louvação lamentosa daquele que morreria aos 24 anos e, sem filhos, faria,
dois anos após a sua
morte, Portugal mergulhar num caos político sem par: o domínio dos Felipes. Mas, desconsiderando-se este fato e verificando a
grandeza e a majestade do rei enquanto vivo, Camões apenas sintetiza em seus versos o devotamento e o amor com que D.
Sebastião foi
adorado pelo povo.
"Maravilha fatal da nossa idade" era uma das maneiras como o povo o conhecia, usando as
palavras com as quais Bandarra designara um rei por vir, ainda no início do século.
1.
Narração
‘in media res’
Ainda
no Canto I, na estrofe 19, inicia-se a Narração:
19
Já no largo
Oceano navegavam,
As
inquietas ondas apartando;
Os
ventos brandamente respiravam,
Das
naus as velas côncavas inchando;
Da
branca escuma os mares se mostravam
Cobertos,
onde as proas vão cortando
As
marítimas águas consagradas,
Que
do gado de Proteu são cortadas;
Aqui o poeta inicia a parte denominada Narração que terminará
no Canto X, estrofe 144.
Esta
parte engloba basicamente dois assuntos: a
viagem de Vasco da Gama às
Índias
e a História
de Portugal, acrescidos tais assuntos de largo uso da
mitologia grega. Mas, o que significa a expressão latina ‘in media res’?
Significa
que quando a história começa a ser narrada, na estância 19 do primeiro Canto, os portugueses já estão no Oceano Índico,
costa oriental africana, próximos a Madagascar. Ou seja, a narrativa inicia-se quando os
navegadores já saíram de Portugal, já
dobraram o Cabo das Tormentas próximos ao Sri Lanka. O início da viagem, a saída das naus da Praia do Restelo, aparecerá somente mais tarde na epopeia, sob forma de
reminiscência ou digressão.
A vigésima estrofe introduz um fato novo: enquanto os
portugueses navegam, um Concílio de Deuses, no Olimpo, conspira contra eles. Apenas Vênus e Marte ficam a favor dos portugueses. Baco pretende destroçá-los. Chegam
a Moçambique,
lutam com o governador que queria matá-los, vencem; vão embora
e pouco depois passam por Quíloa; chegam a Mombaça. Termina o Canto I.
Canto II
Estando os portugueses em Mombaça e havendo traição deliberada de Baco contra eles, Vênus dirige-se a Júpiter no sentido de fazê- lo zelar pelos portugueses. Júpiter promete-lhe cuidar deles e relata a Vênus as futuras façanhas dos lusitanos no Oriente.
"O segundo canto compreende a parte da viagem que vai de
Mombaça
a Melinde, ponto final dessa trajetória. A recepção amistosa pelos melindanos explica-se pela intervenção de Vênus junto a Júpiter, na qual reclama que a determinação dele (a de que os lusos fossem
agasalhados na costa africana como amigos) não vinha sendo cumprida. (...) Aportados em Melinde, o rei
local, que recebe festivamente os navegantes portugueses, manifesta certo
interesse por saber a origem dessa gente e os sucessos da viagem até ali. Esta curiosidade do rei de Melinde
dá motivo
a que o Gama inicie a história medieval portuguesa. Antes, porém, o Gama faz uma descrição geográfica da Europa a fim de situar Portugal; a seguir vem a história portuguesa medieval, que no Canto
III termina na altura do reinado de D. Fernando." (Revista Língua e Literatura - USP/SP, 1974, vol.
3, Uma Cronologia do poema camoniano, prof. Segismundo Spina).
Aqui podemos encontrar um recurso camoniano muito interessante. Caso
fizesse uma epopeia em ordem linear, ou seja, contando os feitos portugueses
desde a fundação do
Condado Portucalense, no século XII, até a época em que a epopeia foi escrita, seria apenas um livro de História em versos, facilmente esquecido por todos;
mas o gênio camoniano
soube dar-lhe contornos inesquecíveis: através do expediente
do rei de Melinde pedir a Vasco que conte sobre o seu país, pode-se ter acesso à História Medieval portuguesa, sem que em nada empane o brilho dos heróis navegadores.
109
"Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta (lhe dizia), diligente,
De terra tua o clima e região
Do mundo onde morais,
distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Co’os
sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço."
Canto III
Este é um dos
cantos mais conhecidos desta epopeia. Inicia-se quando o narrador dirige-se,
abrindo os estrofes, à musa Calíope (ou Calipso), inspiradora de todos os cantos
heroicos, como antes já vimos:
1
Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao rei o ilustre
Gama;
Inspira imortal canto e voz
divina
Neste peito mortal, que tanto te
ama.
Assi o claro inventor da
Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o amor devido, como soe.
2
Põe
tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do
Tejo
O licor de aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-se Apolo na água soberana;
Senão
direi que tens algum receio
Que se escureça o teu querido Orfeio.
Observar aqui que dois são os narradores principais de Os Lusíadas: o próprio poeta, no caso chamado propriamente de narrador,
e Vasco da Gama, que vai sistematicamente falar sobre Portugal e sua História. Ocasionalmente, outros narradores "ad
hoc" (para aquela hora) também se predispõem a
falar, tal como Veloso e Paulo da Gama, irmão de
Vasco.
Vasco revisita a História Medieval lusitana. Neste Canto, especialmente, desfilam diante de
nossos olhos as personagens que Camões foi buscar nas fontes históricas do humanista Fernão Lopes. É nele que
o lirismo camoniano, juntando-se à tradição trágica, tem seu ponto mais elevado. Aqui acontece
o famoso Episódio de Inês de Castro, degolada por Afonso
IV em 7 de janeiro de 1355, rainha coroada depois de morta :
119
Tu, só tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede
tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue
humano.
120
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce
fruto,
Naquele engano da alma, ledo e
cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca
enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito
tinhas.
121
De teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te
traziam,
Quando dos teus fermosos se
apartavam;
De noite, em doces sonhos que
mentiam,
De dia, em pensamentos que
voavam,
E quanto enfim cuidava e quanto
via
Eram tudo memórias de alegria.
122
De outras belas senhoras e
princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor,
desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas
estranhezas,
O velho pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho que casar-se não queria,
123
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem
preso,
Crendo co’o sangue só da morte indigna
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada
fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor mauro, fosse alevantada
Contra ua dama delicada?
124
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões,
à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas
vozes,
Saídas
só da mágoa e saudade
Do seu príncipe e filhos que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
125
Para o céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros
rigorosos),
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assi dizia:
126
"Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como co’a mãe
de Nino já mostraram
E co’os irmãos que Roma edificaram,
127
"Ó tu, que tens de humano o gesto e
o peito
(Se de humano é matar ua donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois não te move a culpa que não tinha.
128
"E se, vencendo a moura
resistência,
A morte sabes dar com fogo e
ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem para perdê-la não fez erro;
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me
em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
129
"Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co’o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam de mãe triste."
130
Queria perdoar-lhe o rei benigno,
Movido das palavras que o magoam,
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali
apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e
cavaleiros?!
131
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema de mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a
condena,
Co’o
ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar
serena
(Bem como paciente e mansa
ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoidece,
Ao duro sacrifício se oferece:
132
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que
sustinha
As obras com que Amor matou de
amores
Aquele que depois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas
flores
Que ela dos olhos seus regadas
tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
133
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar naquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós,
ó côncavos
vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe
ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!
134
Assi como a bonina, que cortada,
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor
murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e
perdida
A branca e viva cor co’a doce vida.
135
As filhas do Mondego a morte
escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda
dura,
"Dos Amores de Inês", que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as
flores,
Que lágrimas são a água, e o nome Amores!
(Frag.)
Observação: Além de narrar o episódio que acabamos de ler, o Canto III contém, em seu início, a descrição que
Vasco faz da Europa e, muito especialmente, de Portugal até o rei D. Fernando e sua mulher, a espanhola D.
Leonor Telles.
Canto IV
Nesse canto narra-se a Batalha de Aljubarrota. D. João II inicia as diligências para chegar até as Índias. O governo de D. Manuel, o Venturoso é revisitado. O sonho deste rei está posto em destaque; depois de sonhar, D. Manuel
inicia os preparativos, reúne uma frota e põe os navios ao mar. Vasco conta a partida de sua Armada da Praia do Restelo.
Mas é desse
canto uma das perguntas mais frequentes sobre Camões no vestibular: o Episódio do Velho do Restelo, amaldiçoando s
ambição portuguesa,
"a glória de mandar e a vã
cobiça." Leia o texto:
94
Mas um velho de aspecto
venerando,
Que ficava nas praias, entre a
gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três
vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco
alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um
saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do esperto
peito:
95
"Ó glória
de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos
fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se
chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que
tormentas,
Que crueldade neles experimentas!
96
"Dura inquietação d’alma
e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te
subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
97
"A que novos desastres
determinas
De levar estes reinos e esta
gente?
Que perigos, que mortes lhe
destinas
Debaixo d’algum nome preminente?
Que promessas de reinos e de
minas
De ouro, que lhe farás tão
facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
(...)
102
"Oh! Maldito o primeiro que
no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno de eterna pena do Profundo,
Se é justa
a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
A fala do velho do Restelo é reflexivo-filosófica;
ele, fazendo o papel do que na Antiguidade era o coro no teatro grego,
representa o que os portugueses, já na década de
60 do século XVI,
pensavam de si próprios.
Sair ao mar, pela cobiça, ouro,
fama...
Esta passagem, muito mais tarde, já no século XIX,
em Mensagem (1934), do modernista Fernando Pessoa, tem ressonância:
I. Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São
lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo
deu,
Mas nele é que espelhou o Céu.
Canto V
Nele, Vasco continua contando ao rei a História portuguesa: a saída de Lisboa, Fogo de Santelmo, a Tromba
Marinha, o caso de Fernão Veloso,
a passagem pelo Cabo das Tormentas, a viagem até
Melinde.
Aqui também aparece
uma personagem mitológica
muito conhecida: o Gigante Adamastor, adaptação
camoniana ao mito de Netuno, com suas longas barbas e tridente na mão. Ele aparece no quinto dia de viagem: "cinco sóis eram passados" e
diz o motivo pelo qual não aceita
que os portugueses contornem aquele Cabo.
37
Porém
já cinco sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem
navegados,
Prosperamente os ventos
assoprando,
Quando ua noite, estando
descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ua nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
38
Tão
temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo.
Bramindo, o negro mar de longe
brada,
Como se desse em vão n’algum
rochedo.
"Ó Potestade, disse, sublimada,
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos
apresenta,
Que mor cousa parece que
tormenta?"
39
Não
acabava, quando ua figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados , e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os
cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
40
Tão
grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o
segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do
mundo.
C’um
tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
41
E disse: _ "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes
cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e
tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares
ousas,
Que eu tanto tempo há já que
guardo e tenho,
Nunca arados de estranho ou próprio lenho;
42
"Pois vens ver os segredos
escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal
merecimento,
Ouve os danos de mi que
apercebidos
Estão
a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra
Que inda hás-de subjugar com dura guerra.
Se você for
perceptivo, estará vendo
repetidas as palavras do Velho do Restelo. Aliás, a forma mais comum, nesta epopeia, de Camões dirigir-se ao povo lusitano é como "gente
ousada", com o sentido dilatado de "empreendedora,
destemida".
O gigante Adamastor explicará por que fará com que
os navios da frota de Vasco sejam consumidos pelas águas do Cabo das Tormentas: a ninfa que ele ama
"mora nestas águas"
e a quilha dos navios poderiam machucá-la.
Ambas as partes dialogam e expõem seus motivos. E, por fim, "tornando a cortar a água salgada/ Fizemos desta costa algum
desvio." E lá se foram
para o mar sem fim.
Canto VI
Partem os portugueses de Melinde em direção a Calecute. Aqui
a epopeia ganha a dimensão
do tempo presente. Estão, Vasco e sua armada, no tempo em que cortam as águas com "suas navegadoras proas".
Para distrair os marinheiros, Veloso conta-lhes o Episódio dos Doze da Inglaterra. Baco enfurece-se contra
a gente portuguesa.
Uma explicação:
É preciso esclarecer aqui a razão mitológica de Baco indispor-se contra os lusitanos. É que, segundo a lenda, o filho de Baco, Luso, depois de brigar com o pai, na Grécia, furta-lhe dois ramos do pomar: um de videira
e outro de oliveira. E vai para a Europa, onde funda a Lusitânia.
Em posse dos ramos, finca-os no chão e começam a
crescer. As videiras invadem as terras, multiplicam-se para muitos bons vinhos;
e os olivais, com sua azeitona e azeite expandem-se como riquezas de Portugal. Daí também, conclui-se por que o povo português é chamado lusitano. Filhos de Luso;
portanto Os Lusíadas louvam aquela gente como descendente direta de
deuses, o que dava certa estatura moral àquele povo e os aproximava, de qualquer modo, dos gregos e romanos.
Há um Concílio de deuses marinhos e Baco pede que destruam a Armada;
Vênus pede às ninfas que contenham os Éolos (ventos fortes), seus apaixonados. E assim é feito. Chegam os portugueses a Calecute:
86
"Estas obras de Baco são, por certo
Disse _ mas não será que avante leve
Tão
danada tenção, que descoberto
Me leve sempre o mal a que se
atreve."
Isto dizendo, desce ao mar
aberto,
No caminho gastando espaço breve,
Enquanto manda as Ninfas amorosas
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.
Canto VII
Já em
Calecute , na Índia, o
Samori, rei daquele lugar, recebe-os muito bem. E todos , curiosos, querem ver
os navios. Nesse canto, os portugueses são exaltados pelo narrador:
2
A vós,
ó geração de Luso, digo,
Que tão pequena parte sois no mundo,
Não
digo inda no mundo, mas no amigo
Curral de quem governa o Céu rotundo;
Vós,
a quem não somente algum perigo
Estorva conquistar o povo imundo,
Mas nem cobiça ou pouca obediência
Da Madre que nos Céus está em essência;
3
Vós,
Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós,
que à custa de vossas várias mortes
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito pouco que sejais,
Muito façais na santa Cristandade.
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
É fácil verificar aqui a heroicidade conferida aos portugueses e, principalmente,
o ideal de expansão do Império português e da Fé Católica, tão presentes na epopeia, embora o poeta se valha de arquétipos mitológicos gregos e romanos.
Canto VIII
Paulo da Gama, irmão de Vasco, explica o significado das pinturas e bordados nas
bandeiras que os navios portugueses agitam; o Catual ouve-o contar sobre os
feitos portugueses. O Samori convoca os adivinhos de sua Corte para
especular-lhes sobre o futuro; eles falam contra os portugueses e Vasco tem que
se defender e defender seu povo diante do rei de Calecute.
1
Na primeira figura se detinha
O catual, que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada.
Quem era e por que causa lhe
convinha
A divisa que tem na mão tomada?
Paulo responde, cuja voz discreta
O mauritano sábio lhe interpreta:
2
"Estas figuras todas que
aparecem,
Bravos em vista e feros nos
aspectos,
Mais bravos e mais feros se
conhecem,
Pela fama, nas obras e nos
feitos;
Antigos são, mas inda resplandescem
Co’o
nome entre os engenhos mais perfeitos.
Este que vês, é Luso,
donde a fama
O nosso Reino "Lusitânia" chama.
Canto IX
Em Calecute, há uma traição feita a Vasco. Mas a Armada portuguesa consegue
escapar. Este canto contém o célebre episódio da Ilha dos Amores; após a fuga,
navegam e chegam à dita
ilha. Enquanto os marinheiros passeiam com as nereidas, Tétis conduz Vasco da Gama ao topo de "um
cume alto e divino" e de lá mostra-lhe "a máquina do mundo", e faz
vaticínios
sobre o povo lusitano:
87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Para o cume dum monte alto e
divino,
No qual ua rica fábrica se erguia
De cristal toda e de ouro puro e
fino,
A maior parte aqui passam do dia
Em doces jogos e em prazer
contino;
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as
flores.
88
Assi a fermosa e a forte
companhia
O dia quase todo estão passando
Nua alma, doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando;
Porque dos feitos grandes, da
ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prêmio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e
subido.
(...)
92
Mas a Fama, trombeta de obras
tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses imortais,
Indigentes, Heroicos e de Magnos.
Por isso, ó vós
que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser
tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo;
93
E ponde na cobiça um freio duro,
E, na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e
escuro
Vício
da tirania, infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão
à gente;
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
94
Ou daí na paz as leis iguais,
constantes,
Que aos grandes não deem o dos pequenos,
Ou vos vesti nas armas
rutilantes,
Contra a lei dos inimigos
Sarracenos:
Fareis os reinos grandes e
possantes,
E tereis mais, e nenhum menos;
Possuireis riquezas merecidas,
Co’as
honras que ilustram tanto as vidas.
95
E fareis claro o Rei que tanto
amais,
Agora co’os conselhos bem cuidados,
Agora co’as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais.
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos,
E nesta "Ilha de Vênus"recebidos.
Observação: Tétis
aconselha o Vasco sobre o futuro, advertindo-o como metonímia representativa do povo lusitano. Marcam
profundamente estas palavras as expressões: "se quiserdes no mundo ser tamanhos/
despertai já do
ócio
ignavo/ que o ânimo,
de livre, faz escravo." E acrescenta duras
palavras ao seu conselho: "E ponde
na cobiça
um freio duro..."
Releia a estrofe 93: honras vãs, ouro puro, vã cobiça... Há crítica de como
os portugueses conduziam ou conduziriam seus domínios.
Canto X
Ainda na Ilha dos Amores, Sirena dará
conta dos feitos futuros dos portugueses. Do
monte Tétis
mostra ao Gama a esfera terrestre. Os portugueses partem da Ilha. E retornam,
finalmente, a Lisboa.
144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca
irado,
Até que
houveram vista do terreno
Em que nasceram, sempre desejado;
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua
Pátria e Rei temido e amado
O prêmio e glória dão por que mandou
E com títulos novos se ilustrou.
I. EPÍLOGO
Esta parte estrutural inicia-se na estrofe 145 do último canto; são onze estrofes reflexivas, em que o narrador dirige-se à Calíope em tom lamentoso, mas grandiloquente:
145
Não
mais, Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz
enrouquecida,
E não
do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e
endurecida.
O favor com que mais se acende o
engenho,
Não
no dá a Pátria,
não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil
tristeza.
(...)
154
Mas eu que falo, humilde, baixo e
rudo,
De vós não
conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei,
contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado;
Nem me falta na vida honesto
estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis
presente,
Cousas que andam juntas
raramente.
O narrador , na estrofe 154, parece retomar as palavras da Proposição: sua experiência e "honesto estudo" fundem-se ao "engenho" do
fazer poético,
aqui entendido como "capacidade de criação, astúcia para
fazer
o poema magnífico"
que é.
O Epílogo contém, ainda, apelos ao rei D. Sebastião, reflexões sobre a moralidade e crítica à decadência da nação tão
gloriosa.
Terminam Os Lusíadas e está contada, fantasiosamente, usando-se de mitologia e, portanto, do
maravilhoso e do inverossímil, a
história de uma
gente ousada que, lançando-se
ao mar tenebroso, conquistou o mundo, ainda que reduzido, no século XVI.
Canto III de Os Lusíadas
Episódio de Inês de Castro
1. Pressupostos históricos para o entendimento do texto:
A História de Inês de Castro, a rainha coroada depois de morta, possui
pelo menos 10 versões
correntes. Uma boa parte delas, assenta-se, sobretudo, na necessidade que o
povo português teve (e
tem) e glorificar ao extremo os seus heróis e mitos, sobretudo os do fim da Idade Média.
Certo é também que tanto Fernão Lopes quanto Camões trataram de endeusar tal rainha, morta realmente no dia 7 de
janeiro de 1355, por ordem do Conselho de Anciãos de do próprio rei
Afonso IV, após a leitura
"de culpa", na frente dos filhos, em ausência do Infante D. Pedro, que houvera saído de Lisboa, a pedido do pai.
Certo é também que D. Pedro apaixonou-se perdidamente por ela
e com ela teve dois filhos; da mesma forma que é
dado como certo que ele, endoidecido de paixão, mandou desenterrar Inês e coroou-a "Rainha de Portugal", bem
como reconheceu como seus sucessores seus filhos, elevando-os à categoria de Infantes, ou seja, aspirantes ao
trono português depois
de sua morte.
Inês é hoje, como o foi desde sua morte, um mito
português. Nem se
sabe ao certo sua verdadeira origem, posto que tudo quanto a cerque foi, aos
poucos, sendo envolvido nas brumas da necessidade de um mito que consagrasse o
amor como eterno e indestrutível. Ou sagrado, sobre todas as coisas.
Dá-se como
correto o fato de que descendia de família nobre e que veio para Portugal como dama de companhia de D.
Constança, esposa
de D. Pedro. Conta-se que sua esplêndida beleza perturbou os sentidos do futuro rei e que ele a levou do
castelo para uma quinta, nas proximidades do Mondego, ao norte de Lisboa, e
passou a vê-la em segredo.
Especula-se, ainda, que D. Constança teria morrido de desgosto, ao dar-se conta de que a amiga em quem
confiava e a quem confiava suas mágoas a traíra. Após a morte da mulher, Pedro casa-se em segredo com
Inês, o que
causa um gigantesco escândalo em
Portugal.
Pressionado pelo Conselho de Anciãos e pelos conselheiros-ministros, D. Afonso IV, consente em matar Inês.
Ao voltar a Lisboa, sabendo que o pai morrera de desgosto, Pedro fica
sabendo sobre a morte da amada, desenterra-a após 28 dias de morta (para alguns historiadores isso acontece depois de
5 anos), coroa-a rainha. Aos assassinos de Inês, D. Pedro aplica os piores castigos (Fernão Lopes narra tais episódios), tirando-lhes, em praça pública, o coração pelas
costas e jogando suas vísceras
aos cães sarnentos
de Lisboa. Aos restos deles, manda queimar. Após esse dia, recebe o nome de Pedro, o Cruel ou Pedro, o Cruel.
O certo é que os túmulos de D. Inês de Castro de Alcobaça e de D. Pedro, o Cruel, estão enterrados frente a frente no Mosteiro de Alcobaça e os eternos amantes, assim o creem, poderão estar juntos para a eternidade após o Juízo Final.
118
Passada esta tão próspera vitória,
Tornando Afonso à lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória,
Quanta soube ganhar na dura guerra;
O caso triste, e digno de memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha,
Que depois de ser morta, foi Rainha.
A "próspera vitória" a que o texto se refere é a da Batalha de Salado, acontecida em
1340, em que portugueses aliados aos espanhóis combateram, e venceram, os mouros, dando ensejo a uma
longa paz entre Portugal e Espanha. Afonso é
o rei Afonso IV, que governou os
portugueses de 1325 a 1357.
119
Tu, só tu, puro
amor, com força crua,
Que os corações humanos
tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes
se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.
A referência
é sobre
a tirania que o amor exerce sobre os seres que o sentem: "áspero e tirano", desvia o destino
das criaturas (ou converge-os para onde deveriam verdadeiramente se dirigir?).
O narrador refere-se ao fato da morte de Inês ter sido ocasionada porque ela se apaixonara - e era
correspondida — por
Pedro, o futuro rei de Portugal, filho de Afonso IV.
120
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Inês
vivia, de sua beleza, os melhores dias. Casada às escondidas com D. Pedro, colhia os doces frutos do amor,
longe da corte. E de saudades chorava (o rio jamais secava por isso...).
Secretamente eles viviam um tempo feliz, embora ela não pudesse ser assumida por ele
publicamente.
121
De teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam,
E quanto enfim cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
Quando apartada do amado, Inês sonhava com ele; de noite os sonhos mentiam que ele
estivesse com ela; de dia, "os pensamentos voavam" de encontro ao
amado. Mas quando ele aparecia para vê-la em segredo "eram tudo memórias de alegria".
122
De outras belas senhoras e princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho que casar-se não queria,
Inês
desprezava o que as outras mulheres sonhavam: um leito nupcial (tálamos) nos modelos tradicionais; enjeita
tudo e se sujeita ao amor do príncipe. D. Afonso ouve o murmurar do povo e estranha que
Pedro, após
enviuvar-se, não
tenha querido se casar com nenhuma outra princesa ou senhora da corte, preferindo
Inês.
123
Tirar Inês ao mundo
determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co_o sangue só da morte indigna
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde
sustentar o grande peso
Do furor mauro, fosse alevantada
Contra ua dama delicada?
O homem que vencera os mouros, agora premido pelas circunstâncias e pelo Conselho de Anciãos, determina que Inês seja morta, na esperança de tirar-lhe o filho que a ela se
prende por amor e fazê-lo
casar com quem seja conveniente ao tratado entre Portugal e Espanha.
124
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu príncipe e filhos
que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
Inês
é trazida
para o julgamento por dois algozes (soldados que mais tarde vão ser mortos por Pedro); D. Afonso IV,
ao vê-la,
é tocado
pela piedade, mas o "povo" (leia-se aqui o Conselho de Ministros) o
convence de que ela deve morrer pelo bem de Portugal.
125
Para o céu cristalino
alevantando
Com lágrimas os
olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos),
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos
tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assi
dizia:
Inês
de Castro vinha acompanhada dos filhos pequenos que a ela se agarravam (segundo
a crônica
de Fernão
Lopes); ela tenta se defender das acusações e chora.
126
"Se já nas brutas
feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso
sentimento,
Como co_a mãe de Nino já mostraram
E co_os irmãos que Roma
edificaram,
Inês
exemplifica com situações
em que as feras cuidaram dos seres humanos, ou seja, foram mais brandas, menos
cruéis
que o sogro.
127
"Ó tu, que
tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar ua donzela
Fraca e sem força, só por ter
sujeito
O coração a quem
soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois não te move
a culpa que não tinha.
Inês
insiste em dizer que não
é humano
matar uma moça
porque ela se submeteu ao amor do homem que ama. Pede clemência em nome dos filhos que tem com
Pedro, implora pela piedade de D. Afonso.
128
"E se, vencendo a moura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com
clemência
A quem para perdê-la não fez erro;
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva
eternamente.
D. Afonso é incitado a reconhecer que se já
venceu os mouros na Batalha de Salado
também
pode perdoá-la,
uma vez que Inês
alega não
ter cometido erro algum. E implora ao rei que a desterre para terras quentes ou
muito frias, onde viva chorando, mas viva.
129
"Põe-me onde
se use toda a feridade,
Entre leões e
tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co_o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam de mãe triste."
Continua se dirigindo ao rei e faz uma comparação: entre feras talvez ache piedade, o
que não
encontrou ali, entre peitos humanos. Pede, ainda, que lá, no desterro, possa criar os filhos, "relíquias", longe do amado e que eles
possam ser refrigério
(consolo) de mãe
triste que ela será.
130
Queria perdoar-lhe o rei benigno,
Movido das palavras que o magoam,
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?!
D. Afonso é tocado pelas palavras da moça, e tais palavras o magoam, mas os homens arrancam das
espadas de aço
fino e, apesar dos bons modos que apresentam, vão matá-la.
É bom lembrar que a morte de Inês não foi assim: ela foi degolada na presença dos filhos.
131
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema
de mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co_o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoidece,
Ao duro sacrifício se oferece:
A passagem refere-se a um fato da mitologia grega: o fantasma
de Aquiles, que fora herói
na Guerra de Tróia,
e lá morrera
ao ser atingido por uma seta no calcanhar, único ponto vulnerável de seu corpo, ordena a Pirro, seu filho, que use a espada
para matar Policena. Ele a mata quando Policena estava chorando sobre o túmulo do morto. Tal como Policena, que se
oferece ao sacrifício,
Inês
também
o faz.
132
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas flores
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
Os matadores banham suas espadas "de aço fino" do sangue do peito de Inês, peito este que ama Pedro. Tais
matadores nem suspeitam do que o futuro lhes reserva: castigo cruel, assistido por
um público
ávido.
133
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar naquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!
Outra vez a mitologia: Atreu, irmão de Tistes, vingou-se dele quando soube
que o traía
com sua esposa; suprema vingança, deu ao irmão, para comer, a carne dos próprios filhos.
134
Assi como a bonina, que cortada,
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor co_a doce vida.
Está morta
Inês,
maltratada por mãos
terríveis,
pálida
como flor que cortada foi antes do tempo.
135
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas
choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
"Dos Amores de Inês", que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome Amores!
As ninfas do rio Mondego choraram longamente a morte de Inês de Castro e suas lágrimas foram transformadas numa fonte: "Dos
Amores de Inês".
A fonte hoje existe e está lá, mas é
claro que você não vai acreditar em mitologia, vai?
O Episódio do Velho
do Restelo
Canto IV de Os Lusíadas
90
Qual vai dizendo:- ó filho, a quem eu tinha
Só para
refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amargo;
Por que me deixas mísera e mesquinha?
Por que te mim te vais, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?
No primeiro verso: "qual vai dizendo: ó filho..." A influência é
de Virgílio, na Eneida ( Canto XI, 481-483); a mãe de Euryalo é quem diz essas palavras:
"Será tu
mesmo que eu vejo, Euryalo?
será que
tu, cruel, tu, este tardio repouso
de minha velhice, pudeste deixar-me
sozinha!"
91
Qual em cabelo: - ó
doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida, que é
minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?
Outra mulher, com os cabelos desgrenhados, sem tapá-los com um véu, fala ao marido, interrogando-o sobre
a causa de abandoná-la
e deixar-se ir ao mar "iroso", muitas vezes sem volta. É o grito aflito das mulheres o que ela
simboliza. É um
lamento sobre o abandono dos sentimentos verdadeiros em favor das navegações que a tudo obrigam.
92
Nestas e noutras palavras que
diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam
Em quem menos esforço põe
a idade:
Os montes de mais perto
respondiam
Quase movidos de alta piedade,
A branca areia as lágrimas banhavam
Que em multidão com elas se igualavam.
Também
os velhos e os meninos acompanhavam as mulheres em suas queixas. Há uma hipérbole: a multidão banha com as lágrimas a areia do Restelo.
93
Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, n'este estado,
Por não nos magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado:
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado;
Que posto que é de amor usança boa,
a quem parte, ou fica, mais magoa.
Quem narra é Vasco: nem ele, nem a tripulação tinham coragem de erguer os olhos para os homens, crianças e mulheres que lamentavam a viagem.
Vasco reconhece que para quem vai ou fica, a mágoa é a
mesma, mas que aos que ficavam a dor era maior.
94
Mas um velho de aspecto
venerando,
Que ficava nas praias, entre a
gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três
vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco
alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um
saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do esperto
peito:
Estavam todos se lamentando quando, entre eles, um velho (o
velho do Restelo) "de aspecto venerando", respeitável, falará
aos navegadores já embarcados. As palavras com as quais se dirige
à Vasco
e sua tripulação,
ele as tirou do "experto peito", do peito experimentado.
Veja que o ponto de vista narrativo é de Vasco da Gama: "postos em nós os olhos/ que no mar ouvimos..." É o ponto de vista dos embarcados, do
navio para a praia.
95
"Ó glória
de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos
fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se
chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que
tormentas,
Que crueldade neles experimentas!
Esta fala do velho é
o ponto mais importante de todo fragmento
pedido pela Fuvest. "Glória de mandar", "vã
cobiça", "vaidade", ou seja, o velho critica os próprios feitos que a epopeia insiste em
cantar. Uma figura magnífica,
próxima
do coro grego encarregado de admoestar o herói.
96
"Dura inquietação d’alma
e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te
subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
"Glória de mandar" é
causa da inquietação, dos desamparos e adultérios. Pode enganar o povo ignorante, mas
tudo consome em nome das conquistas materiais, inclusive os bens mais preciosos
da afeição,
do afeto.
97
"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo d’algum nome preeminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
O velho ainda refere-se à
"Glória de mandar", à
cobiça vã que
ela gera e faz lembrar os desastres que pode causar à gente navegadora portuguesa, glória esta que tudo promete.
98
Mas ó tu, geração d'aquele insano,
Cujo pecado, e desobediência,
Não somente de reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência
Mais ainda d'outro estado mais que humano,
Da quieta, e da simples inocência
Da idade d'ouro tanto te privou,
Que na de ferro, e d'armas te deitou:
Entenda "aquele insano" como Adão e como "reino soberano" como
o Paraíso
de onde Adão
foi expulso e estenda isso como se o desafio dos portugueses em colocar os
navios sobre o mar tenebroso fosse também desobediência contra Deus.
99
Já que
nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia;
Já que
é bruta crueza e feridade
puseste nome, esforço e valentia;
Já que
prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada; pois que
já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
Uma alusão (verso 8) ao sofrimento de Jesus no Horto das Oliveiras e
um chamamento: se o próprio
Cristo temeu perder a vida, os portugueses não temeriam?
100
Não tens junto contigo o ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só
pelejas?
Não tens cidades mil, terra infinita,
Se terras, e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Referência
de novo a Jesus, o ismaelita, e aos muçulmanos, o Arábio, Maomé. Uma lembrança de que os portugueses devem ser a lei de Cristo.
101
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o reino antigo,
Se enfraqueça, e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto, o incógnito perigo,
Por que a fama te exalte, e te lisonje,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
Outra advertência: os portugueses permitem que o inimigo esteja próximo, abandonam o país, e vão lutar em alheia terra, tão distante. O velho quer, na realidade, uma justificativa
para isso.
102
"Oh! Maldito o primeiro que
no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno de eterna pena do Profundo,
Se é justa
a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
De novo um ponto alto deste trecho: é a condenação aos monarcas que não hesitam em sacrificar o dinheiro do povo para as grandes
navegações,
colocando os "secos lenhos" (navios) sobre o mar. A passagem é forte: "maldito o primeiro que no
mundo pôs
nas ondas vela em seco lenho". Uma crítica feroz à índole navegadora portuguesa, causa de desamparos e misérias.
103
Trouxe o filho de Jáspeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito
humano;
Fogo que o mundo em armas
acendeu,
Em mortes, em desonras, grande
engano!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogos de altos desejos, que a
movera!
Jáspeto
é um
titã,
filho do Céu
e da Terra, vencido por Zeus. Desposou Climene de quem teve um filho: Prometeu.
E Prometeu é um
símbolo
forte demais: é aquele
que furta do Olimpo o fogo sagrado da inteligência e o dá aos humanos comuns e aos andróginos, visando à
evolução do mundo. Ou seja, o narrador atribui a Prometeu também os desvarios que os homens do presente
cometem, movidos pelo conhecimento, pelo progresso humano que este fogo traz.
104
Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquiteto co'o filho, dando
Um nome ao mar, e o outro fama ao rio:
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!
"Arquitector" é
um arcaísmo usado para "construtor"; a referência é
para Dédalo, o construtor dos labirintos de Creta. Preso lá por Minos, o rei da ilha, a fim de que não espalhasse ao mundo as notícias sobre seu filho Minotauro, Dédalo fabricou asas para ele e para Ícaro, seu filho (ou seu sobrinho). Ícaro foi advertido para que não voasse muito alto, perto do sol,
porque as penas foram juntadas com cera e poderiam derreter. Desobedeceu, despencou
do mais alto e morreu afogado no mar Egeu. Ícaro e Dédalo são
também
símbolos
muito fortes, metáforas
de todos nós,
humanos e nossos sonhos de liberdade e esperança, da fuga dos labirintos que nós mesmos construímos para nós. No entanto, Ícaro voa sem disciplina e, metaforicamente, cairá no mar (da existência) onde, despreparado, morrerá afogado.
Notas
"Estava já
tudo preparado. No dia 7 de julho de
1497, uma sexta-feira, Vasco da Gama e seu irmão Paulo da Gama e Nicolau Coelho foram velar a noite na
Capela de Nossa Senhora de Belém, situada no Restelo, no local onde depois se ergueu o magnífico edifício de Santa Maria de Belém. Construída por ordem do Infante D. Henrique para irem ali os
marinheiros, antes de encetarem as suas viagens, invocar o auxílio do Céu, a pobre ermidinha erguia-se defrontando com o rio, melancólica e solitária. Ali rezou Vasco da Gama
devotadamente para que a Providência lhe fosse propícia, para que a Virgem, orago da capelinha, lhe fosse nas
tribulações
do Oceano a Stella Maris que se invoca nas ladainhas. No dia seguinte, sábado, reuniu-se a
turba imensa no Restelo. Veio el-rei, vieram os padres para
dizer a missa, e, depois, os navegantes caminhando em procissão devota em direção ao rio, empunhando cada um deles uma tocha,
encaminharam-se para os navios. A solenidade religiosa a sua majestade ao ato já de si tão solene." ( Oliveira Martins, historiador)
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário