"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O velho do Restelo e Inês de Castro

Análise dos Cantos III e IV de Os Lusíadas
Luiz de Camões


Mar português

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o Céu.

1. Luís Vaz de Camões, pequena biografia do "Poeta máximo".

"Camões, só por si, vale uma literatura inteira."
( August- Wilhelm Schlegel)

Todo e qualquer esforço de proceder-se a uma mínima biografia de Luís Vaz de Camões redundaria por quase inútil, em face da escassez de dados reais sobre o maior poeta português. Dá-se como certo seu nascimento em 1524 ou 1525, por favor de um registro seu feito pela Armada portuguesa que lhe atribui, em 1550, 25 anos. Filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá Macedo, seu nascimento pode ter ocorrido em Lisboa ou Coimbra, grandes centros da época, embora haja quem afirme nascido em Alenquer ou Santarém. Era rei português nessa época D. João III, que governou Portugal entre 1521 e 1557.
Pelo fato de ter tido educação esmerada, possivelmente em curso superior de Artes e Humanidades (fato atestado pelos escritos do poeta onde se notam conhecimento em Latim, grego, mitologia clássica, geografia, cartografia, astronomia, escritores clássicos greco-latinos e cultura geral), querem seus biógrafos fazer crer ter sido Camões oriundo de família de pequena nobreza, embora decaída, dadas as dificuldades pecuniárias por que o poeta passou toda a vida.
O certo é que nenhuma biografia nega que foi soldado mercenário (pago para lutar) e que já em 1547 esteve em Ceuta e em luta contra os mouros perdeu o olho direito. Em 1550, como o faziam então os fidalgos, alistou-se na Marinha portuguesa, mas não chegou a embarcar para as Índias.
Em 1552 brigou com Gonçalo Borges, servidor do palácio, ferindo-o com um golpe certeiro de espada. Foi preso pelas ordens del-Rei e, depois de passar alguns meses na prisão, foi multado e obrigado a embarcar para as Índias. E sua peregrinação pelo Oriente foi longa e tumultuada: Goa, Golfo Pérsico, Ternate. Foi provedor de defuntos e ausentes em Macau, onde naufragou e, segundo consta a lenda, teria perdido Dinamene, sua companheira chinesa. Diz ainda a lenda que se safou nadando e levando o manuscrito de Os Lusíadas.
Em Goa, dá-se por certo sua prisão por dívidas, mas esteve sempre próximo das autoridades, em relação de proteção, o que o salvou de outras penalidades mais atrozes. Em 1567, um amigo do poeta, que fora nomeado capitão para Moçambique, promete-lhe emprego, adiantando, para as passagens, o pagamento de seus salários. Mas outro grupo de amigos, algum tempo depois, cotiza-se para pagar-lhe a viagem de retorno a Portugal.
Em 1569 chega a Lisboa. Estava tão pobre que "comia de amigos", ou seja, comia de favor. Leva na bagagem o livro Os Lusíadas, editado em 1572, sob custódia do rei D. Sebastião, a quem a obra é dedicada e graças a quem, apesar de conter mitologia, consegue passar pelos rigores do selo do Santo Ofício. Em reconhecimento à grandiosidade de sua obra, o poeta ganha uma tença anual de 15.000 réis, recebida irregularmente, mas que o faz sobreviver com certa dignidade até a morte de seu protetor, D. Sebastião.
Ganhou fama e notoriedade, reconhecimento de seu país, mas após a morte daquele rei, morreu em 1580, ao que se registra de varíola, na mais absoluta miséria. Seu enterro tem duas versões: uma, a que lembra que foi pago por uma certa Companhia dos Cortesãos, obra beneficente; outra, a que foi enterrado em vala comum, sem caixão que de ordinário acompanhava os defuntos. A última hipótese parece a mais verossímil.

2. A OBRA CAMONIANA
De maneira genérica, podemos dividir a obra do maior poeta português do século XVI da seguinte forma:

I.POESIA:
A. ÉPICA : Os Lusíadas ( 1572)

B. LÍRICA:
1. lírica tradicional, em versos redondilhos
2. lírica clássica, sonetos, versos decassílabos

II.TEATRO:
"O teatro camoniano restringe-se a três peças, em que se combinam três influências: a do auto vicentino, a do teatro clássico e a do romance medieval de cavalaria. São elas: Anfitriões, El-Rei Seleuco e Filodemo.
Anfitriões tem por assunto a comédia de igual nome de Plauto. Escrita em versos populares de sete sílabas (redondilha maior), trata da história do deus Júpiter que, para conquistar a virtuosa Alcmena, disfarça-se sob a figura de seu marido ausente e amado, Anfitrião. É um argumento que foi repetidamente tratado pelos comediógrafos clássicos e modernos, a partir da peça latina de Plauto.
El-Rei Seleuco foi composta em versos (redondilhas) e em prosa. Escrita em 1545, conta um caso narrado pelos antigos autores clássicos, ou seja, a cessão feita pelo rei Seleuco de sua própria esposa. O filho está apaixonado pela madrasta e o pai decide-se a lhe ceder a esposa.
Filodemo apresenta uma série de quadros que nos contam aventuras romanescas de personagens que aparecem saídas das páginas das novelas de cavalaria: crianças abandonadas e criadas por pastores, amores entre jovens aparentemente de classe social diferente, reconhecimento da verdadeira identidade daqueles que parecem humildes mas são nobres, etc."

(transcrevemos o fragmento de Camões e os Lusíadas, Paulo B. Monteiro e Beatriz Berrini, Pioneira-SP)

3. A epopeia camoniana

"Cantando espalharei por toda a parte
Enquanto me ajudar engenho e arte."
(Os Lusíadas, Proposição, versos 15 e 16)

"Os Lusíadas servirão perpetuamente, como até agora serviram, a manter coeso o sentido heroico e realizador da nacionalidade."
(Tasso da Silveira, crítico literário)

As conquistas marítimas portuguesas, desde o século XV, já vinham despertando no povo lusitano um orgulho mal-contido e alguns poetas manifestavam desejo de escrever uma epopeia para o país. No reinado de D. João II o humanista italiano Ângelo Policiano ofereceu-se àquele rei para realizar tal feito e pôr num poema narrativo, de "versos latinos", os ainda incipientes feitos portugueses.
Mais tarde, já no reinado de D. João III, Luís Vives elogia os feitos portugueses numa dedicatória e o próprio Garcia de Resende, na introdução de seu Cancioneiro Geral de 1516, mostra-se entristecido pelo fato de não se ter notícia, ainda, de nenhum poema epopeico que louve condignamente a gente lusitana. E somente cinquenta anos depois é que Camões daria à sua pátria aquele que é considerado o maior poema épico escrito em nossa língua.
É interessante considerar que trazer à luz um poema narrativo, de características épicas, com modelo greco-latino, usando mitologia grega e abertamente cultuando um herói, não era tarefa fácil no final século XVI mercantilista. Mas Camões conseguiu tal façanha e tocou fundamente o peito da gente e do rei de Portugal.

1. Um modelo
À época de Camões, as viagens ultramarinas, as conquistas das colônias, a heroicização dos navegadores deram ensejo ao uso do modelo grego clássico, mais especificamente ao de Homero e sua Odisseia, escrita tantos séculos antes, mas que tinha, enfim, um mesmo núcleo de ações heroicas.
Embora se deva a Virgílio o modelo seguido no início do poema, especialmente na Proposição, é de Homero que Camões empresta o modelo efetivo na realização de sua epopeia.

2. Um herói
"Nada é mais fantástico que a própria realidade."
A. Dostoievski)

Vasco da Gama , navegador que em 1498 abriu o caminho marítimo-comercial para as Índias é o herói individual do poema. É metáfora simbólica, no entanto, de um povo e suas façanhas, de um tempo especialmente rico e pleno para a Nação portuguesa.
Ele encarna o modelo heroico de maneira decisiva: põe-se ao mar, ainda "tenebroso" e segue para outras terras. Abrir o caminho marítimo-comercial não era apenas o começo, era um fim em si mesmo: conquistar através do mar imenso, a grandiosidade, a coragem, a dignidade, expandindo a monarquia portuguesa e a fé cristã. Sob outro enfoque, buscar riquezas e fazer jus à coragem com o que se inflamavam as mentes lusitanas.
Vasco é, na epopeia, um misto de herói e narrador. E representa um outro herói, este coletivo: todo um povo e seu orgulho; uma gente que se pôs ao mar e conquistou o mundo.

1. O assunto
"(...) Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram;(...)"
( Os Lusíadas, Canto I, 3/ 5 e 6)

O assunto fundamental da epopeia é a viagem de Vasco da Gama às Índias. Ao redor dele gravitam outros importantes eixos poéticos:
a) A narrativa da história de Portugal;
b) Os ideais renascentistas de expansão do poderio português;
c) O ideal cristão de expandir a Fé;
d) O sentimento heroico-ufanista do colonizador português.
 
4. A estrutura da epopeia
A) NOÇÕES GERAIS
O poema Os Lusíadas é uma epopeia; isto quer dizer o que você já sabe e o que os gregos e romanos também sabiam: existe nele a intenção clara de louvar um herói. Quando nos referimos ao épico, quer dizer poema narrativo com intenção visivelmente demarcada: louvar o herói como modelo de comportamento, ou, através dele, louvar uma raça, um povo, uma comunidade.
Poema narrativo?
Sim. Um poema que conta uma história de maneira detalhada, em ordem cronológica ou acronológica. Por que um poema e não prosa? A resposta é: na Antiguidade, poucas pessoas sabiam ler ou escrever; portanto, as narrativas eram feitas em versos que, por conterem rimas, ficavam mais fáceis de ser decorados e, consequentemente, passados de gerações para outras gerações.
O poema épico Os Lusíadas está dividido em 10 cantos, isto é 10 partes, divisões internas que, caso fossem prosa, corresponderiam às mesmas divisões internas de partes ou capítulos dos romances ou novelas.
Composto de 1.102 estrofes em oitava rima ou rima-real, o que equivale dizer que cada uma dessas 1.102 estrofes tem oito versos e esses versos são decassílabos. Só isso? Não... Essas estrofes têm sempre o mesmo esquema rímico

ABABABCC:
1 "No / mar/ tan/ta / tor/ men / ta e / tan/ to /da /no, ( A )
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
2 Tan /tas/ ve / zes / a/ mor/ te a/ per/ ce/ bi/ da! (B)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
3 Na/ te/ rra,/ tan /ta /gue/ rra,/ tan/ to en /ga/ no, (A)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
4 Tan/ ta/ ne/ ce/ ssi/ da/ de a / bo/ rre/ ci/ da! (B)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
5 On/ de/ po/ de a/ co/ lher-/ se um/ fra/ co hu/ ma/ no, (A)
6 On/ de/ te/ rá/ se/ gu/ra a / cur/ /ta/ vi/ da, (B)
7 Que / não/ se ar/ me e/ se in/ dig/ne o / Céu / se/ re/no ( C)
8 Com/ tra /um / bi/ cho/ Te/ rra/ tão / pe/ que/no?"( C)
( Os Lusíadas, Canto I, estrofe 106)

Observe: todo o poema é composto de 1.102 estrofes idênticas ao exemplo acima transcrito no que diz respeito ao esquema rímico, à oitava rima e versos decassílabos.
Em sua maioria, os versos são decassílabos heroicos (tonicidade na 6a. e 10a. sílabas); há, no entanto, embora em pequena proporção, o uso da tonicidade sáfica (decassílabos com tonicidade na 4a., 8a. e 10a.
sílabas).

A. AS CINCO PARTES DO POEMA
Tal como a obra clássica, o poema, estruturalmente, divide-se em cinco partes: Proposição, Invocação, Dedicatória, Narração e Epílogo.
Em palestra proferida no Recife, durante seminário promovido para comemorar os 400 anos da publicação de Os Lusíadas, o professor Segismundo Spina, uma das autoridades em Camões, professor da USP, indagava se o poeta teria elaborado a epopeia a partir do primeiro canto e, de maneira contínua, construíra sua obra até o décimo.
A resposta para isso é não, certamente. Uma obra de tal envergadura não poderia, na sua confecção, prender-se a uma linearidade estrutural que a própria narração não tem. Ou seja: o poeta foi escrevendo as
partes e só depois de prontas alinhou-as, alinhavou-as, fez delas um todo. Mas, com certeza, ao fazer isso, sabia que deveria obedecer a ordem acima.

1. Proposição
Entenda tal procedimento como a apresentação dos assuntos, ou assunto, sobre os quais se vai narrar. No caso de Os Lusíadas, a uma enumeração grandiosa de feitos, ações, criaturas, povo, reis, atividades portuguesas que são anunciadas minuciosamente em três estrofes. Assim, podemos observar que os 24 primeiros versos formam, pois, a proposta do narrador:

1
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca dantes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

2
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
a Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3
Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Temos aqui três estrofes que estruturalmente já aprendemos a reconhecer: foram concebidas em oitava-rima ou rima-real; cada uma delas tem oito versos, dez sílabas métricas e seu esquema rímico é ABABABCC. As três integram o que denominamos Proposição.
Observe que os versos 15 e 16, na segunda estrofe, correspondem a um enorme hipérbato, prova da sintaxe opulenta de que os clássicos se utilizavam. Tais versos, em verdade, deveriam iniciar o poema uma vez que as enumerações sobreo que o poeta cantará, nos catorze versos iniciais, são sucessivos objetos diretos do verbo cantar. Observe-os: "As armas e os barões assinalados"; "as memórias gloriosas"; "e aqueles que por obras valerosas".
Fixe-se também na expressão "por mares nunca dantes navegados"; o que o poeta cantará (cantar no sentido de louvar, glorificar) é a Viagem de Vasco da Gama e seus navegadores que, saindo da Praia do Restelo ("ocidental praia lusitana") puseram-se ao mar e foram para além do Ceilão (hoje conhecemos este país como Sri Lanka).
Há também na terceira estrofe uma aproximação entre portugueses e heróis da Antiguidade clássica. "Cessem do sábio grego (Ulisses) e do Troiano (Enéias),/ as navegações grandes que fizeram; cale-se de Alexandre (Magno) e de Trajano (imperador romano)/ a fama das vitórias que tiveram,/ que eu canto o peito ilustre e lusitano/ a quem Netuno e Marte obedeceram. Quando o poeta pede para cessar o antigo, está automaticamente exaltando os feitos do "novo", representado aqui pela metonímia "peito ilustre lusitano". É fundamental notar a comparação de caráter heroico, transformador.
Com :
"Cesse tudo que a musa antiga canta,
que outro valor mais alto se alevanta."

Fica claro observar que os portugueses, no tempo presente da epopeia, substituem gloriosamente os heróis passados e seus feitos e, se comparados aos dos antigos heróis, são sobejamente superiores:
"outro valor mais alto se alevanta".
Portanto, fica comprovada a mobilização poética através da ufania, orgulho nacionalista, e do superdimensionamento dos feitos portugueses.
"À ideia da epopeia pátria andava associada certa ideologia oficial forjada pela expansão, e cujas raízes encontramos já em Zurara. Segundo essa ideologia, os Portugueses cumpriram uma missão providencial, dilatando tanto o Império como a Fé: eram Cruzados por excelência."
(in História da Literatura Portuguesa, O Lopes , Antonio J. Saraiva)

2 . Invocação
Os poetas clássicos também invocavam suas musas logo após a Proposição do poema épico. Fazia parte da estrutura poética clamar pelas benfazejas criaturas que auxiliam os compositores e legar-lhes um bom número de estrofes. Em especial, os poetas épicos invocavam Calipso ou Calíope, a nona musa, a que auxilia os cantos heroicos, segundo a mitologia grega.
Camões em Os Lusíadas heroicizava os feitos portugueses; portanto, as musas por ele invocadas na Parte II são as tágides, ou seja, criaturas que, segundo a mítica criada pelo autor, habitariam as águas do rio Tejo, o rio por onde iam ao mar as naus portuguesas em busca das novas conquistas. A Invocação inicia-se na quarta estrofe e é composta apenas de duas estâncias, que passamos a transcrever:

4
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.

5
Dai-me ua fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas da tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Daí-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda:
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.

Observe:
Dirigindo-se às Tágides, lembra-lhes que celebrava o rio onde habitam através "verso humilde", ou seja, na poesia lírica, o que é absolutamente verdadeiro, posto ter sido Camões cantor do Tejo.
Dispõe-se a usar, se elas o ajudarem, "um novo engenho ardente", que aqui pode ser interpretado como os versos decassílabos, eloquentes, da epopeia.
Suplica-lhes "um som alto e sublimado, um estilo grandíloquo" e compara as águas habitadas pelas Tágides com a fonte aberta pelo cavalo Pegasus, ser alado e divino; quem bebesse de tal fonte, diz a lenda, tornar-se-ia poeta e faria os mais belos versos de toda a literatura.
Verifique que, além das musas, de Febo e Hipocrene, aparece Marte, o deus da guerra. É tempo, outra vez, de refletir na influência clássica dos gregos e dos latinos não só nessa epopeia camoniana, mas em todas as atividades literárias ou artísticas da época.

1. Dedicatória
O poema, como já foi exaustivamente dito, é oferecido ao rei D. Sebastião, responsável pela publicação de Os Lusíadas, e responsável pelas tenças que Camões recebeu até 1578, por favor do elogio à Pátria e ao povo lusitano.
A Dedicatória é longa (ao todo 13 estrofes) e vai da 6a. até a 18a. estrofe, inclusive. É preciso não esquecer o fato de estarmos ainda no Canto I da epopeia. Leia os versos:

6
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande.

7
Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que ele para si na Cruz tomou);

8
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do turco oriental e do gentio
Que inda bebe o licor do Santo Rio:

9
Inclinai por um pouco a majestade,
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgados numerosos.

10
Vereis amor da Pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno,
Que não é prêmio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor supremo,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo rei, se de tal gente.

11
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas;
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro,
E Orlando, inda que fora verdadeiro.

12
Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao rei e ao Reino tal serviço;
Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero
A cítara para eles só cobiço;
Pois pelos Doze Pares dar-vos quero
Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço;
Dou-vos também aquele ilustre Gama,
Que para si de Enéias toma a fama.

13
Pois se a troco de Carlos, rei de França,
Ou de César, quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso, cuja lança
Escura faz qualquer estranha glória;
E aquele que a seu Reino a segurança
Deixou, com a grande e próspera vitória;
Outro Joane, invicto cavaleiro;
O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.

14                                                                                                                     
Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
Se fizerem por armas tão subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco fortíssimo e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque terrível, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte.

15
E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça espanto)
Dos exércitos e feitos singulares,
De África as terras e do Oriente os mares.

16
Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vê seu exílio afigurado;
Só com nos ver, o bárbaro Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis todo o cerúleo senhorio
Tem para vós por dote aparelhado,
Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja de comprar-vos para genro.

17
Em vós se vêm da olímpica morada,
Dos dous avós as almas cá famosas,
Ua paz, na paz angélica dourada;
Outra, pelas batalhas sanguinosas;
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas;
E lá vos têm lugar, no fim da idade,
No Templo da Suprema Eternidade.

18
Mas, enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Daí vós favor ao novo atrevimento,
Para que estes meus versos vossos sejam,
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado;
E acostumai-vos já a ser invocado.

Observe:
D. Sebastião estava vivo quando Camões, ao dedicar-lhe a epopeia, usa todo orgulho lusitano e nele resume a esperança de melhores tempos e empenha-se em atribuir-lhe um lugar de destaque entre os reis passados.
D. Sebastião é visto pelo poeta como "bem nascida segurança da lusitana antiga liberdade", ou seja, aquele que, através seu nascimento, impede que o trono português seja anexado ao trono espanhol. Vai além: "E não menos certíssima esperança do aumento da pequena cristandade". Criado pelo tio-avô, arcebispo D. Henrique, o rei fora guiado no sentido de aumentar domínios e aumentar a cristandade (leia-se catolicismo) em virtude do que acontecera com a Reforma Luterana. Em: "Vós, ó novo temor da Maura lança", a mensagem é clara; D. João III perdera uma batalha contra os mouros e fizera morrer soldados às centenas. O novo rei, D. Sebastião, deveria se empenhar no combate contra os mouros e encontrar um caminho para estabelecer em Alcácer-Quibir uma base portuguesa na costa atlântica do Marrocos. Havia como uma premonição em Camões ou, pior, levado por tais palavras, é que o rei, seis anos depois, iria morrer naquele lugar, à procura de conquistas.
Ao terminar a Dedicatória, um verso terrível nos faz estremecer:
"E acostumai-vos já a ser invocado."
Se conhecermos bem a história terrível desse rei e o que significou posteriormente a sua morte, gerando o sebastianismo invocativo, visionário, mítico e místico, veremos que o poeta escreveu não apenas uma Dedicatória, mas, sobretudo, uma louvação lamentosa daquele que morreria aos 24 anos e, sem filhos, faria, dois anos após a sua morte, Portugal mergulhar num caos político sem par: o domínio dos Felipes. Mas, desconsiderando-se este fato e verificando a grandeza e a majestade do rei enquanto vivo, Camões apenas sintetiza em seus versos o devotamento e o amor com que D. Sebastião foi adorado pelo povo.
"Maravilha fatal da nossa idade" era uma das maneiras como o povo o conhecia, usando as palavras com as quais Bandarra designara um rei por vir, ainda no início do século.

1. Narração in media res
Ainda no Canto I, na estrofe 19, inicia-se a Narração:

19
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Proteu são cortadas;

Aqui o poeta inicia a parte denominada Narração que terminará no Canto X, estrofe 144.
Esta parte engloba basicamente dois assuntos: a viagem de Vasco da Gama às Índias e a História de Portugal, acrescidos tais assuntos de largo uso da mitologia grega. Mas, o que significa a expressão latina in media res?
Significa que quando a história começa a ser narrada, na estância 19 do primeiro Canto, os portugueses já estão no Oceano Índico, costa oriental africana, próximos a Madagascar. Ou seja, a narrativa inicia-se quando os navegadores já saíram de Portugal, já dobraram o Cabo das Tormentas próximos ao Sri Lanka. O início da viagem, a saída das naus da Praia do Restelo, aparecerá somente mais tarde na epopeia, sob forma de reminiscência ou digressão.
A vigésima estrofe introduz um fato novo: enquanto os portugueses navegam, um Concílio de Deuses, no Olimpo, conspira contra eles. Apenas Vênus e Marte ficam a favor dos portugueses. Baco pretende destroçá-los. Chegam a Moçambique, lutam com o governador que queria matá-los, vencem; vão embora e pouco depois passam por Quíloa; chegam a Mombaça. Termina o Canto I.

Canto II
Estando os portugueses em Mombaça e havendo traição deliberada de Baco contra eles, Vênus dirige-se a Júpiter no sentido de fazê- lo zelar pelos portugueses. Júpiter promete-lhe cuidar deles e relata a Vênus as futuras façanhas dos lusitanos no Oriente.
"O segundo canto compreende a parte da viagem que vai de Mombaça a Melinde, ponto final dessa trajetória. A recepção amistosa pelos melindanos explica-se pela intervenção de Vênus junto a Júpiter, na qual reclama que a determinação dele (a de que os lusos fossem agasalhados na costa africana como amigos) não vinha sendo cumprida. (...) Aportados em Melinde, o rei local, que recebe festivamente os navegantes portugueses, manifesta certo interesse por saber a origem dessa gente e os sucessos da viagem até ali. Esta curiosidade do rei de Melinde dá motivo a que o Gama inicie a história medieval portuguesa. Antes, porém, o Gama faz uma descrição geográfica da Europa a fim de situar Portugal; a seguir vem a história portuguesa medieval, que no Canto III termina na altura do reinado de D. Fernando." (Revista Língua e Literatura - USP/SP, 1974, vol. 3, Uma Cronologia do poema camoniano, prof. Segismundo Spina).
Aqui podemos encontrar um recurso camoniano muito interessante. Caso fizesse uma epopeia em ordem linear, ou seja, contando os feitos portugueses desde a fundação do Condado Portucalense, no século XII, até a época em que a epopeia foi escrita, seria apenas um livro de História em versos, facilmente esquecido por todos; mas o gênio camoniano soube dar-lhe contornos inesquecíveis: através do expediente do rei de Melinde pedir a Vasco que conte sobre o seu país, pode-se ter acesso à História Medieval portuguesa, sem que em nada empane o brilho dos heróis navegadores.

109
"Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta (lhe dizia), diligente,
De terra tua o clima e região
Do mundo onde morais, distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Co’os sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço."

Canto III
Este é um dos cantos mais conhecidos desta epopeia. Inicia-se quando o narrador dirige-se, abrindo os estrofes, à musa Calíope (ou Calipso), inspiradora de todos os cantos heroicos, como antes já vimos:

1
Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o amor devido, como soe.

2
Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-se Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum receio
Que se escureça o teu querido Orfeio.

Observar aqui que dois são os narradores principais de Os Lusíadas: o próprio poeta, no caso chamado propriamente de narrador, e Vasco da Gama, que vai sistematicamente falar sobre Portugal e sua História. Ocasionalmente, outros narradores "ad hoc" (para aquela hora) também se predispõem a falar, tal como Veloso e Paulo da Gama, irmão de Vasco.
Vasco revisita a História Medieval lusitana. Neste Canto, especialmente, desfilam diante de nossos olhos as personagens que Camões foi buscar nas fontes históricas do humanista Fernão Lopes. É nele que o lirismo camoniano, juntando-se à tradição trágica, tem seu ponto mais elevado. Aqui acontece o famoso Episódio de Inês de Castro, degolada por Afonso IV em 7 de janeiro de 1355, rainha coroada depois de morta :

119
Tu, só tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.

120
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

121
De teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam,
E quanto enfim cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

122
De outras belas senhoras e princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho que casar-se não queria,

123
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co’o sangue só da morte indigna
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor mauro, fosse alevantada
Contra ua dama delicada?

124
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu príncipe e filhos que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,

125
Para o céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos),
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assi dizia:

126
"Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como co’a mãe de Nino já mostraram
E co’os irmãos que Roma edificaram,

127
"Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar ua donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois não te move a culpa que não tinha.

128
"E se, vencendo a moura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem para perdê-la não fez erro;
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

129
"Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co’o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam de mãe triste."

130
Queria perdoar-lhe o rei benigno,
Movido das palavras que o magoam,
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?!

131
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema de mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co’o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoidece,
Ao duro sacrifício se oferece:

132
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas flores
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

133
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar naquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!

134
Assi como a bonina, que cortada,
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor co’a doce vida.

135
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
"Dos Amores de Inês", que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome Amores!

(Frag.)
Observação: Além de narrar o episódio que acabamos de ler, o Canto III contém, em seu início, a descrição que Vasco faz da Europa e, muito especialmente, de Portugal até o rei D. Fernando e sua mulher, a espanhola D. Leonor Telles.

Canto IV
Nesse canto narra-se a Batalha de Aljubarrota. D. João II inicia as diligências para chegar até as Índias. O governo de D. Manuel, o Venturoso é revisitado. O sonho deste rei está posto em destaque; depois de sonhar, D. Manuel inicia os preparativos, reúne uma frota e põe os navios ao mar. Vasco conta a partida de sua Armada da Praia do Restelo.
Mas é desse canto uma das perguntas mais frequentes sobre Camões no vestibular: o Episódio do Velho do Restelo, amaldiçoando s ambição portuguesa, "a glória de mandar e a vã cobiça." Leia o texto:

94
Mas um velho de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

95
"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldade neles experimentas!

96
"Dura inquietação d’alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

97
"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo d’algum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
(...)

102
"Oh! Maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno de eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!

A fala do velho do Restelo é reflexivo-filosófica; ele, fazendo o papel do que na Antiguidade era o coro no teatro grego, representa o que os portugueses, já na década de 60 do século XVI, pensavam de si próprios. Sair ao mar, pela cobiça, ouro, fama...
Esta passagem, muito mais tarde, já no século XIX, em Mensagem (1934), do modernista Fernando Pessoa, tem ressonância:

I. Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o Céu.

Canto V
Nele, Vasco continua contando ao rei a História portuguesa: a saída de Lisboa, Fogo de Santelmo, a Tromba Marinha, o caso de Fernão Veloso, a passagem pelo Cabo das Tormentas, a viagem até Melinde.
Aqui também aparece uma personagem mitológica muito conhecida: o Gigante Adamastor, adaptação camoniana ao mito de Netuno, com suas longas barbas e tridente na mão. Ele aparece no quinto dia de viagem: "cinco sóis eram passados" e diz o motivo pelo qual não aceita que os portugueses contornem aquele Cabo.

37
Porém já cinco sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ua noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ua nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

38
Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo.
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão n’algum rochedo.
"Ó Potestade, disse,  sublimada,
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"

39
Não acabava, quando ua figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados , e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

40
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
C’um tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

41
E disse: _ "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados de estranho ou próprio lenho;

42
"Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra
Que inda hás-de subjugar com dura guerra.

Se você for perceptivo, estará vendo repetidas as palavras do Velho do Restelo. Aliás, a forma mais comum, nesta epopeia, de Camões dirigir-se ao povo lusitano é como "gente ousada", com o sentido dilatado de "empreendedora, destemida".
O gigante Adamastor explicará por que fará com que os navios da frota de Vasco sejam consumidos pelas águas do Cabo das Tormentas: a ninfa que ele ama "mora nestas águas" e a quilha dos navios poderiam machucá-la.
Ambas as partes dialogam e expõem seus motivos. E, por fim, "tornando a cortar a água salgada/ Fizemos desta costa algum desvio." E lá se foram para o mar sem fim.

Canto VI
Partem os portugueses de Melinde em direção a Calecute. Aqui a epopeia ganha a dimensão do tempo presente. Estão, Vasco e sua armada, no tempo em que cortam as águas com "suas navegadoras proas". Para distrair os marinheiros, Veloso conta-lhes o Episódio dos Doze da Inglaterra. Baco enfurece-se contra a gente portuguesa.
Uma explicação:
É preciso esclarecer aqui a razão mitológica de Baco indispor-se contra os lusitanos. É que, segundo a lenda, o filho de Baco, Luso, depois de brigar com o pai, na Grécia, furta-lhe dois ramos do pomar: um de videira e outro de oliveira. E vai para a Europa, onde funda a Lusitânia.
Em posse dos ramos, finca-os no chão e começam a crescer. As videiras invadem as terras, multiplicam-se para muitos bons vinhos; e os olivais, com sua azeitona e azeite expandem-se como riquezas de Portugal. Daí também, conclui-se por que o povo português é chamado lusitano. Filhos de Luso; portanto Os Lusíadas louvam aquela gente como descendente direta de deuses, o que dava certa estatura moral àquele povo e os aproximava, de qualquer modo, dos gregos e romanos.
Há um Concílio de deuses marinhos e Baco pede que destruam a Armada; Vênus pede às ninfas que contenham os Éolos (ventos fortes), seus apaixonados. E assim é feito. Chegam os portugueses a Calecute:

86
"Estas obras de Baco são, por certo
Disse _ mas não será que avante leve
Tão danada tenção, que descoberto
Me leve sempre o mal a que se atreve."
Isto dizendo, desce ao mar aberto,
No caminho gastando espaço breve,
Enquanto manda as Ninfas amorosas
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

Canto VII
Já em Calecute , na Índia, o Samori, rei daquele lugar, recebe-os muito bem. E todos , curiosos, querem ver os navios. Nesse canto, os portugueses são exaltados pelo narrador:

2
A vós, ó geração de Luso, digo,
Que tão pequena parte sois no mundo,
Não digo inda no mundo, mas no amigo
Curral de quem governa o Céu rotundo;
Vós, a quem não somente algum perigo
Estorva conquistar o povo imundo,
Mas nem cobiça ou pouca obediência
Da Madre que nos Céus está em essência;

3
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que à custa de vossas várias mortes
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito pouco que sejais,
Muito façais na santa Cristandade.
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

É fácil verificar aqui a heroicidade conferida aos portugueses e, principalmente, o ideal de expansão do Império português e da Fé Católica, tão presentes na epopeia, embora o poeta se valha de arquétipos mitológicos gregos e romanos.

Canto VIII
Paulo da Gama, irmão de Vasco, explica o significado das pinturas e bordados nas bandeiras que os navios portugueses agitam; o Catual ouve-o contar sobre os feitos portugueses. O Samori convoca os adivinhos de sua Corte para especular-lhes sobre o futuro; eles falam contra os portugueses e Vasco tem que se defender e defender seu povo diante do rei de Calecute.

1
Na primeira figura se detinha
O catual, que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada.
Quem era e por que causa lhe convinha
A divisa que tem na mão tomada?
Paulo responde, cuja voz discreta
O mauritano sábio lhe interpreta:

2
"Estas figuras todas que aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspectos,
Mais bravos e mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos;
Antigos são, mas inda resplandescem
Co’o nome entre os engenhos mais perfeitos.
Este que vês, é Luso, donde a fama
O nosso Reino "Lusitânia" chama.

Canto IX
Em Calecute, há uma traição feita a Vasco. Mas a Armada portuguesa consegue escapar. Este canto contém o célebre episódio da Ilha dos Amores; após a fuga, navegam e chegam à dita ilha. Enquanto os marinheiros passeiam com as nereidas, Tétis conduz Vasco da Gama ao topo de "um cume alto e divino" e de lá mostra-lhe "a máquina do mundo", e faz vaticínios sobre o povo lusitano:

87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Para o cume dum monte alto e divino,
No qual ua rica fábrica se erguia
De cristal toda e de ouro puro e fino,
A maior parte aqui passam do dia
Em doces jogos e em prazer contino;
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.

88
Assi a fermosa e a forte companhia
O dia quase todo estão passando
Nua alma, doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando;
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prêmio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido.
(...)

92
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses imortais,
Indigentes, Heroicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo;

93
E ponde na cobiça um freio duro,
E, na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania, infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão à gente;
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.

94
Ou daí na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não deem o dos pequenos,
Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Contra a lei dos inimigos Sarracenos:
Fareis os reinos grandes e possantes,
E tereis mais, e nenhum menos;
Possuireis riquezas merecidas,
Co’as honras que ilustram tanto as vidas.

95
E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora co’os conselhos bem cuidados,
Agora co’as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais.
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos,
E nesta "Ilha de Vênus"recebidos.

Observação: Tétis aconselha o Vasco sobre o futuro, advertindo-o como metonímia representativa do povo lusitano. Marcam profundamente estas palavras as expressões: "se quiserdes no mundo ser tamanhos/ despertai já do ócio ignavo/ que o ânimo, de livre, faz escravo." E acrescenta duras palavras ao seu conselho: "E ponde na cobiça um freio duro..."
Releia a estrofe 93: honras vãs, ouro puro, vã cobiça... Há crítica de como os portugueses conduziam ou conduziriam seus domínios.

Canto X
Ainda na Ilha dos Amores, Sirena dará conta dos feitos futuros dos portugueses. Do monte Tétis mostra ao Gama a esfera terrestre. Os portugueses partem da Ilha. E retornam, finalmente, a Lisboa.

144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que nasceram, sempre desejado;
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua Pátria e Rei temido e amado
O prêmio e glória dão por que mandou
E com títulos novos se ilustrou.

I. EPÍLOGO
Esta parte estrutural inicia-se na estrofe 145 do último canto; são onze estrofes reflexivas, em que o narrador dirige-se à Calíope em tom lamentoso, mas grandiloquente:

145
Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil tristeza.
(...)

154
Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado;
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que andam juntas raramente.

O narrador , na estrofe 154, parece retomar as palavras da Proposição: sua experiência e "honesto estudo" fundem-se ao "engenho" do fazer poético, aqui entendido como "capacidade de criação, astúcia para fazer
o poema magnífico" que é.
O Epílogo contém, ainda, apelos ao rei D. Sebastião, reflexões sobre a moralidade e crítica à decadência da nação tão gloriosa.
Terminam Os Lusíadas e está contada, fantasiosamente, usando-se de mitologia e, portanto, do maravilhoso e do inverossímil, a história de uma gente ousada que, lançando-se ao mar tenebroso, conquistou o mundo, ainda que reduzido, no século XVI.

Canto III de Os Lusíadas
Episódio de Inês de Castro
1. Pressupostos históricos para o entendimento do texto:
A História de Inês de Castro, a rainha coroada depois de morta, possui pelo menos 10 versões correntes. Uma boa parte delas, assenta-se, sobretudo, na necessidade que o povo português teve (e tem) e glorificar ao extremo os seus heróis e mitos, sobretudo os do fim da Idade Média.
Certo é também que tanto Fernão Lopes quanto Camões trataram de endeusar tal rainha, morta realmente no dia 7 de janeiro de 1355, por ordem do Conselho de Anciãos de do próprio rei Afonso IV, após a leitura "de culpa", na frente dos filhos, em ausência do Infante D. Pedro, que houvera saído de Lisboa, a pedido do pai.
Certo é também que D. Pedro apaixonou-se perdidamente por ela e com ela teve dois filhos; da mesma forma que é dado como certo que ele, endoidecido de paixão, mandou desenterrar Inês e coroou-a "Rainha de Portugal", bem como reconheceu como seus sucessores seus filhos, elevando-os à categoria de Infantes, ou seja, aspirantes ao trono português depois de sua morte.
Inês é hoje, como o foi desde sua morte, um mito português. Nem se sabe ao certo sua verdadeira origem, posto que tudo quanto a cerque foi, aos poucos, sendo envolvido nas brumas da necessidade de um mito que consagrasse o amor como eterno e indestrutível. Ou sagrado, sobre todas as coisas.
Dá-se como correto o fato de que descendia de família nobre e que veio para Portugal como dama de companhia de D. Constança, esposa de D. Pedro. Conta-se que sua esplêndida beleza perturbou os sentidos do futuro rei e que ele a levou do castelo para uma quinta, nas proximidades do Mondego, ao norte de Lisboa, e passou a vê-la em segredo.
Especula-se, ainda, que D. Constança teria morrido de desgosto, ao dar-se conta de que a amiga em quem confiava e a quem confiava suas mágoas a traíra. Após a morte da mulher, Pedro casa-se em segredo com Inês, o que causa um gigantesco escândalo em Portugal.
Pressionado pelo Conselho de Anciãos e pelos conselheiros-ministros, D. Afonso IV, consente em matar Inês.
Ao voltar a Lisboa, sabendo que o pai morrera de desgosto, Pedro fica sabendo sobre a morte da amada, desenterra-a após 28 dias de morta (para alguns historiadores isso acontece depois de 5 anos), coroa-a rainha. Aos assassinos de Inês, D. Pedro aplica os piores castigos (Fernão Lopes narra tais episódios), tirando-lhes, em praça pública, o coração pelas costas e jogando suas vísceras aos cães sarnentos de Lisboa. Aos restos deles, manda queimar. Após esse dia, recebe o nome de Pedro, o Cruel ou Pedro, o Cruel.
O certo é que os túmulos de D. Inês de Castro de Alcobaça e de D. Pedro, o Cruel, estão enterrados frente a frente no Mosteiro de Alcobaça e os eternos amantes, assim o creem, poderão estar juntos para a eternidade após o Juízo Final.

118
Passada esta tão próspera vitória,
Tornando Afonso à lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória,
Quanta soube ganhar na dura guerra;
O caso triste, e digno de memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha,
Que depois de ser morta, foi Rainha.

A "próspera vitória" a que o texto se refere é a da Batalha de Salado, acontecida em 1340, em que portugueses aliados aos espanhóis combateram, e venceram, os mouros, dando ensejo a uma longa paz entre Portugal e Espanha. Afonso é o rei Afonso IV, que governou os portugueses de 1325 a 1357.

119
Tu, só tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.

A referência é sobre a tirania que o amor exerce sobre os seres que o sentem: "áspero e tirano", desvia o destino das criaturas (ou converge-os para onde deveriam verdadeiramente se dirigir?). O narrador refere-se ao fato da morte de Inês ter sido ocasionada porque ela se apaixonara - e era correspondida por Pedro, o futuro rei de Portugal, filho de Afonso IV.

120
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Inês vivia, de sua beleza, os melhores dias. Casada às escondidas com D. Pedro, colhia os doces frutos do amor, longe da corte. E de saudades chorava (o rio jamais secava por isso...). Secretamente eles viviam um tempo feliz, embora ela não pudesse ser assumida por ele publicamente.

121
De teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam,
E quanto enfim cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

Quando apartada do amado, Inês sonhava com ele; de noite os sonhos mentiam que ele estivesse com ela; de dia, "os pensamentos voavam" de encontro ao amado. Mas quando ele aparecia para vê-la em segredo "eram tudo memórias de alegria".

122
De outras belas senhoras e princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho que casar-se não queria,

Inês desprezava o que as outras mulheres sonhavam: um leito nupcial (tálamos) nos modelos tradicionais; enjeita tudo e se sujeita ao amor do príncipe. D. Afonso ouve o murmurar do povo e estranha que Pedro, após enviuvar-se, não tenha querido se casar com nenhuma outra princesa ou senhora da corte, preferindo Inês.

123
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co_o sangue só da morte indigna
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor mauro, fosse alevantada
Contra ua dama delicada?

O homem que vencera os mouros, agora premido pelas circunstâncias e pelo Conselho de Anciãos, determina que Inês seja morta, na esperança de tirar-lhe o filho que a ela se prende por amor e fazê-lo casar com quem seja conveniente ao tratado entre Portugal e Espanha.

124
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu príncipe e filhos que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,

Inês é trazida para o julgamento por dois algozes (soldados que mais tarde vão ser mortos por Pedro); D. Afonso IV, ao vê-la, é tocado pela piedade, mas o "povo" (leia-se aqui o Conselho de Ministros) o convence de que ela deve morrer pelo bem de Portugal.

125
Para o céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos),
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assi dizia:

Inês de Castro vinha acompanhada dos filhos pequenos que a ela se agarravam (segundo a crônica de Fernão Lopes); ela tenta se defender das acusações e chora.

126
"Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como co_a mãe de Nino já mostraram
E co_os irmãos que Roma edificaram,

Inês exemplifica com situações em que as feras cuidaram dos seres humanos, ou seja, foram mais brandas, menos cruéis que o sogro.

127
"Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar ua donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois não te move a culpa que não tinha.

Inês insiste em dizer que não é humano matar uma moça porque ela se submeteu ao amor do homem que ama. Pede clemência em nome dos filhos que tem com Pedro, implora pela piedade de D. Afonso.

128
"E se, vencendo a moura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem para perdê-la não fez erro;
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

D. Afonso é incitado a reconhecer que se já venceu os mouros na Batalha de Salado também pode perdoá-la, uma vez que Inês alega não ter cometido erro algum. E implora ao rei que a desterre para terras quentes ou muito frias, onde viva chorando, mas viva.

129
"Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co_o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam de mãe triste."

Continua se dirigindo ao rei e faz uma comparação: entre feras talvez ache piedade, o que não encontrou ali, entre peitos humanos. Pede, ainda, que lá, no desterro, possa criar os filhos, "relíquias", longe do amado e que eles possam ser refrigério (consolo) de mãe triste que ela será.

130
Queria perdoar-lhe o rei benigno,
Movido das palavras que o magoam,
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?!

D. Afonso é tocado pelas palavras da moça, e tais palavras o magoam, mas os homens arrancam das espadas de aço fino e, apesar dos bons modos que apresentam, vão matá-la.
É bom lembrar que a morte de Inês não foi assim: ela foi degolada na presença dos filhos.

131
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema de mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co_o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoidece,
Ao duro sacrifício se oferece:

A passagem refere-se a um fato da mitologia grega: o fantasma de Aquiles, que fora herói na Guerra de Tróia, e lá morrera ao ser atingido por uma seta no calcanhar, único ponto vulnerável de seu corpo, ordena a Pirro, seu filho, que use a espada para matar Policena. Ele a mata quando Policena estava chorando sobre o túmulo do morto. Tal como Policena, que se oferece ao sacrifício, Inês também o faz.

132
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas flores
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

Os matadores banham suas espadas "de aço fino" do sangue do peito de Inês, peito este que ama Pedro. Tais matadores nem suspeitam do que o futuro lhes reserva: castigo cruel, assistido por um público ávido.

133
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar naquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!

Outra vez a mitologia: Atreu, irmão de Tistes, vingou-se dele quando soube que o traía com sua esposa; suprema vingança, deu ao irmão, para comer, a carne dos próprios filhos.

134
Assi como a bonina, que cortada,
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor co_a doce vida.

Está morta Inês, maltratada por mãos terríveis, pálida como flor que cortada foi antes do tempo.

135
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
"Dos Amores de Inês", que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome Amores!

As ninfas do rio Mondego choraram longamente a morte de Inês de Castro e suas lágrimas foram transformadas numa fonte: "Dos Amores de Inês". A fonte hoje existe e está lá, mas é claro que você não vai acreditar em mitologia, vai?

O Episódio do Velho do Restelo
Canto IV de Os Lusíadas

90
Qual vai dizendo:- ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amargo;
Por que me deixas mísera e mesquinha?
Por que te mim te vais, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?

No primeiro verso: "qual vai dizendo: ó filho..." A influência é de Virgílio, na Eneida ( Canto XI, 481-483); a mãe de Euryalo é quem diz essas palavras:
"Será tu mesmo que eu vejo, Euryalo?
será que tu, cruel, tu, este tardio repouso
de minha velhice, pudeste deixar-me sozinha!"

91
Qual em cabelo: - ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida, que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?

Outra mulher, com os cabelos desgrenhados, sem tapá-los com um véu, fala ao marido, interrogando-o sobre a causa de abandoná-la e deixar-se ir ao mar "iroso", muitas vezes sem volta. É o grito aflito das mulheres o que ela simboliza. É um lamento sobre o abandono dos sentimentos verdadeiros em favor das navegações que a tudo obrigam.

92
Nestas e noutras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam
Em quem menos esforço põe a idade:
Os montes de mais perto respondiam
Quase movidos de alta piedade,
A branca areia as lágrimas banhavam
Que em multidão com elas se igualavam.

Também os velhos e os meninos acompanhavam as mulheres em suas queixas. Há uma hipérbole: a multidão banha com as lágrimas a areia do Restelo.

93
Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, n'este estado,
Por não nos magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado:
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado;
Que posto que é de amor usança boa,
a quem parte, ou fica, mais magoa.

Quem narra é Vasco: nem ele, nem a tripulação tinham coragem de erguer os olhos para os homens, crianças e mulheres que lamentavam a viagem. Vasco reconhece que para quem vai ou fica, a mágoa é a mesma, mas que aos que ficavam a dor era maior.

94
Mas um velho de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

Estavam todos se lamentando quando, entre eles, um velho (o velho do Restelo) "de aspecto venerando", respeitável, falará aos navegadores já embarcados. As palavras com as quais se dirige à Vasco e sua tripulação, ele as tirou do "experto peito", do peito experimentado.
Veja que o ponto de vista narrativo é de Vasco da Gama: "postos em nós os olhos/ que no mar ouvimos..." É o ponto de vista dos embarcados, do navio para a praia.

95
"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldade neles experimentas!

Esta fala do velho é o ponto mais importante de todo fragmento pedido pela Fuvest. "Glória de mandar", "vã cobiça", "vaidade", ou seja, o velho critica os próprios feitos que a epopeia insiste em cantar. Uma figura magnífica, próxima do coro grego encarregado de admoestar o herói.

96
"Dura inquietação d’alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

"Glória de mandar" é causa da inquietação, dos desamparos e adultérios. Pode enganar o povo ignorante, mas tudo consome em nome das conquistas materiais, inclusive os bens mais preciosos da afeição, do afeto.

97
"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo d’algum nome preeminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

O velho ainda refere-se à "Glória de mandar", à cobiça vã que ela gera e faz lembrar os desastres que pode causar à gente navegadora portuguesa, glória esta que tudo promete.

98
Mas ó tu, geração d'aquele insano,
Cujo pecado, e desobediência,
Não somente de reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência
Mais ainda d'outro estado mais que humano,
Da quieta, e da simples inocência
Da idade d'ouro tanto te privou,
Que na de ferro, e d'armas te deitou:

Entenda "aquele insano" como Adão e como "reino soberano" como o Paraíso de onde Adão foi expulso e estenda isso como se o desafio dos portugueses em colocar os navios sobre o mar tenebroso fosse também desobediência contra Deus.

99
Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia;
Já que é bruta crueza e feridade
puseste nome, esforço e valentia;
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada; pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:

Uma alusão (verso 8) ao sofrimento de Jesus no Horto das Oliveiras e um chamamento: se o próprio Cristo temeu perder a vida, os portugueses não temeriam?

100
Não tens junto contigo o ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tens cidades mil, terra infinita,
Se terras, e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

Referência de novo a Jesus, o ismaelita, e aos muçulmanos, o Arábio, Maomé. Uma lembrança de que os portugueses devem ser a lei de Cristo.

101
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o reino antigo,
Se enfraqueça, e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto, o incógnito perigo,
Por que a fama te exalte, e te lisonje,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

Outra advertência: os portugueses permitem que o inimigo esteja próximo, abandonam o país, e vão lutar em alheia terra, tão distante. O velho quer, na realidade, uma justificativa para isso.

102
"Oh! Maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno de eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!

De novo um ponto alto deste trecho: é a condenação aos monarcas que não hesitam em sacrificar o dinheiro do povo para as grandes navegações, colocando os "secos lenhos" (navios) sobre o mar. A passagem é forte: "maldito o primeiro que no mundo pôs nas ondas vela em seco lenho". Uma crítica feroz à índole navegadora portuguesa, causa de desamparos e misérias.

103
Trouxe o filho de Jáspeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano;
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras, grande engano!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogos de altos desejos, que a movera!

Jáspeto é um titã, filho do Céu e da Terra, vencido por Zeus. Desposou Climene de quem teve um filho: Prometeu. E Prometeu é um símbolo forte demais: é aquele que furta do Olimpo o fogo sagrado da inteligência e o dá aos humanos comuns e aos andróginos, visando à evolução do mundo. Ou seja, o narrador atribui a Prometeu também os desvarios que os homens do presente cometem, movidos pelo conhecimento, pelo progresso humano que este fogo traz.

104
Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquiteto co'o filho, dando
Um nome ao mar, e o outro fama ao rio:
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!

"Arquitector" é um arcaísmo usado para "construtor"; a referência é para Dédalo, o construtor dos labirintos de Creta. Preso lá por Minos, o rei da ilha, a fim de que não espalhasse ao mundo as notícias sobre seu filho Minotauro, Dédalo fabricou asas para ele e para Ícaro, seu filho (ou seu sobrinho). Ícaro foi advertido para que não voasse muito alto, perto do sol, porque as penas foram juntadas com cera e poderiam derreter. Desobedeceu, despencou do mais alto e morreu afogado no mar Egeu. Ícaro e Dédalo são também símbolos muito fortes, metáforas de todos nós, humanos e nossos sonhos de liberdade e esperança, da fuga dos labirintos que nós mesmos construímos para nós. No entanto, Ícaro voa sem disciplina e, metaforicamente, cairá no mar (da existência) onde, despreparado, morrerá afogado.


Notas
"Estava já tudo preparado. No dia 7 de julho de 1497, uma sexta-feira, Vasco da Gama e seu irmão Paulo da Gama e Nicolau Coelho foram velar a noite na Capela de Nossa Senhora de Belém, situada no Restelo, no local onde depois se ergueu o magnífico edifício de Santa Maria de Belém. Construída por ordem do Infante D. Henrique para irem ali os marinheiros, antes de encetarem as suas viagens, invocar o auxílio do Céu, a pobre ermidinha erguia-se defrontando com o rio, melancólica e solitária. Ali rezou Vasco da Gama devotadamente para que a Providência lhe fosse propícia, para que a Virgem, orago da capelinha, lhe fosse nas tribulações do Oceano a Stella Maris que se invoca nas ladainhas. No dia seguinte, sábado, reuniu-se a

turba imensa no Restelo. Veio el-rei, vieram os padres para dizer a missa, e, depois, os navegantes caminhando em procissão devota em direção ao rio, empunhando cada um deles uma tocha, encaminharam-se para os navios. A solenidade religiosa a sua majestade ao ato já de si tão solene." ( Oliveira Martins, historiador)



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