Aniversário
sábado, 9 de janeiro de 2016
Aniversário, by Álvaro de Campos
Aniversário
Álvaro de Campos
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lagrimas),
O que sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como
um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, este tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra
debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
(Poesias de Álvaro
de Campos, ed. cit., pp.282-284.)
Sobre o heterônimo
Álvaro de Campos (1890-1935?)
Álvaro de Campos representa a parte mais
audaciosa de responsabilidade literária e extraliterária que Fernando Pessoa se permitiu.
Seus poemas são marcados pela oralidade e pela prolixidade que se espalha em
versos longos, próximos da prosa, desprezando a rima ou métrica regular, e despejando seus versos
em torrentes de incontrolável desabafo. Tendo-lhe sido dada a faceta predominante da emoção impulsiva, encontramos em seus versos
a expressão diretamente enunciada de seus sentimentos pessoais.
Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, o
heterônimo Álvaro de Campos apresenta fases distintas em sua poesia. De início é influenciado pelo decadentismo
simbolista, depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas
e desiludidos. Aniversário pode-se enquadrar nesta última fase do poeta, pois demonstra
amargura e melancolia em relação ao passado e pessimismo em relação a existência.
O heterônimo Álvaro de Campos ainda vivia quando Fernando Pessoa faleceu, em
1935, mas a observação diacrônica de sua obra leva-nos a supor que este já usava em seus últimos versos um tom de conformismo
amargo em relação a sua própria existência, como também acontece no poema Aniversário.
Análise
do poema
A não distribuição uniforme dos versos e a despreocupação com a distribuição rítmica dão ao poema um tom confessional,
aproximando-o de um texto em prosa. As lembranças relatadas no texto referem-se a uma
data específica lembrada pelo eu poético - o dia do aniversário. Esta data é a propulsora para outras recordações da infância e outras angústias do eu-poético, servindo também como ponto de referencia temporal
quando o eu-poético intercala-se e contrapõe-se entre o passado e o presente.
A época da infância no poema é marcada pela inocência, pois a criança ainda não tem noção do que se passa à sua volta: "Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma". A
passagem da criança para o adulto é marcada por uma perda, pois ele percebe que a vida não tem mais sentido. O poeta hoje "é terem vendido a casa", ou seja, é um vazio, que perdeu, inclusive, o bem
mais precioso, a sensação de totalidade, de alegria, de aconchego dado pela vida em família na infância longínqua. Assim, a festa de aniversário toma o aspecto simbólico de um ritual familiar e religioso,
dentro do qual a criança se torna o centro de um mundo que a acolhe e protege carinhosamente.
"As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por
minha causa", denota, com esta adjetivação uma característica comum a toda infância: o egocentrismo. No presente, não há mais aniversários nem comemorações: resta ao poeta durar, porque o
pensamento amargurado, critico e pessimista da vida o impede de ter a inocência de outrora. O tom nostálgico e angustiado do poema dá a sensação de que o eu-poético vive uma introspecção conflitiva relembrando um passado
supostamente mais feliz que o presente.
O trecho "serei velho quando o for. Nada mais."
parece querer dar fim a este conflito interno. "Raiva de não ter trazido o passado roubado na
algibeira!..." conclui o tom confessional do poema e enfatiza uma espécie de conformismo ríspido e amargurado com o presente
melancólico e sem perspectiva em relação a vida. "O tempo em que festejavam
o dia dos meus anos!" é repetida muitas vezes no texto dando ênfase a importância da data na lembrança do eu-poético, servindo também para marcar a justa contraposição entre passado e presente,
respectivamente infância e fase adulta. O ultimo verso do poema sugere uma acomodação amargurada em relação ao passado.
Em "Eu era feliz e ninguém estava morto" pode-se notar
novamente o conformismo com o presente que pode não ser o idealizado, mas que está alicerçado em um passado inocente, de aspecto
virginal, contrapondo-se com a atual falta de perspectivas e a desmotivação para a vida, onde ele diz: "Hoje
já não faço anos. Duro." O eu-poético oraliza um tom de amargura
versificado de forma clara, coesa e coerente, marcando com precisão verbal os estados temporais e
emocionais a que se refere no poema. Por se parecer com uma "autoconfissão poética", pode-se afirmar que o eu-poético insere no texto características comuns às pessoas que estão prestes a deixar o mundo material, ou
que neste não sentem mais vontade de estar por muito mais tempo.
A reflexão conflitiva e melancólica sobre o passado, a amargura em
relação ao presente e sensação de que o tempo passou e algo que
deveria ser resgatado perdeu-se em um passado longínquo, são características comuns em pessoas que
encontram-se neste estágio da existência humana.
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