sábado, 9 de janeiro de 2016
A ilustre Casa de Ramires
Eça
de Queiros
Introdução
A Ilustre Casa de Ramires é
um romance baseado no cruzamento de
duas narrativas. A primeira consiste na trajetória de um fidalgo português (Gonçalo
Mendes Ramires) cujo destino se confunde com o de Portugal. A segunda é uma novela que narra um episódio heroico da vida de um de seus antepassados: Tructesindo Ramires.
Resumo
Gonçalo
Mendes Ramires retorna – após a conclusão do curso de Direito em Coimbra e após uma breve estadia em Lisboa – para suas
terras no interior de Portugal, próximas à cidade
de Oliveira e à Vila
Clara. Aí reencontra
a mesma monotonia provinciana de anos atrás. Sua irmã, Graça
Ramires, está casada
com o rico e simplório
José Barrolo,
chamado pelos colegas de bacoco, num claro deboche de sua simplicidade de
parvo.
Os
seus bons e inseparáveis
companheiros, Titó (Antônio Villalobos), João Gouveia (Administrador da aldeia de
Vila Clara) e o músico
Videirinha – que há muito
vem escrevendo um fado, ajudado pelo padre Soeiro, sobre os feitos heroicos da ilustre casa de Ramires –
continuam os mesmos. E os criados da casa, Rosa e Bento estão a levar a vida de sempre. Acima de
tudo, o oprime a mediocridade da vida provinciana e a necessidade imperativa de
se impor na vida política
nacional, o que lhe parece ser a única saída possível para a sua condição de fidalgo decaído.
Dentro
deste espírito
e incitado por um amigo, o José Castanheiro (editor de uma revista a ser lançada em breve e chamada Anais de
Literatura e de História),
ele resolve escrever uma novela (A Torre de D. Ramires) sobre um velho e
ilustre antepassado: Tructesindo Ramires. Assim, tendo como cenário os restos da antiga fortificação medieval erguida por seus remotíssimos avós, e que se encontram na sua Quinta de Santa Irinéia, ele se põe a recontar a história de sua casa e de Portugal. Da
fortificação
resta, na verdade, apenas os escombros da velha torre, como do glorioso passado
português
resta apenas a recordação.
Para
tal fim Gonçalo
lança
mão
um poema já escrito
por um tio materno, que ele – com ajuda de outros livros de inspiração medieval (Alexandre Herculano e
Walter Scott) – vai vertendo para uma prosa na maioria das vezes banal. No
entanto, a tarefa não
é fácil e muitas vezes se torna estafante. Paralelamente
à escritura
da novela, ele se envolve com as atividades do cotidiano, que passam pela
administração
da quinta, e é obrigado
a enfrentar situações
que demonstram a fraqueza de seu caráter.
A
mais marcante se dá quando
ele se vê obrigado
a arrendar a quinta para um lavrador conhecido como José Casco, e empenha sua palavra no negócio. Porém, logo em seguida um outro lavrador melhor qualificado, o
Manuel Pereira , lhe oferece uma quantia maior pelo mesmo direito de
arrendamento, e Gonçalo
aceita a segunda proposta se esquecendo da palavra já empenhada ao Casco. Aliás este episódio coincide narrativamente com um
momento no qual Gonçalo
conta os feitos heroicos
de seu longínquo
antepassado Tructesindo, que justamente entra num combate para não recuar da palavra empenhada. Aqui Eça de Queirós, através de uma ironia fina, demonstra o caráter frágil desta aristocracia incapaz de dar continuidade à grandeza do passado português. Porém, lentamente Gonçalo caminhará para a redescoberta destes valores heroicos de seu passado, alterando sua
trajetória
pessoal.
A
transformação
de Gonçalo
pode ser interpretada como um símbolo do destino Português, e traz elementos típicos do romance de formação. Outro fato também o desagrada sumamente: o sucesso político de André Cavaleiro, outrora seu grande amigo, e
"namorado" de sua irmã. Gonçalo
nutre por ele um ódio
que se manifesta publicamente por meio de comentários violentos envolvendo via de regra a bigodeira do
Cavaleiro. Este, por sua vez, ocupa agora o lugar de Governador Civil de
Oliveira, cargo antes exercido pelo falecido pai de Gonçalo. A ruptura, sem nenhuma
justificativa, do namoro existente entre André
e Gracinha está na origem desse rancor que os separa.
Inesperadamente
o Deputado Sanches Lucena, velho e rico proprietário da região, falece deixando toda a fortuna para a esposa D. Ana
Lucena e uma cadeira vaga no parlamento. Eis a chance tão esperada. No entanto, a indicação para o lugar passa diretamente pela
vontade do Governador Civil.
Aconselhado
pelo amigo João
Gouveia e movido pelo interesse, ele reata sua amizade com André Cavaleiro, para assombro de toda a
cidade. O que não
se dá sem
que antes ele sofra uma aguda crise de consciência, pois tal reconciliação implica na aproximação entre o Governador e Gracinha, que ainda nutre sentimentos
inconfessos pelo antigo namorado. Eis aí
a sombra de um possível adultério. Aliás, tema tão caro aos romances da segunda fase de Eça de Queirós.
Com
a reconciliação,
começa
a campanha de Gonçalo
em direção
ao parlamento. Porém,
em meio aos preparativos, ele surpreende um encontro furtivo entre a irmã e o Cavaleiro. Horrorizado ele se
retira para a quinta e se afasta da irmã, do cunhado e do suposto amigo.
Neste
momento, Gonçalo
decide retomar a sua narrativa, e passa a considerar a possibilidade de se
casar com a viúva
do Lucena (agora uma mulher riquíssima), apesar de sentir uma forte repulsa por ela. Em meio
a todos estes acontecimentos, uma noite Gonçalo tem um pesadelo no qual seus remotíssimos antepassados lhe depositam no
colo suas armas e o incitam a seguir-lhes o caminho da bravura. Na manhã que sucede a este pesadelo, Gonçalo resolve sair a cavalo e reencontra
acidentalmente um camponês
(o valentão
Ernesto de Nacejas) que já o
havia destratado duas vezes, sem que o fidalgo houvesse esboçado a menor reação de revidar as ofensas sofridas, tal
era o seu grau de covardia diante dos perigos da vida.
Nesta
manhã,
inexplicavelmente, Gonçalo
sente-se tomado de uma energia e de uma coragem que até então lhe eram desconhecidas: ele enfrenta o inimigo com violência, ao ponto de quase desfigurar-lhe
a face com um chicote. Depois da luta ele retorna à quinta, e para sua surpresa reencontra
a irmã e
o cunhado. Neste mesmo dia, ao conversar com cunhado, Gonçalo descobre que o Cavaleiro estava
ausente de Oliveira há algum
tempo. E, portanto, afastado de Graçinha. Reconciliado parcialmente com a própria consciência, ele retoma sua campanha política.
Lentamente
Gonçalo
vai descobrindo a simpatia que as pessoas nutrem por sua pessoa e por sua nobre
origem, sentimento que ele mal suspeitara até
então, e que lhe faz perceber que ele seria eleito mesmo sem a
ajuda do Governador Civil. Chega o dia da eleição e Gonçalo vence. Nesta mesma noite, ao contemplar o vale do alto
da torre iluminada, ele percebe com clareza a mesquinhez de seu caráter e de seus objetivos.
Alguns
meses depois, o fidalgo parte para Lisboa, assume o cargo e começa a levar uma vida mundana, até que inexplicavelmente desiste de tudo e
viaja para a Zambézia
na África,
de onde retorna, quatro anos depois, rico e estabelecido.
A Torre de D. Ramires
Gonçalo
Mendes Ramires, inspirado num poemeto épico escrito por um tio e publicado num periódico de província (O Bardo), resolve contar os
feitos heroicos
de sua estirpe, em especial de Tructesindo Ramires.
Este
nobre antepassado de Gonçalo
tudo sacrificou, inclusive a vida do próprio filho, para defender a palavra e a honra empenhada.
Tructesindo
Ramires, fiel vassalo e alferes-mor de D. Sancho, jurara a este rei defender a honra
e vida da infanta D. Sancha.
Com
a morte do monarca abre-se uma luta pela sucessão e pela afirmação de D. Afonso II no trono de Portugal, e este se indispõe com suas irmãs D. Teresa e D. Sancha.
A
infanta busca ajuda e apoio no rei de Leão e Castela (tradicionais inimigos da nação portuguesa), e convoca o socorro de
Tructesindo Ramires. Este atende prontamente ao apelo da infanta – consciente que
lutará ao
lado de antigos inimigos – e manda seu próprio filho, Lourenço Ramires, a frente de uma primeira força guerreira, enquanto ele próprio prepara um grupo fortemente armado
que lhe seguirá.
Lourenço é
interceptado em meio da jornada por um
grupo fortemente armado e comandado por Lopo de Baião, o Bastardo, que fora enviado por D.
Afonso II, com ordens de impedir o avanço das forças de Tructesindo. No entanto, por atrás deste motivo aparente Lopo de Baião esconde um desejo de vingança pessoal, pois no passado ele havia se
apaixonado por D. Violante, filha de Tructesindo, que havia lhe negado a dama
em casamento.
As
duas forças
se enfrentam duramente, Lourenço sai derrotado, e é
feito prisioneiro pelo Bastardo, que em
seguida marcha em direção
ao castelo dos Ramires. Ao alcançar as fortes muralhas, ele manda um arauto solicitar uma
audiência
com Tructesindo.
Durante
o diálogo
Lopo de Baião
tenta demover o velho guerreiro de ajudar a infanta e insiste em alcançar a permissão de se unir a D. Violante. Tructesindo
Ramires mostra-se irredutível
em relação
às duas propostas, e o Bastardo degola impiedosamente Lourenço diante dos olhos do pai. Em seguida,
foge com seus guerreiros.
Tructesindo
mantém-se
quase imperturbável
diante da morte do filho, e sai em busca do covarde assassino. Em meio a
perseguição
seu grupo chega a uma encruzilhada e o chefe guerreiro ordena que três batedores encontrem a pista de Lobo
de Baião.
Com
as informações
trazidas por eles, D. Garcia Veigas, o Sabedor – amigo e companheiro fiel de
Tructesindo – descobre a estratégia de fuga do Bastardo. Eles também ficam sabendo que há pouca distância está
D. Pedro de Castro, amigo do velho
Ramires e partem em busca de abrigo em suas terras.
D.
Garcia elabora um plano de captura do traidor covarde. A estratégia é
colocada imediatamente em prática e obtém sucesso. Lopo de Baião cai prisioneiro das forças de Tructesindo e é submetido a uma morte humilhante e
dolorosíssima:
ele é amarado
aos restos de uma ponte num lago infestado de sanguessugas que lentamente lhe
consomem até a
última
gota de sangue.
Interessante
é observar
que esta cena final, tão
adequada ao passado glorioso e guerreiro de Portugal, apresenta também um claro viés Naturalista pela crueza da descrição de aspectos fisiológicos cruéis e repulsivos. A elaboração estética
da cena está de
acordo com os objetivos de Gonçalo ao escrever sua novela histórica, pois ele desejava dar um forte colorido
Realista à narrativa
despindo-a das brumas românticas
nas quais seu tio havia envolvido a trágica história de Tructesindo Ramires.
Análise da Obra
Gonçalo
e Portugal: dois destinos inseparáveis
A Ilustre Casa de Ramires é
um romance de clara dicção realista no qual Eça de Queirós tenta sintetizar na figura de Gonçalo as fraquezas e as grandezas de
Portugal, fazendo de seu destino pessoal uma "alegoria" daquilo que
lhe parecia ser a única
saída
possível
para os impasses e contradições de um país outrora tão poderoso (Idade Média e Renascimento), e hoje (final do século XIX) tão decaído.
Na
trajetória
pessoal de Gonçalo
nós
encontramos uma interpretação corajosa da alma portuguesa contemporânea de Eça de Queirós. A covardia deste fidalgo, sua pusilanimidade, suas aspirações de um futuro glorioso, suas crises
de consciência,
tudo é Portugal
indeciso diante de seu presente e de seu futuro.
Assim,
o destino de Gonçalo
traduz muito daquilo que Eça de Queirós (na fase final de sua produção literária) acreditava ser o caminho viável para o país: a retomada das tradições e do ilustre passado português materializados na veia expansionista
e colonialista da nação,
outrora um dos maiores impérios do mundo.
O
navio que leva Gonçalo
para África
chama-se justamente Portugal, e é
bom lembrar que este Ramires volta de lá enriquecido e completo na sua
transformação
iniciada na pátria
após
o sonho com seus antepassados lhe entregando as armas, e após a vitória sobre o valentão de Nacejas.
É
evidente aqui a profunda releitura da
história
portuguesa proposta por Eça
de Queirós
que - após
os arroubos de violenta e devastadora crítica presente nos romances de sua segunda fase, no quais não se cansava de fustigar a mediocridade
da pátria
- se dedica agora a descobrir um caminho possível para a nação.
Assim,
a crítica
queirosiana torna-se mais branda e "construtiva" porque é movida por um desejo de compreensão sincera do destino português. O Eça de Queirós incansável, o socialista da primeira hora cede seu lugar a um
aristocrata um tanto quanto cínico e irônico, mas não de todo desencantado.
Nesta
fase, seu esforço
de crença
na nação
parece, na maioria das vezes, como ideologicamente comprometido, porém suas enormes qualidades literárias e estilísticas absorvem o leitor para dentro da
trama romanesca tão
bem urdida a partir das duas narrativas que se completam pela oposição e simbolizam verrossimilmente o
destino de Portugal.
Se
na sua fase mais combativa, em especial no Crime do Padre Amaro e no Primo Basílio, Eça de Queirós elabora um crítica contundente da burguesia lisboeta e dos ranços da vida provinciana e de suas
instituições
hipócritas
e aviltantes, atacando a moral vigente e o atraso do país; na sua última fase o autor vai lentamente se
aproximando do universo rural, agrário e aristocrático que marca o passado português.
Assim,
ao lado do espírito
crítico
que nunca abandonou o autor, surge uma idealização do passado português e de suas origens gloriosas que servem então de baliza para o tão almejado futuro que ser quer também glorioso.
O
elogio bucólico
do campo e da aristocracia soa na verdade como Sebastianismo mal disfarçado, porém despido do misticismo e do messianismo que sempre o acompanharam.
Gonçalo, filho de uma casa mais antiga que
Portugal, parte em direção
à África
e de lá volta
glorioso e rico, ao contrário
de D. Sebastião
que movido por seus sonhos de glória acaba enterrado nas areias de deserto.
Passado
e presente, glória
e decadência,
grandeza e fragilidade estão de tal forma imbricados neste romance como estão na vida lusitana. Esse senso das
contradições,
que marcavam Portugal na segunda metade do século XIX, é a força
motriz que põe
em movimento a máquina
romanesca e cria o dinamismo interno tão rico e verdadeiro de Gonçalo. E se ao leitor parece utópica e sonhadora a solução encontrada pelo autor para o destino de seu personagem
(Gonçalo
= Portugal), nem por isso ela deixa de ser uma aspiração da alma lusitana.
O diálogo entre a tradição
e a decadência de Portugal
O romance “A Ilustre Casa de Ramires” foi iniciado no ano de
1894, e sua primeira publicação integral data de 1900, logo após a morte do autor, que não chegou a completar a revisão final do texto. Tal tarefa coube ao
escritor Júlio
Brandão.
O
tempo da ação
do romance é muito
provavelmente o mesmo do tempo da escritura, ou seja, a trajetória de Gonçalo se desenvolve na última década do século XIX. Este foi um dos períodos mais crucias e humilhantes da história de Portugal, principalmente por
causa do famoso episódio
conhecido como Ultimato que se deu no ano de 1890 quando a Inglaterra exigiu a
sumária
retirada de Portugal de suas legítimas possessões na África.
A ordem britânica
foi acatada causando no país uma forte comoção pública
e uma reação
imediatamente xenófoba.
O
Ultimato está diretamente
ligado ao avanço
imperialista e ao neocolonialismo das grandes nações capitalistas na segunda metade de século XIX, e diante destas nações Portugal se sente impotente e
destituído
de uma verdadeira estrutura econômica que lhe permitisse competir em pé de igualdade.
O
"atraso" histórico
da nação
e sua impotência
ficou patente naquela manhã de 11 de Janeiro de 1890, e era necessário que Gonçalo lá
fosse para trazer de novo a África de volta para Portugal, pelo
menos no romance e no imaginário lusitano. Eis A Ilustre Casa de Ramires: compensação simbólica de uma derrota histórica.
Este
romance, como já demonstramos,
narra a trajetória
do fidalgo Gonçalo
Mendes Ramires, filho de uma das casas mais nobres e mais antigas de Portugal,
anterior mesmo à fundação da nação. Entre seus antepassados constam heróis portugueses presentes aos feitos
mais importantes da história
do país
e da Europa.
No
entanto, no início
da narrativa, Gonçalo
representa justamente o oposto deste heroísmo e desta glória passada, pois nada mais é
do que um fidalgo sem verdadeiro estofo
moral: fraco, covarde e ambicioso, ele busca de todas as formas se projetar no
cenário
político
nacional. Sua maior aspiração é conseguir
uma cadeira no parlamento que lhe garantisse a estabilidade social tão desejada.
Para
alcançar
seus objetivos iniciais ele é capaz de negociar e jogar com a própria consciência e com os princípios morais aparentemente mais sólidos. Porém, justamente no momento em que ele
atinge os seus objetivos e consegue a tão almejada cadeira parlamentar, lhe advém a aguda consciência da mediocridade e da mesquinhez de
seus desejos. Após
algum tempo de vida mundana e política em Lisboa, ele decida abandonar tudo. Parte para a África e depois de quatro anos retorna a
Portugal enriquecido por meio do esforço próprio.
Paralelamente
a esta narrativa - e como já demonstramos - vai sendo tecida uma outra narrativa, levada
penosamente a cabo por Gonçalo, pois na sua sede de estabelecer uma reputação política, ele resolve consolidá-la com um perfil intelectual e literário digno de seus dotes morais.
Assim,
influenciado por um antigo amigo da faculdade em Coimbra, ele resolve escrever uma
novela histórica
de sabor medieval tão
ao gosto da literatura do início do século XIX, cuja matéria envolve um episódio heroico em torno de Tructesindo Ramires, um dos seus mais
ilustres antepassados. Além
de se cobrir de glórias
literárias,
seu objetivo é recolocar
em circulação
o próprio
nome e sua origem nobre.
Porém, toda a narrativa de Gonçalo não passa de uma versão em prosa, frouxa e mal elaborada de um poema escrito anos
atrás
por um tio e publicado num jornal de província.
Seus
talentos literários
não
passam da mal dissimulada cópia, como sua estrutura moral não passa de um jogo hábil entre interesse e conveniência social.
O
que surpreende então
o leitor neste jogo narrativo queirosiano é
justamente a justaposição entre o passado e o presente, ente os
"áureos"
tempos e o presente decaído.
De um lado, temos a mediocridade da vida provinciana e de sua aristocracia decaída. De outro, o passado glorioso de
Portugal, mas há muito
perdido.
Romance
de formação
e narrativa medieval se fundem de tal maneira que são elevados à condição de uma "alegoria" do desejado destino português, que só
poderia - ao que parece - ser retomado
por meio de uma reconciliação com o passado colonial da nação.
Gonçalo só
se reabilita, moral e pessoalmente,
quando decide abandonar Lisboa com toda a sua hipocrisia social, e parte em
direção
à África.
Assim,
este romance – um dos melhores do autor, do ponto de vista do estilo e da construção romanesca – é na verdade um elogio da Aristocracia e
do Colonialismo como elementos restauradores da glória portuguesa, o que não passa de Sebastianismo mal disfarçado, e de desejo de retorno a tempos
supostamente mais felizes e heroicos.
A
oscilação
existente entre o espírito
crítico
e combativo da segunda fase e o "conservadorismo" ideológico deste romance da terceira fase de
Eça
de Queirós
marca bem os impasses de toda uma geração empenhada na transformação de Portugal.
Linguagem e estilo
A Ilustre Casa de Ramires é
um romance narrado em terceira pessoa,
e apresenta um narrador onisciente que constrói e explora com agudeza os conflitos interiores de Gonçalo Mendes Ramires. Seu distanciamento
e objetividade permitem ao leitor acompanhar a lenta e progressiva transformação do personagem em direção a sua reabilitação moral e social.
O
narrador queirosiano conduz com eficiência o desenrolar dos meandros da consciência do fidalgo e de seus embates com a
vida, e maneja com habilidade inquestionável uma linguagem que oscila entre diversos tons e registros
que vão
do irônico
até o
lírico,
passando pelo satírico
e até pelo
épico,
orquestrando um universo de referências literárias ilustres dentro da tradição portuguesa e mesmo europeia. Paródia, intertextualidade e metalinguagem
são
peças
fundamentais de seu jogo estilístico.
Assim,
há uma
recuperação
das novelas de cavalaria medievais, que por sua vez foram muito exploradas pelo
romance romântico
europeu. No romance tal recuperação se dá numa
chave crítica
que demonstra o desgaste desta tendência e o que nela há
de artificial e retórico. Alexandre Herculano e Walter
Scott são
matéria
de recuperação
intertextual via paródia
e sátira.
No
entanto, é perceptível que o registro satírico e paródico que envolve a novela A Torre de D.
Ramires vai sendo lentamente abandonado assumindo uma coloração verdadeiramente épica que demonstra a adesão do narrador, e de Gonçalo, ao passado heroico português, síntese das esperanças de um futuro regenerado.
À
medida que Gonçalo se transforma sua dicção também muda, e com ela a posição do narrador diante da novela medievalista. Isto se dá de tal maneira, que o final glorioso – apesar
de violento e bárbaro
– da narrativa medieval coincide com a reabilitação de Gonçalo. Aquilo que começara como uma mesquinha necessidade de projeção social e política termina como um hino à nação e a seu passado glorioso que espelharia um futuro também promissor.
A
linguagem de Eça
de Queirós
apresenta uma consciência
crítica
da tradição
literária
lusitana e europeia,
e espelha as contradições
da própria
nação.
Assim,
linguagem e representação
estética
se constituem em função
da representação
do real histórico,
conferindo legitimidade estética a estrutura romanesca, mesmo quando a solução apresentada para o futuro de Gonçalo e de Portugal parece fruto de uma
idealização
de teor claramente regressivo e conservador.
Acreditar
– no auge da modernidade capitalista – na função redentora da aristocracia e no neocolonialismo como
destino histórico
de um povo é no
mínimo
um sonho compatível
com uma nação
já há muito descartada da competição capitalista das grandes potências europeias do século XIX.
A
linguagem realista e irônica
(traço
marcante de toda obra do autor), numa necessidade de coerência interna com o projeto ideológico apresentado, lentamente cede lugar
a um registro épico
e restaurador que se opõe
ao tom agressivo e irônico
combativo da segunda fase de Eça de Queirós.
Idealização do passado, elogio da aristocracia,
defesa do neocolonialismo, adesão à função regeneradora da nobreza são na verdade variantes de uma crença messiânica chamada Sebastianismo, e se constituem no desejo de
compensação
simbólica
diante de uma realidade social e histórica marcada por impasses consideráveis.
Assim,
as oscilações
aparentemente contraditórias
da linguagem deste romance são na verdade uma síntese do aspecto conflitivo da consciência do fidalgo Gonçalo Mendes Ramires e da sua função de símbolo vivo dos descaminhos de Portugal.
O
estilo deste romance representa uma verdadeira síntese do melhor estilo queirosiano em todas as suas oscilações, e é
fruto de um desejo sincero de compreensão profunda do destino português e das possibilidades de superação do sentimento de decadência da pátria tão
característico
da geração
de Eça
de Queirós.
GLOSSÁRIO
Antero de Quental
(1842-1891). Poeta e uma das figuras centrais da Questão
Coimbrã e do Realismo português.
Suas obras principais são Odes
Modernas e os Sonetos.
Anticlericalismo.
Temática marcante na literatura realista
baseada na crítica da
hipocrisia das instituições religiosas,
principalmente do clero católico.
Conferências
do Cassino. Conferências
públicas pronunciadas no Cassino
Lisbonense no ano de 1870, e que pelo seu teor de crítica
social foram proibidas pelo governo português.
Eça de Queirós
participou discorrendo sobre A nova literatura – o Realismo como nova expressão
da Arte.
Flaubert, Gustave
(1821-1880). Romancista francês autor do
romance Madame Bovary que é considerado
a primeira expressão plena do
Realismo na literatura oitocentista. Esta obra trata diretamente do tema do
adultério feminino.
Herculano, Alexandre
(1810-1877). Grande escritor e historiador do Romantismo português.
Seu romance de temática
medieval mais famoso é “Eurico, o
Presbítero”.
Medievalismo.
Temática romântica
baseada na idealização do
passado medieval europeu.
Naturalismo.
Escola literária que
representa um desdobramento radical do Realismo e que se caracteriza pela
aplicação de teses "científicas"
(principalmente de natureza biológica e determinista)
na tentativa de explicação das
complexas e contraditórias
estruturas da sociedade moderna.
Questão
Coimbrã.
Polêmica literária
ocorrida no ano de 1865 envolvendo vários intelectuais
e escritores portugueses em torno da discussão
sobre a oposição entre o Romantismo
e o Realismo.
Realismo.
Escola literária da
segunda metade do século XIX
que se opõe aos
devaneios e idealizações românticas
buscando analisar diretamente as grandes contradições
da moderna sociedade burguesa e capitalista.
Romance de formação. Também
conhecido como Bildungsroman (alemão) e
caracterizado por traçar o
desenvolvimento interno de um personagem central que se embate em busca de um
sentido "pleno" para a própria existência
em crise.
Romantismo.
Escola literária que
predominou na primeira metade do século XIX e
foi marcada pela ruptura com os modelos da Poética
Clássica. Nela predomina o subjetivismo e
o intenso sentimentalismo muitas vezes materializados numa tendência
escapista e evazionista na qual as contradições
existências e sociais são
dimensionadas por uma constante idealização.
Sebastianismo.
Crença de origem popular que habita o imaginário
lusitano e que se baseia na morte e desaparecimento do rei D. Sebastião
nas areias de Alcácer Quibir
no ano de 1578. Como a morte deste rei o trono português
foi dominado pela coroa espanhola de 1580 a 1640, marcando o declínio
do poderio português. A
partir deste momento surge o mito de que D. Sebastião
há de retornar e com ele glória
de Portugal renascerá.
Scott, Walter
(1771-1832). Escritor romântico, de
origem escocesa, que se dedicou principalmente ao romance histórico
de temática medievalista. Sua obra mais
conhecida é Ivanhoe.
Ultimato.
Incidente histórico
deflagrado no dia 11 de Janeiro de 1890 e no qual Portugal se viu obrigado a
ceder às pressões
britânicas em torno de possessões
coloniais portuguesas na África. A
aceitação, por parte do governo português,
das condições
impostas pela Inglaterra causou verdadeira comoção
nacional ferindo duramente o orgulho lusitano.
Zola, Émile
(1840-1902). Escritor francês responsável
pelo desenvolvimento da Escola Naturalista. Sua obra mais famosa é
o gigantesco painel romanesco intitulado Les Rougon-Macquart
no qual se encontram romances como Germinal, Naná e
a Besta Humana.
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