sábado, 15 de abril de 2017
Possibilidades de aplicabilidade da teoria de Habermas à administração escolar
A
teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas: conceitos básicos e
possibilidades de aplicação à administração escolar
José Marcelino de Rezende Pinto
Professor Doutor do Depto. do Psicologia e Educação da FFCLRP-USP
RESUMO
Neste trabalho buscaremos apresentar
uma síntese dos principais conceitos da teoria da ação comunicativa de Jürgen
Habermas assim como deduzir algumas de suas implicações para o estudo das
organizações. Em particular, buscaremos mostrar que esta teoria se constitui em
poderoso instrumento analítico no estudo da estrutura e funcionamento dos
conselhos com participação popular que são uma marca característica das
sociedades capitalistas contemporâneas. Este estudo tem por base a tese de
doutorado Administração e Liberdade: Um estudo do Conselho de Escola à
luz da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas (Pinto, 1994).
Palavras Chaves: Teoria da ação
comunicativa, Teoria de Habermas aplicada à administração, conselhos escolares,
gestão democrática.
Introdução
Um primeiro alerta que deve ser feito
quando nós iniciamos no estudo das ideias de Habermas e que, muito embora ele
se configure como um legítimo representante do movimento que se convencionou
chamar Escola de Frankfurt, como apontam McCarthy (1984) e Persson (1992), na
perspectiva da abordagem habermasiana o estudo da sociedade deve incluir e,
sempre que possível, integrar enfoques teóricos divergentes. Em virtude desta
postura, Habermas desenvolve sua teoria da ação comunicativa em um diálogo
constante com autores de uma ampla gama de linhas teóricas. Assim, ele
incorpora uma série de temas e contribuições que foram desenvolvidos, seja pelo
funcionalismo, pela fenomenologia, pelo marxismo, ou pela própria teoria
crítica da escola de Frankfurt, sua matriz original e mais importante. Desta
forma, sua teoria assume naturalmente um caráter interparadigmálico, o que não
significa, como veremos, um mero amálgama de várias linhas teóricas mas um
processo extremamente rico de incorporação/superação.
Ação Comunicativa e Mundo da Vida
Jürgen Habermas será o autor que
buscará enfrentar os fantasmas detectados por Weber, Adorno e Horkheimer nos
processos de racionalização societária. Estes autores mostraram em suas
análises, o processo pelo qual o Iluminismo que, na forma da razão científica,
surgiu no séc. XVIII como o grande agente de libertação social, de conquista da
maioridade pelo ser humano, de destruição dos mitos, transforma-se ele próprio
em um novo mito e consolida-se enquanto ideologia de dominação que legitima a
sociedade capitalista. A dominação do homem sobre a natureza, converte-se em
dominação do homem sobre o homem, em mundo administrado em nome da técnica,
abrindo espaço para a eclosão da des-razão no seio da sociedade de consumo
moldada pela indústria cultural. Para Habermas, a análise destes autores chega
a um impasse porque eles trabalham com um conceito restrito de razão. Em
virtude disto, eles confundem o processo de modernização capitalista, que é
calcado na razão instrumental, como sendo a própria racionalização societária
(Habermas, 1987a). Agindo desta forma, confundindo racionalidade do sistema com
racionalidade da ação, estes autores só conseguiram situar a espontaneidade
livre de reificação em poderes irracionais como o carisma, no caso de Weber, a
arte, para Adorno e o amor, para Horkheimer.
Para sair deste impasse, Habermas
propõe um salto paradigmático, no qual abandona-se o paradigma da consciência a
que estes autores encontram-se presos, em prol de um paradigma da comunicação.
O paradigma da consciência é calcado na ideia de um pensador solitário que
busca entender o mundo a sua volta, descobrindo as leis gerais que o governam,
revelando a unidade encoberta sob a diversidade aparente. Neste modelo há uma
relação de subordinação do objeto frente ao sujeito. Para Habermas, este
paradigma não se sustenta mais. Depois que Hegel mostrou o caráter
intrinsecamente social e histórico das estruturas da consciência, que Marx
revelou que a mente não é o campo da natureza, mas o inverso e que as formas de
consciência são representações ocultas das formas de reprodução social; depois
que Darwin estabeleceu o vínculo entre inteligência e sobrevivência e,
finalmente, que Nietzche e Freud revelaram o inconsciente no âmago da
consciência, dá-se uma dessublimação do espírito e um enfraquecimento da
filosofia (McCarthy, 1984). O pensamento filosófico perde sua autossuficiência,
caem as esperanças de se encontrar os fundamento últimos de uma primeira
filosofia.
Como afirma Habermas,
...eu pretendo
arguir que uma mudança de paradigma para o da teoria da comunicação tornará
possível um retorno à tarefa que foi interrompida com a crítica da razão
instrumental; e isto nos permitirá retomar as tarefas, desde então
negligenciadas, de uma teoria crítica da sociedade (1984, p. 386).
Distintamente do que ocorre com a
filosofia da consciência, o que é paradigmático para a racionalidade
comunicativa
...não é a relação
de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo que pode ser representado e
manipulado, mas a relação intersubjetiva, que sujeitos que falam e atuam,
assumem quando buscam o entendimento entre si, sobre algo. Ao fazer isto, os
atores comunicativos movem-se por meio de uma linguagem natural, valendo-se de
interpretações culturalmente transmitidas e referem-se a algo simultaneamente
em um mundo objetivo, em seu mundo social comum e em seu próprio mundo
subjetivo (1984, p. 392).
Esta mudança de paradigma é fruto do
abandono de uma compreensão egocêntrica do mundo, cuja fundamentação Habermas
retira do conceito de descentração de Piaget.
Habermas buscará então, a partir de um
diálogo com Marx, Weber, Durkheim, Mead, Lukács, Horkheimer, Adorno, Marcuse e
Parsons, pensando com eles para ir além deles como esclarece McCarthy (1984),
construir um conceito de racionalidade que encontra seus fundamentos nos
processos de comunicação intersubjetiva com vistas a alcançar o entendimento.
Segundo Aragão (1992, p. 82),
...Habermas
acredita que, na estrutura da linguagem cotidiana, está embutida uma exigência
de racionalidade pois, com a primeira frase proferida, o homem já manifestava
uma pretensão de ser compreendido, uma busca de entendimento.
Esta razão distingue-se completamente
da razão instrumental, a qual estrutura-se no uso não comunicativo do saber em
ações dirigidas a fins. A racionalidade instrumental que, através do empirismo,
marcou profundamente a autocompreensão da era moderna foi submetida à crítica
implacável de Weber e posteriormente de Adorno, Horkheimer e Marcuse. O grande
problema destas abordagens é que, nelas, eles confundiram um tipo particular de
racionalização e suas consequências como sendo patologias da própria razão.
Portanto, com a constatação da
inexistência de um referencial teórico absoluto e com os limites demonstrados
do empirismo, o que torna melhor um argumento é "a sonoridade de suas
razões" (Habermas, 1984, p. 24). Por sua vez, o que caracteriza a
racionalidade de uma expressão linguística é o fato de suas pretensões de
validade serem suscetíveis à crítica, através de procedimentos reconhecidos
intersubjetivamente. Por outro lado, para Habermas, em um processo de
comunicação mediado linguisticamente, existem somente três critérios de alcance
universal pelos quais as pretensões de validade podem ser confrontadas.
Assim, as pretensões de validade podem
ser criticáveis quanto à:
1 - Veracidade da afirmação. Esta
pretensão refere-se a um mundo objetivo entendido como a
totalidade dos fatos cuja existência pode ser verificada;
2 - Correção normativa. Esta pretensão
refere-se a um mundo social dos atores, entendido como a
totalidade das relações interpessoais que são legitimamente reguladas;
3 - Autenticidade e sinceridade. Esta
pretensão refere-se a um mundo subjetivo, entendido como a
totalidade das experiências do locutor às quais, em cada situação, apenas ele
tem acesso privilegiado (Habermas, 1984).
O conceito de razão comunicativa de
Habermas pressupõe, portanto, uma diferenciação entre os mundos objetivo,
social e subjetivo. Esta diferenciação, segundo ele, é que distingue o pensamento
moderno do modo de pensar mítico. Ao contrário do último, o primeiro assume que
as interpretações variam com relação à realidade social e natural e que as
crenças e valores variam em relação ao mundo objetivo e social.
Outra consequência deste conceito é que
ele pressupõe o abandono da relação cognitiva sujeito-objeto por um
procedimento cognitivo de natureza intersubjetiva, numa relação sujeito-outro
sujeito e que só é possível com a progressiva descentração de nossa visão
egocêntrica de mundo.
Portanto, com a superação da visão
mítica com seu caráter unificador e com o abandono da relação sujeito solitário
dominante e consciente frente a um objeto dominado e cognoscível, surge a
necessidade dos atores em comunicação chegarem ao entendimento quanto a pretensões
de validade criticáveis. Fica então, também, demarcada a diferença entre ação
comunicativa e ação orientada para o sucesso. Como diz Habermas, a ação
comunicativa ocorre
...sempre que as
ações dos agentes envolvidos são coordenadas, não através de cálculos
egocêntricos de sucesso mas através de atos de alcançar o entendimento (grifo
nosso). Na ação comunicativa, os participantes não estão orientados
primeiramente para o seu próprio sucesso individual, eles buscam seus objetivos
individuais respeitando a condição de que podem harmonizar seus planos de ação
sobre as bases de uma definição comum de situação. Assim, a negociação da
definição de situação é um elemento essencial do complemento interpretativo
requerido pela ação comunicativa (1984, p. 285, 286).
Em síntese, podemos dizer então que,
para Habermas, a ação comunicativa surge como uma interação
de, no mínimo dois sujeitos, capazes de falar e agir, que estabelecem relações
interpessoais com o objetivo de alcançar uma compreensão sobre a situação em
que ocorre a interação e sobre os respectivos planos de ação com vistas a
coordenar suas ações pela via do entendimento. Neste processo,
eles se remetem a pretensões de validade criticáveis quanto à sua veracidade,
correção normativa e autenticidade, cada uma destas
pretensões referindo-se respectivamente a um mundo objetivo dos
fatos, a um mundo social das normas e a um mundo das
experiências subjetivas. Para construção deste conceito, ele se
baseou no interacionismo simbólico de Mead, no conceito de jogos de linguagem
de Wittgenstein, na teoria dos atos de fala de Austin e na hermenêutica de
Gadamer.
O conceito de alcançar o entendimento
que decorre da ação comunicativa requer, por sua vez, a definição do contexto
em que estes procedimentos acontecem. Isto porque aquilo que o falante quer
dizer com seu pronunciamento depende do conhecimento acumulado e realiza-se sob
o pano de fundo de um consenso cultural anterior. É neste ponto que Habermas
introduz o conceito de mundo da vida (Lebenswelt), entendido como
o contexto não problematizável, o pano de fundo que propicia os processos de se
alcançar o entendimento. Como ele afirma, no sentido cotidiano o mundo da vida
pode ser entendido como aquele em que "os atores comunicativos situam e
datam seus pronunciamentos em espaços sociais e tempos históricos" (1987a,
p. 136). Ele é constituído por um saber implícito sobre o qual nós,
normalmente, nada sabemos porque ele é simplesmente não problemático, não
atinge o limiar dos pronunciamentos comunicativos que podem ser válidos ou não.
Como ele escreve,
...se a verdade é
o que é fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro, ou falso (1987a, p.
337). [Mesmo porque],os atores estão sempre se movendo dentro do horizonte do
seu mundo da vida, eles não podem se colocar de fora dele. Como intérpretes,
eles próprios pertencem ao mundo da vida, por meio de seus atos de fala, mas
não podem se referir a "algo no mundo da vida" da mesma forma que
podem fazer com fatos, normas e experiências subjetivas (1987a, p. 125, 126).
O mundo da vida por sua vez é dividido
em três componentes estruturais: Cultura, sociedade e pessoa.
- Cultura, entendida como
o estoque de conhecimento do qual os atores suprem-se de interpretações quando
buscam a compreensão sobre algo no mundo;
- Sociedade, entendida como
as ordens legítimas através das quais os participantes regulam suas relações no
grupo social;
- Pessoa, entendida como
as competências que tornam um sujeito capaz de falar e agir, ou seja, de compor
sua própria personalidade (Habermas, 1987a).
Para Habermas, existe uma correlação
direta entre ação comunicativa e mundo da vida, já que cabe à primeira a
reprodução das estruturas simbólicas do segundo (cultura, sociedade, pessoa).
Assim, sob o aspecto do entendimento mútuo, a ação comunicativa
serve para transmitir e renovar o saber cultural; sob o
aspecto de coordenar a ação, ela propicia a integração
social; e sob o aspecto da socialização, ela serve à
formação da personalidade individual.
Por outro lado, a reprodução do
substrato material do mundo da vida ocorre através de ações dirigidas a fins
pelos quais os indivíduos associados intervém no mundo e realizam seus
objetivos.
Estabelecidos os conceitos
complementares de ação comunicativa e de mundo da vida, partiremos agora para a
análise da teoria da evolução social de Habermas, a partir da qual ele
fundamenta o seu conceito de sociedade, assim como os limites e possibilidades
da utopia comunicativa, advindos com os estágios mais avançados do
desenvolvimento capitalista.
Uma Teoria da
modernidade
Para construir sua teoria da evolução
social e seu conceito de sociedade, Habermas busca articular as abordagens de
H. Mead e E. Durkheim. Deste, retira a ideia de um Estado limite, totalmente
integrado, enquanto do primeiro incorpora a tese do efeito desintegrador que os
atos de fala desencadeiam quando a reprodução simbólica do mundo da vida está
ligada à ação comunicativa. Estes atos provocam uma racionalização do mundo da
vida dos grupos sociais, à medida em que a linguagem preenche as funções de
alcançar o entendimento, coordenar ações e socializar os indivíduos (Habermas,
1987a).
Habermas, toma como ponto de partida, a
ideia de Durkheim de uma situação hipotética inicial, na qual existe uma sociedade
totalmente integrada, cuja coesão social é assegurada pelos domínios do sagrado
e onde não é necessária a mediação da linguagem tanto nos domínios religiosos
quanto profanos. A religião assegura a unidade da coletividade e reprime os
conflitos que podem surgir nas relações de poder ou nos interesses econômicos.
Isto representa um estado de integração social no qual a linguagem tem uma
significancia mínima. Habermas imagina "um estado no qual a linguagem saiu
de ferias" (1987a, p. 87). O indivíduo não possui existência própria, ele
só existe na totalidade. Não ocorreu ainda a diferenciação entre os três mundos
(objetivo, social e subjetivo).
Nesta situação inicial, não existe
também diferenciação entre as esferas da ação teleológica e aquelas da ação comunicativa;
o culto religioso se comporta como uma instituição total que envolve e integra
todas as ações, seja na esfera da família, ou do trabalho social. As estruturas
da visão de mundo, as instituições e a personalidade individual ainda não se
diferenciaram e permanecem fundidas na consciência coletiva constitutiva da
identidade do grupo.
Contudo, com o passar do tempo, a
prática cotidiana e o peso cada vez maior dos atos comunicativos vão
fortalecendo os processos de alcançar o entendimento em detrimento da tradição
normativa e do sagrado. As convicções passam a retirar sua autoridade cada vez
menos da aura do sagrado e cada vez mais de um consenso que não é somente
reproduzido, mas também alcançado comunicativamente Há uma transição da
interação mediada simbolicamente para a fala gramatical. Durkheim e Mead veem
este processo como uma linguistificação do sagrado. Nas palavras de Habermas,
...à medida que o
potencial embutido na ação comunicativa é realizado, o núcleo normativo arcaico
se dissolve e abre caminho para a racionalização das visões de mundo, para a
universalização da lei e da moralidade e para uma aceleração dos processos de
individuação (1987a, p. 4b).
Desta feita,
...a comunidade
religiosa que fez, pela primeira vez, possível a cooperação social é
transformada em uma comunidade de comunicação baseada na pressão para
cooperação. A interação guiada pela norma muda sua estrutura à medida que as
funções de reprodução cultural, integração social, e socialização [ou seja, a
reprodução simbólica do mundo da vida] passam do domínio do sagrado para aquele
da prática comunicativa cotidiana (1987a, p. 91).
Por outro lado, Habermas salienta que a
coesão social não pode ser garantida tão somente através de processos
comunicativos de busca do entendimento. Para ele, existem duas formas básicas
de integração de um sistema de ação:
- Integração obtida através de um
consenso alcançado normativamente ou comunicativamente (Integração social);
- Integração obtida através de uma
regulação não normativa das decisões individuais que vai além da consciência
dos atores, via mecanismos autorregulados como o mercado, ou a burocracia
(Integração sistêmica).
Ora, esta distinção nas formas de
integração demanda, por sua vez, uma diferenciação nos conceitos de sociedade.
Assim, do ponto de vista dos sujeitos atuantes, a sociedade é
concebida como o mundo da vida de um grupo social. Por outro
lado,
...da perspectiva de um observador
não envolvido, a sociedade só pode ser concebida como um sistema de ações tal
que cada ação tem um significado funcional de acordo com sua contribuição para
a manutenção do sistema (Habermas, 1987a, p. 117).
A partir desta constatação, Habermas
propõe um conceito de sociedade entendida simultaneamente como mundo da
vida e sistema. O fundamento deste conceito, ele
retira de uma teoria da evolução social que separa o processo de racionalização
do mundo da vida da crescente complexidade dos sistemas sociais. É assim que
ele diz:
Nós vemos a sociedade
como uma entidade que, no correr da evolução, diferenciou-se tanto como um
sistema quanto como um mundo da vida. A evolução sistêmica é medida pelo
aumento na capacidade de direção da sociedade, enquanto o estado de
desenvolvimento de um mundo da vida estruturado simbolicamente é indicado pela
separação da cultura, sociedade e personalidade (1987a, p. 152).
Sinteticamente, a sociedade pode,
então, ser vista como "Complexos de ação sistematicamente
estabilizados de grupos socialmente integrados" (1987a,
p. 152).
Assim, ele visualiza um processo de
evolução social no qual a racionalização do mundo da vida se dá através da
sucessiva libertação do potencial de racionalidade contido na ação comunicativa
e no qual a ação orientada para o entendimento mútuo ganha cada vez mais
independência dos contextos normativos. Em virtude disto, cada vez maiores
demandas são feitas sobre o meio básico da linguagem cotidiana, o qual acaba
sobrecarregado, sendo substituído por meios deslinguisliticados - os meios
diretores dinheiro e poder - oriundos da esfera sistêmica. Dá-se o desengate, a
cisão entre o mundo da vida e o sistema:
Através dos meios dinheiro e poder, os subsistemas da economia e
do estado são diferenciados fora de um complexo institucional estabelecido
dentro do mundo da vida; surgem domínios de ação formalmente
organizados [grifo do autor] que, em última análise, não são mais
integrados através dos mecanismos de entendimento mútuo mas que se desviam dos
contextos do mundo da vida e congelam-se num tipo de sociabilidade livre de
normas.
Com essas novas organizações surgem perspectivas sistêmicas, das
quais o mundo da vida é distanciado e percebido como um elemento do meio
ambiente do sistema. As organizações ganham autonomia através de uma demarcação
que as neutraliza frente às estruturas simbólicas do mundo da vida. Tornam-se
peculiarmente indiferentes à cultura, à sociedade, e à personalidade (Habermas,
1987a, p. 307).
Temos então o seguinte quadro: com o
desengate entre sistema e mundo da vida que marca a sociedade moderna, o
sistema social rompe o horizonte do mundo da vida e distancia-se do saber
intuitivo da prática comunicativa cotidiana. Com a crescente complexidade do
sistema social, o mundo da vida é cada vez mais deixado na periferia e perde
seu papel de integração social. De outro Lado, a libertação da ação
comunicativa da orientação de valores particulares leva à separação da ação
orientada para o entendimento mútuo daquela orientada para o sucesso, o que
abre espaço para que a coordenação de ações se de através de meios de
comunicação deslinguislilicados (dinheiro e poder). A substituição da
coordenação da ação que era feita inicialmente por meios linguísticos, pelos
meios dinheiro e poder, traz como consequência o desatrelamento da interação
social dos contextos do mundo da vida, o que faz com que este já não seja mais
necessário para coordenar a ação. Assim, para Habermas,
...com a
institucionalização legal do meio monetário que marca a emergência do
capitalismo, a ação orientada para o sucesso, guiada por cálculos egocêntricos
de utilidade, perde sua conexão com a ação orientada para o entendimento mútuo.
Esta ação estratégica que desatrela-se dos mecanismos de alcançar o
entendimento e demanda por uma atitude objetivante inclusive no campo das
relações interpessoais é promovida a modelo para lidar metologicamente com uma
natureza objetivada cientificamente. Na esfera instrumental, a atividade
dirigida a fins, ao retirar sua legitimidade do sistema científico, fica livre
das restrições normativas (1987a, p. 196).
Chega-se então ao seguinte paradoxo:
A racionalização do
mundo da vida torna possível a emergência e o crescimento de subsistemas cujos
imperativos se voltam definitivamente contra o próprio mundo da vida (1987a, p.
186).
Podemos então sintetizar as teses de
Habermas em dois pontos:
1- o processo de evolução social é
marcado pela crescente racionalização do mundo da vida, a qual implica em
progressiva demanda, como agente de coordenação da ação, pelos mecanismos de
alcançar o entendimento mediados linguisticamente, os quais acabam
sobrecarregados;
2- Esta sobrecarga sobre os processos
comunicativos, aliada à crescente diferenciação sistêmica, acaba por abrir
caminho para que os meios deslinguistificados (dinheiro, via mercado e poder,
via administração burocrática) assumam cada vez mais as funções de coordenar as
ações, alijando para a periferia do sistema os processos comunicativos mediados
linguisticamente. Ocorre uma reificação das estruturas simbólicas do mundo da
vida levada a efeito pelos imperativos sistêmicos que se tornaram autossuficientes.
A este processo de reificação ele deu o
nome de Colonização do mundo da vida, o qual será responsável
por uma série de patologias que atingem as sociedades capitalistas
contemporâneas, em especial nos países mais avançados. Passemos então à sua
análise destas sociedades.
Para Habermas, das relações entre
sistema e mundo da vida nas sociedades capitalistas contemporâneas, irão
aflorar quatro papéis basicos. Das relações entre o subsistema econômico e a
esfera privada do mundo da vida (cujo núcleo institucional e a família) surgem
os papéis de empregado do sistema produtivo e de consumidor de
produtos. Por outro lado, das relações entre o sub-sistema administrativo e a
esfera pública do mundo da vida (cujo núcleo institucional são as redes
comunicativas) temos os papéis de cliente da administração
pública e de cidadão do Estado (1987a).
Os papéis de empregado e cliente são
assumidos nas suas inter-relações com os subsistemas econômicos e
administrativos via mecanismos essencialmente não-valorativos e autorregulados
(mercado e burocracia). Por outro lado, os papéis de consumidor e cidadão,
referem-se a processos de natureza essencialmente autoformadora nos quais
entram em consideração questões de preferência e orientação de valores e
atitudes. A sua natureza é definida com referência a domínios organizados
formalmente mas não é dependente deles. As normas legais que lhes são
relevantes assumem a forma de relações contratuais e direitos civis. Estes
papéis pertencem, portanto, aos contextos do mundo da vida e não podem ser
tratados administrativamente ou economicamente.
Habermas alerta que só podem ser
convertidos aos meios diretores dinheiro e poder aqueles domínios da ação que
preenchem funções econômicas e políticas. Em contrapartida, estes meios falham
completamente quando aplicados aos domínios da reprodução cultural, integração
social e socialização. Eles não conseguem substituir os mecanismos de
coordenação da ação para o mútuo entendimento nestes campos.
Quando os meios dinheiro e poder
invadem estas áreas, temos a colonização do mundo da vida. Como afirma Freitag:
...foi exatamente
este processo que levou ao que Weber chamou de perda de liberdade do homem
(..). Foi o que, ''mutatis mutandis", Lukács denominou de alienação e
Marcuse de unidimensionalização (1988, p. 62).
No esquema habermasiano, a colonização
do mundo da vida ocorre quando os imperativos sistêmicos retiram os elementos
prático-morais e prático-estóticos das esferas públicas e privadas da vida. É a
monetarização e burocratização das práticas cotidianas em ambas estas esferas.
Ele afirma:
À medida que o
sistema econômico sujeita a seus imperativos as formas de vida do lar privado e
a conduta de vida dos consumidores e empregados, está aberto o caminho para o
consumismo e para o individualismo exacerbado. A prática comunicativa cotidiana
é racionalizada de forma unilateral num estilo de vida utilitário, esta mudança
induzida pelos meios diretores para uma orientação de natureza teleológica
gera, como reação, um hedonismo liberto das pressões da racionalidade. Assim
como a esfera privada é solopada e erodida pelo sistema econômico, também a
esfera pública o é pelo sistema administrativo. O
esvaziamento burocrático dos processos de opinião espontâneos e de formação da
vontade abrem caminho para a manipulação da lealdade das massas e torna fácil o
desatrelamento entre as tomadas de decisão políticas e os contextos de vida
concretos e formadores de identidade (Habermas, 1987a, p. 325).
Segundo Habermas, este processo é
análogo aos mecanismos de dominação legal aventados por Weber, nos quais
questões práticas aparecem como questões técnicas e as demandas por justiça
substantiva são descartadas em favor de uma legitimação via procedimentos.
A infraestrutura comunicativa fica
então ameaçada simultaneamente por uma reificação sistematicamente induzida
(que foi analisada por Lukács) e por um empobrecimento cultural, já que os
processos de racionalização cultural se, por um lado, representaram uma
libertação das amarras da tradição, por outro, deixaram as esferas da cultura
aprisionadas nas mãos de experts, distantes ainda, portanto,
das práticas cotidianas. Outro ponto fundamental salientado por Habermas é que,
com a racionalização e secularização da cultura empreendida pela burguesia, o
antigo poder de coesão do sagrado é perdido, e então a cultura perde as
propriedades que a tornaram capaz de exercer funções ideológicas.
A resposta sistêmica ao fim desta
função ideológica da cultura é a fragmentação da consciência do cotidiano, que
perde seu poder de síntese. Como diz Habermas:
No lugar da falsa
consciência, nós temos hoje uma consciência fragmentada que bloqueia o
iluminismo pelo mecanismo da reificação. É somente assim que as condições para
a colonização do mundo da vida são dadas (1987a, p. 355).
Nos países de capitalismo avançado, a
forma institucional em que se consolida a colonização do mundo da vida é o
Estado de bem-estar social embasado na intervenção governamental e na
democracia de massas. Segundo Habermas, o marxismo ortodoxo tem grande
dificuldade em explicar a emergência desta formação porque, através de sua
teoria do valor, ele vê apenas um dos aspectos da dominação sistêmica, a saber,
aquela exercida pelo meio dinheiro. Os marxistas ortodoxos não levaram em conta
que o sistema econômico, dirigido pelo meio dinheiro, para ser eficaz, deve ser
suplementado pelo meio poder.
Ora, no intervencionismo estatal que
marca o Estado de bem-estar social o que ocorre é a constante atuação do
sistema administrativo no sentido de contornar as crises que afetam o sistema
econômico. Ou seja, estamos longe dos tempos de capitalismo concorrencial que
foram analisados por Marx. É importante ressaltar que, não obstante este
processo de intervenção se tenha mostrado bastante eficiente no sentido de
garantir a sobrevivência do sistema capitalista, ele acaba desencadeando crises
de legitimação uma vez que as crises de natureza econômica tornam-se não só
administradas mas acabam também deslocadas para o sistema administrativo. Desta
feita, com o avanço das disfuncionalidades do sistema de livre mercado que
ameaçavam a sua própria existência com crises sucessivas, a intervenção estatal
tornou-se cada vez mais imprescindível. Ora, este fato entra em oposição
frontal com a ideologia do Estácio liberal, com a ideia de uma sociedade civil
emancipada que neutralize o poder (Habermas, 1987c). Ocorre uma repolitização
do sistema econômico, com a demanda de mecanismos de legitimação equivalentes
aos que existiram em sociedades pré-capitalistas. Contudo, o seu
restabelecimento é impossível porque, de um lado, as tradições já se
dissolveram e, por outro, nas sociedades industriais os resultados da
emancipação burguesa relativamente à dominação política imediata (os direitos
fundamentais do homem e o mecanismo das eleições gerais) impedem qualquer
retorno às formas pré-burguesas (Habermas, 1980).
Os limites do intervencionismo estatal
ficam claros quando analisamos as sociedades industriais desenvolvidas do
ocidente e o impacto que esta intervenção causa nas decisões dos investimentos
privados. Assim, os custos maiores em salários, impostos e encargos
trabalhistas têm levado as empresas a intensificar seus investimentos em
capital, visando uma maior produtividade, o que implica em quedei no nível de
emprego com reflexos na estrutura fiscal. Ademais, a forte presença do Estado
tem um eleito psicológico no sentido de desestimular investimentos. O que se
constata então é que há um limite à ação do Estado, e mesmo onde ela
representou alguns ganhos à qualidade de vida, como nos países capitalistas
desenvolvidos, fica clara a sua impotência em assegurar garantias fundamentais
como, por exemplo, o direito ao trabalho a todos os cidadãos. O resultado deste
processo é que o Estado corre o risco de perder sua base social que tende a se
alinhar com posições mais conservadoras (discurso neo-liberal) em oposição aos
segmentos da população mais desfavorecidos (Habermas, 1987b).
Se na esfera do intervencionismo
estatal na economia, o Estado de bem-estar enfrenta problemas, a situação se
complica ainda mais no que toca à sua legitimação na forma de democracia de
massa. Aqui, a colonização do mundo da vida é ainda mais crítica. Isto porque o
poder legal advindo de um sistema administrativo depende, em última análise, de
uma legitimação de ordem política. Em princípio, somente procedimentos
democráticos de formação de vontade podem gerar legitimação num mundo da vida
racionalizado e com alto nível de individuação da personalidade. Este fato,
evidentemente, entra em contradição com os imperativos sistêmicos. Por isso,
segundo Habermas, "entre capitalismo e democracia existe uma tensão indissolúvel;
em ambos, dois princípios opostos de integração societária competem pela
primazia" (Habermas, 1987a, p. 345). Esta tensão transparece, por exemplo,
na esfera da opinião pública que envolve tanto um potencial de formação livre
da vontade quanto os elementos de manipulação política e de produção artificial
de lealdade das massas, limitando o papel do cidadão a um mero eleitor com
poder de decisão política restrito.
Os limites do Estado social ficam ainda
mais evidentes no que se refere à sua intervenção na própria vida dos cidadãos
onde visa garantir a justiça social. Se, num primeiro momento, esta atuação
social do Estado representou ganhos efetivos na qualidade de vida da população,
a hipertrofia desta intervenção e a burocratização que a acompanha, com seus
efeitos de tratamento impessoal, normalização e vigilância excessiva, acabaram
voltando-se contra seus beneficiários. As formas burocráticas de administração
são incapazes de atender às demandas por emancipação. Problemas sociais são
tratados num viés legalista, questões calcadas na história de vida e em
situações concretas são submetidas a um alto nível de abstração, tratadas de
forma administrativa e referenciadas tão somente em compensações financeiras.
Há uma total desconformidade entre o tipo de demanda e o serviço oferecido pelo
Estado de bem-estar social (1987a).
Quanto mais o Estado social expande sua
rede assistencial sobre as esferas da vida privada, maiores os efeitos
colaterais patológicos de uma juridificação que envolve tanto a burocratização
quanto a monetarização de esferas centrais do mundo da vida.
Esta juridificação atinge as áreas de
proteção ambiental, segurança nuclear e proteção de dados, assim como os campos
do lazer, da cultura, do turismo e recreação que, cada vez mais, adequam-se às
regras da economia de mercado e consumo de massa A própria família burguesa e
a escola enquadram-se ante os imperativos sistêmicos.
Habermas se preocupa de forma
particulamente intensa com a intervenção burocrática e o controle judicial da
escola e da família. Para ele,
...de forma
alguma, família e escola se constituem enquanto esferas de ação formalmente
organizadas. (..) Nestas esferas do mundo da vida, nós encontramos, anterior a
qualquer legalização, normas e contextos de ação que, por necessidade
funcional, são baseados no entendimento mútuo como um mecanismo de coordenação
de ação (1987a, p.369).
Os processos formativos que têm lugar
na família e na escola, e que acontecem pela via da ação comunicativa, devem
ocorrer independentemente de qualquer regulação legal. A lei deve ter um papel
meramente complementar nas áreas de ação socialmente integradas.
No caso da família, Habermas cita o
exemplo da legislação que regula os direitos da criança, que às vezes visando
protege-la da violência dos pais, cria uma tecitura legal que produz uma nova
relação de dependência. Saem os pais, entra o Estado. Assim, para ele, o que,
...à primeira
vista, é algumas vezes apresentado como um instrumento para romper as
estruturas de dominação no interior da família, prova, frente a um exame mais
detalhado, ser também um veículo para uma nova forma de dependência (1987a, p.
370).
Habermas mostra a inadequação do
sistema legal para lidar com este tipo de questão, uma vez que "é o
próprio meio da lei que viola as estruturas comunicativas da esfera que foi
legalizada" (1987a, p. 370).
Analogamente, no caso da escola, ele
afirma:
A proteção dos
direitos dos alunos e pais contra as medidas educacionais (como promoção, ou
não promoção, exames, testes, etc.) ou contra atos da escola e do departamento
de educação que restringem direitos básicos (penalidades, disciplinas), e ganha
ao custo de uma legalização e burocratização que penetram fundo no processo de
ensino e aprendizagem (1987a, p. 371).
Isto porque, de um lado, este processo
provoca uma sobrecarga nas agências governamentais e, de outro, como no caso da
família, o meio "lei" entra em confronto com a forma em que
transcorre a atividade educacional. Este processo de excessiva regulamentação
coloca em risco a liberdade pedagógica e a iniciativa do professor, assim como
leva à despersonalização, inibição da inovação, perda de responsabilidade e
imobilismo.
Para Habermas, a saída desta situação
passa por,
...como no caso da
família, (...) desregulamentar e sobretudo desburocratizar o processo
pedagógico. A constituição de uma legislação escolar deve embasar-se em
procedimentos de tomada de decisão que considere todos aqueles envolvidos no
processo pedagógico como tendo capacidade de representar seus próprios
interesses e de regular seus atos por iniciativa própria (1987a, p. 372).
Estas colocações de Habermas apontam
para a importância de mecanismos de decisão, como é o caso dos Conselhos de
Escola, ou Colegiados que buscam colocar o poder de decisão, no âmbito da
escola, nas mãos da comunidade escolar em detrimento do poder burocrático. Nós
voltaremos a este tópico mais adiante. Antes, contudo, vejamos como, na visão
de Habermas, o Estado social enfrenta as patologias que advêm da colonização do
mundo da vida.
Baseando-se em Claus Offe, Habermas
mostra que, frente a estas questões, só resta ao Estado de bem-estar a
estratégia de evitação dos problemas crônicos. E nesta atividade preventiva, o
Estado se restringe à ação administrativa, à execução de técnicas que visam
garantir o funcionamento de um sistema regulado. O problema porém é que os
problemas não são técnicos, mas práticos, e não se encontram na esfera da
"ação racional teleológica", mas da "ação comunicativa". A
tática utilizada pelos que detêm o controle do sistema é a de despolitizar as
massas, eliminando os conteúdos práticos dos problemas, visando transformá-los
em técnicos e que, como tal, devem ser resolvidos cientificamente. Está aberto
o campo para a tecnoburocracia (Habermas, 1987c).
Estas ações preventivas não conseguem,
contudo eliminar estes problemas. Citando Offe, Habermas diz que as zonas de
conflito surgem entre as necessidades que ficam na periferia do campo de ação
estatal e aquelas centralmente localizadas. Assim, surge uma disparidade entre
o nível efetivamente institucionalizado e as potencialidades reais de
desenvolvimento técnico e social. Como exemplo, cita o estupendo avanço dos
meios de produção e defesa em comparação com a estagnação dos serviços de
saúde, educação; ou a grande eficácia do planejamento nas áreas fiscal e
financeira, comparada com o caos do planejamento urbano (1987c).
Com este processo, há um deslocamento
das zonas de conflito da esfera da luta de classes (como ressalta a teoria
marxista) para os âmbitos subprivilegiados da vida. Situam-se neste caso os
conflitos raciais nos EUA ou na Europa, por exemplo. Todavia, uma vez que estes
grupos não são classes sociais e o sistema não vive (depende) do seu trabalho,
o seu potencial de êxito revolucionário é restrito (1987c e 1980).
Habermas acredita que uma nova zona de
conflitos não virá da luta de classes, ou destas disparidades entre centro e
periferia do sistema, mas surgirá exatamente do sistema de opinião pública,
administrado pelos meios de comunicação que é onde atuam os mecanismos de
despolitização das massas, os quais ocultam as diferenças entre as questões
técnicas de regulação do sistema e as possibilidades reais de emancipação
existentes no marco institucional (esfera da ação comunicativa) (1987c).
Concluindo, podemos dizer então que o
grande dilema do Estado de bem-estar é que ele visa a integração social através
de mecanismos que só desintegram as relações de vida. A assistência física, psicossocial
e emancipatória requer modos de operação, critérios de racionalidade e formas
organizacionais que estão fora dos domínios da administração burocraticamente
estruturada (1987a).
Haverá então, Habermas, chegado aos
mesmos dilemas da dialética negativa de Adorno e Horkheimer, ou àqueles da
análise weberiana? Ou seja, será que o desenvolvimento da razão acaba gerando
inexoravelmente os elementos que levam à destruição de lodo o seu potencial
emancipatório e iluminista?
Habermas acredita que não, porque, ao
contrário destes autores, ele não confunde o desenvolvimento da razão
instrumental como sendo o próprio processo de racionalização societária. Esta
confusão levou Weber, Adorno e Horkheimer a buscar a espontaneidade livre da
reificação em poderes irracionais (carisma, arte e amor). Na verdade, o
processo narrado por estes autores é consequência não do processo de
racionalização societária, mas da colonização do mundo da vida pelos
imperativos sistêmicos. A tarefa que se coloca então é a reconquista daquelas
estruturas simbólicas do mundo da vida (cultura, sociedade e pessoa) pelos
mecanismos que coordenam a ação através da busca do entendimento. Segundo
Habermas:
...só a racional
idade comunicativa refletida numa autocompreensão da modernidade, oferece uma
lógica interna (...) para resistir contra a colonização do mundo da vida pela
dinâmica interna de sistemas autônomos (1987a, p. 333).
Diante do esgotamento do Estado social,
Habermas vê três atitudes possíveis. De um lado, estão os legitimistas do
Estado social que buscam consolidar o nível já alcançado, buscando restaurar o
equilíbrio entre intervenção estatal e modernização da economia de mercado. De
outro, estão os neoconservadores (representados, por exemplo, nas políticas
desenvolvidas nos governos Reagan e Tatcher) que partem para o ataque ao Estado
social, embasados no discurso neoliberal. Um terceiro grupo assume uma linha de
crítica ao crescimento como um bem em si. São grupos variados e heterogêneos
(velhos, jovens, mulheres, desempregados, homossexuais) e o que os une é uma
recusa à visão produtivista que permeia o pensamento tanto dos legitimistas do
Estado social quanto dos neoconservadores. Eles têm uma postura ambivalente
ante o Estado social e entendem que o mundo da vida está ameaçado tanto pela
mercantilização (dinheiro) quanto pela burocratização (poder). Falta a este
grupo, porém, um programa alternativo, eles se limitam a uma postura negativa,
à "Grande Recusa" (1987b).
Habermas entende que somente este terceiro
grupo; tem condições de sair da atitude defensiva que compartilha com os
demais. Para tanto, contudo, sua atuação deve ser no sentido de levar o projeto
do Estado social a um nível mais alto de reflexão e o primeiro passo nesta
direção é que o trabalho deixe de ser o eixo de referência. Em seguida deve
haver um controle social e ecológico da economia de mercado que, deixada à sua
própria sorte, tem levado a disparidades sociais cada vez mais gritantes, com
atrasos e involuções econômicas (como a fome no 3° Mundo), colocando em risco a
própria existência do homem sobre a terra em virtude da degradação ambiental.
Não obstante, esta intervenção no mercado (que não deve ser eliminado), precisa
acontecer através de mecanismos indiretos, "partindo de fora, sobre os
mecanismos de auto-orientação do sistema" (Habermas, 1991, p. 57).
Além do mercado, o próprio Estado
intervencionista precisa ser, agora, socialmente controlado.
Para que estes dois processos ocorram,
é necessário contudo, segundo Habermas, haver uma "mudança da relação
entre os espaços públicos autônomos, de um lado, e, de outro, os setores
comerciais orientados pelo dinheiro e pelo poder administrativo" (1991, p.
57).
As sociedades modernas dispõem, para
Habermas, de três recursos que podem satisfazer suas necessidades de
governo: dinheiro, poder e solidariedade. O poder integrador
da solidariedade deve servir de barreira eficaz ao poder do dinheiro e ao poder
administrativo, de tal forma que o mundo sistêmico não invada o mundo da vida.
Nesta redefinição de posições, as
decisões passam, a nascer de um processo de reflexão onde se garante a livre
discussão dos temas e propostas de solução aos problemas apresentados,
garantindo-se simultaneamente eficácia e responsabilização dos participantes pelas
decisões tomadas. Como afirma Habermas, "o poder gerado de modo
comunicativo pode atuar sem intuito de conquista, sobre as premissas dos
processos de valorização e decisão da administração pública" (1991 p. 58).
Ele garante o fundamento das ações que o poder administrativo pode até executar
de forma instrumental. O pressuposto deste agir comunicativo é contudo a
garantia de uma formação radicalmente democrática de opinião e vontade.
Além disto, Habermas entende que o
nível dos problemas enfrentados pelas sociedades desenvolvidas só encontrará
solução pela via de uma moralização dos temas públicos, algo que, como vimos, o
sistema tecnocrático insiste em evitar, numa postura de adiar as soluções
estruturais e que tem, cada vez mais, colocado em xeque a sua própria
existência.
Problemas como a ameaça nuclear, os
gastos com armamentos, a obsolescência programada, o preconceito contra as
minorias e a miséria no 3º mundo, não são técnicos e não encontrarão solução na
atual distribuição de poder. Eles só poderão ser enfrentados
...pelo viés de
uma moralização dos temas, por uma generalização de interesses operada de modo
mais ou menos discursivo em espaços públicos não obstruídos de culturas
políticas liberais (Habermas, 1991, p. 59).
Sintetizando, Habermas propõe uma
organização onde as esferas públicas autônomas alcançariam uma combinação de
poder e autolimitação, atuando sobre os mecanismos de autorregularão do Estado
e da economia, visando uma formação radicalmente democrática da vontade, tendo
como pressuposto um deslocamento das energias utópicas do campo do trabalho
para o da comunicação. O conteúdo utópico desta sociedade da comunicação está
em garantir condições básicas para uma prática comunicativa cotidiana que
propiciaria as condições para os próprios participantes - de acordo com seus
próprios interesses - realizarem uma vida melhor (Habermas, 1987b).
Habermas, alerta contudo que
...Uma soberania
popular assim processada não poderá operar também sem a retaguarda de uma
cultura política que lhe venha em apoio, sem as maneiras de pensar
(gesinnungen) de uma população habituada à liberdade política: não há formação
da vontade política sem o auxílio de um mundo da vida racionalizado (1990, p.
111).
Finalmente, adverte ele para os riscos
de se cair numa "religião civil" e proclama uma "cultura de
massas, profana, irrestrita e igualitária" (1990, p.113).
Habermas e a organização
Nesta altura do trabalho, podemos então
tentar esquematizar quais seriam os principais elementos de um modelo
organizacional baseado na teoria da ação comunicativa:
1 - Libertação do
mundo da vida dos imperativos sistêmicos, mediante uma desregulamentação e
desmonetarização de suas estruturas (cultura, sociedade, pessoa). Na prática,
isto implica em:
a- Luta contra os imperativos financeiros e burocráticos que regem a
produção tanto cultural quanto científica; controle público sobre os meios de
comunicação de massa com vistas a garantir uma formação democrática da vontade;
b- Enxugamento progressivo da tecitura legal que rege as relações entre
pessoas enquanto componentes de uma estrutura social normativamente legitimada.
Preocupar-se mais com o conteúdo das normas do que com sua processualística.
Promover uma moralização dos temas públicos, via discussão política, aberta a
todos;
c- Restringir ao máximo a legislação sobre a família e a escola e
empreender a sua desburocratização radical, visando assegurar a formação de uma
personalidade autônoma;
2 - Manutenção dos sistemas econômicos
e administrativos guiados pelos mecanismos do mercado e da administração
burocrática mas submetidos a controle externo;
3 - Este controle será exercido por
associações espontâneas (vemos aqui as Organizações Não-governamentais, ONGs),
organizadas na esfera dos espaços públicos autônomos (vemos aqui a presença dos
Conselhos). Fica claro que sua força não advirá de mecanismos formais de poder
mas de sua legitimidade;
4 - Valorização de mecanismos de
deliberação coletiva que estimulem o entendimento e não a mera conquista do
poder (por exemplo, deliberação por consenso e não por votação).
Se conseguimos captar acima, de fato, o
espírito da proposta habermasiana, o que se constata é que este autor não
propõe a destruição do aparato estatal-burocrático, ou do mercado. No fundo, a
nosso ver, o que ele sugere é uma democracia processual, uma "soberania em
procedimento", na qual os mecanismos de ação do mercado e do poder
administrativo serão controlados no âmbito de conselhos populares (espaços
públicos autônomos) no qual intervém as associações não governamentais e que se
valem de processos comunicativos de busca do entendimento.
Conclusão
Neste breve esboço da teoria da ação
comunicativa de Jürguen Habermas esperamos ter mostrado que esta teoria,
através do seu conceito de sociedade em dois níveis, Sistema (esfera
regida por mecanismos diretores autorregulados como o mercado e o poder
administrativo) e Mundo da Vida (esfera regulada pela busca do
entendimento através de procedimentos mediados linguisticamente) e, em
particular, através de seu postulado de colonização do mundo da vida pelos
imperativos sistêmicos, oferece uma chave adequada para interpretarmos a
sociedade capitalista contemporânea com suas patologias e contradições. Além de
propiciar um diagnóstico acurado dos problemas organizacionais presentes no
atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista, esta teoria
aponta para o papel fundamental desenvolvido por mecanismos como os conselhos
populares, organizados enquanto espaços públicos autônomos, no sentido de
servir de barreira à colonização do mundo da vida pelos imperativos sistêmicos.
E é dentro desta perspectiva que vemos a atuação dos Conselhos de Educação,
Saúde e Meio Ambiente, entre outros, que se espalham pelo país.
Com relação â escola, a teoria da ação
comunicativa ajuda a entender o seu processo de burocratização, assim como a
influência saneadora exercida por mecanismos que trazem o poder de decisão
sobre os seus destinos para as mãos da comunidade escolar, como é o caso dos
conselhos escolares, os quais, não obstante, como mostram os estudos de campo,
também sofrem os efeitos dos constrangimentos sistêmicos (Paro 1992, Passos,
Carvalho e Silva, 1988 e Pinto, 1994).
Entendemos que a teoria da ação
comunicativa fornece, não só uma explicação para a existência de conselhos com
participação popular, que intervêm na fixação de diretrizes de políticas
públicas e de investimentos privados, mas mostra também que a consolidação
destes espaços públicos autônomos, onde atuam os diversos grupos da sociedade
civil, é condição básica para a solução de uma série de patologias que marcam
as sociedades capitalistas contemporâneas. À luz da análise habermasiana, a
existência destes fóruns de discussão e deliberação nasce, não de um ato de
vontade de um grupo de indivíduos que lutam por justiça e liberdade, mas como
uma necessidade que encontra seus fundamentos nos próprios processos de
racionalização societária. Ao questionar o paradigma da razão instrumental como
o único padrão de racionalização possível, introduzindo o conceito de razão
comunicativa, Habermas realiza um salto paradigmático com profundas implicações
para a teoria da administração. Se, como ele aponta, no âmbito do mundo da
vida, onde ocorrem os processos cruciais de produção e transmissão cultural, de
socialização e de formação da personalidade individual, a ação deve
necessariamente ser dirigida por processos comunicativos de busca do
entendimento e não através de meios autorregulados, como o mercado ou a
administração burocrática, como sói ocorrer atualmente, isto significa a
necessidade de mudanças profundas nas formas de gestão destas áreas, mudanças
estas que implicam na introdução de mecanismos de decisão que levem em conta a
participação de lodos aqueles que sofrerão os efeitos desta ação.
Esperamos, portanto, neste breve
artigo, ter demonstrado as potencialidades dá teoria da ação comunicativa de
Habermas como referencial teórico para os estudos organizacionais e, temos
certeza, que novos estudos nesta vertente aqui esboçada, poderão trazer
contribuições importantes a todos aqueles que lutam pela construção de uma
sociedade que não seja guiada pelo poder do dinheiro, ou da burocracia, como
hoje, mas por homens emancipados que veem a diversidade, não como um ônus mas
como um trunfo fundamental para a sobrevivência da civilização.
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Pinto, J. M. R. (1994). Administração e Liberdade: Um estudo do
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