"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 22 de abril de 2017

ÉTICA E DIREITOS HUMANOS

Entrevista com Renato Janine Ribeiro

PALAVRAS-CHAVE: Ética; Direitos Humanos; Democracia.

* Entrevista realizada pelos professores Maria Lúcia Toralles-Pereira (Departamento de Educação, Instituto de Biociências de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Unesp) e Reinaldo Ayer de Oliveira (Departamento de Cirurgia e Ortopedia, Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp), com colaboração de Adriana Ribeiro (assistente editorial da Revista Interface, Fundação Uni).


Um indivíduo cai na rua tendo uma crise convulsiva;
um senhor passa e chama um policial para atendê-lo.
Ao lado do sinal luminoso um cego espera para atravessar o cruzamento.
O sinal abre e ele continua esperando...
Alguém se aproxima: vamos atravessar?


Naquela tarde de inverno atravessamos a zona sul de São Paulo, em direção à encosta da serra do mar e, por um caminho de terra, chegamos ao endereço anotado. A densa mata que cerca a construção ao mesmo tempo surpreende e encanta! Da soleira do portão vermelho, com um grande guarda-sol que nos protegeu da chuva fina, o dono da casa nos recebeu. Cercados por livros e objetos da cultura brasileira tomamos café e conversamos.
O dono da casa, Renato Janine Ribeiro, é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo/USP. Defendeu Mestrado na Sorbone, Paris, e Doutorado na USP. Tem inúmeras publicações, entre as quais os livros “A Democracia” e “A República”, publicados em 2001, pela Folha. Pertence ao Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e coordena na USP a implantação do curso de graduação interdisciplinar em Humanidades.
O voluntário isolamento e a respeitosa convivência com a natureza (esta percebida à primeira vista!) parecem compor a personalidade do filósofo que, com a simplicidade de quem muito sabe e a generosidade dos que gostam de acolher, prontamente aceitou dar esta entrevista à Interface. Parte das mais de duas horas de uma prazerosa conversa sobre Ética e direitos humanos partilhamos com você, leitor! Vamos atravessar?
Vou começar pela ética. Penso que há um grande mal-entendido sobre a ética em nossos dias, que até tem um fundo positivo: é o fato de cada vez mais pessoas terem simpatia por ela, de haver um clamor pela ética na política, no âmbito social em geral. Um dos grandes discursos dos últimos anos reclama por ética. Na sociedade brasileira isso corresponde a um fato social importante, a saber: não existe mais sustentação que legitime a desigualdade, a injustiça, a miséria entre nós.
Durante muito tempo havia difusamente a convicção – mesmo que nunca fosse expressa com toda a clareza – de que a desigualdade extrema, e inclusive a miséria, eram aceitáveis, legítimas: o pobre aceitava ser muito pobre, diante de pessoas que tinham vantagens muito grandes. Isso era possibilitado, também, porque nossa elite era muito pequena. Costumo dizer que quando três, quatro ou cinco por cento da população podiam movimentar-se de carro particular, as cidades funcionavam muito bem, eram um encanto. Mas, quando se passa a ter trinta, quarenta, talvez cinquenta por cento da população se movimentando, em algum momento da semana, de carro, a cidade não se sustenta, como nenhuma cidade do mundo se sustentaria com essa proporção de gente motorizada. Da mesma forma, enquanto há pouca gente que corresponde à elite, esses poucos vips assumem o direito de furar fila, e isso é aceito. Fura-se fila porque se é malandro, porque se é simpático, bonito, rico, porque se tem despachante. Mas, quando a classe média se expande em número, e as classes mais pobres, vendo televisão, começam a desejar os mesmos bens de consumo dos ricos, torna-se ilegítima a desigualdade social.
Insisto nesse desejo dos bens de consumo. Os bens de consumo divulgados na televisão são atraentes mas, em princípio, existem para ser adquiridos. Portanto, necessita-se de dinheiro para chegar a eles. No entanto, a propaganda vai para todos, pobres ou ricos; como fica isso? Lembro uma propaganda, um ou dois anos atrás, do Mercedes Benz Classe A. Nela aparecia um casal de ricos andando numa garagem no subsolo e três faxineiros, por definição pobres, rindo deles porque o casal rico escorregava na água ensaboada. Mas, quando o casal entra no Classe A, o marido começa a fazer curvas com o carro e quase atropela, de brincadeira, é claro, os três pobres. Ri melhor quem é mais rico, ri melhor quem ri por último. É uma propaganda acintosa da desigualdade social. Diz que, se você é rico, pode se vingar dos pobres (como se o contrário não fosse o mais lógico), usando sua riqueza como arma. Mas, ao mesmo tempo, essa propaganda é vista pelos pobres. O faxineiro pensa: ”por que não vou ter um Classe A? O que me impede? Qual a razão para que o outro tenha um Classe A e eu, não?”
Até um tempo atrás, você ser fazendeiro, rico etc. era aceito por muitos pobres porque você nasceu assim, porque se trata de uma desigualdade ditada por Deus, pela Providência, pela natureza. Toda essa sustentação acabou. Resumindo, para concluir esse ponto: houve uma expansão tão grande daqueles que têm algum nível de anseio ou desejo cidadão (mesmo que não tenham os direitos cidadãos), anseio que às vezes tem origem a partir até mesmo de anseios de consumo, que isso trouxe uma noção tal de igualdade (igualdade no desejo, não na realidade: aquilo que eu desejo me iguala ao mais rico, desejamos a mesma coisa) que, por sua vez, tornou muito difícil justificar os critérios de desigualdade básicos que faziam funcionar a nossa sociedade, sobre fundamentos injustos, mas que, mesmo assim, permitiam que ela funcionasse e que, pelo menos para nós das classes mais abonadas, fosse até mesmo uma sociedade agradável. É porque isso acabou que não podemos mais achar graça nenhuma em transgredir regras. Antigamente até se podia achar graça, digamos, em ser furado na fila do cinema por uma pessoa que tivesse jeito, sorriso, poder etc. Hoje, isso não é mais aceitável. É o que se traduz no clamor por ética.
Tomando as raízes sociais da demanda pela ética: nós a queremos porque ela é que nos permitirá uma convivência minimamente decente. Não temos mais base social para viver segundo valores da desigualdade e da discriminação. Os valores da igualdade, do respeito ao outro, tornam-se o requisito mínimo para nossa sociedade sobreviver. O clamor por ética está ligado a isso. Disso, que é um fator social altamente positivo, decorre algo que me deixa, porém, cético. Muitas pessoas pensam que estão clamando por ética como se isso fosse algo puro, a busca do certo, quando as coisas são mais complexas; o clamor por ética, às vezes, se traduz na pergunta simplista: isso é ético ou não? Como professor de Ética, ouço esse tipo de pergunta: “tal tipo de conduta, professor, é ético ou não?”. E tenho de responder que não há tabela, gabarito, regra, definição.
Aliás, costumo invocar os Códigos de Ética, que são uma contradição em termos. Embora seja necessário haver um Código de Ética, se ele é Código, é lei; e, se é lei, o que importa é que seja obedecida, independentemente da razão que me leva a obedecer, se é o medo da punição ou é a convicção de que a disposição é correta. Tudo o que é lei, na sociedade, precisa ser cumprido apenas em função do bom trato com o outro. Ninguém vai me deter, no quarteirão seguinte, para perguntar por que parei no sinal vermelho. Basta que eu tenha parado, e não importa se foi apenas por medo da multa ou dos pontos na carteira de habilitação. Ao passo que, quando falamos de Ética, é isso o que mais importa.
No caso de um sujeito ético, o fundamental é saber se ele está inclusive disposto a violar a lei se preciso for. Porque as leis, por melhores que sejam, são sempre aproximações um tanto toscas da melhor conduta. Pode haver circunstâncias em que violar a lei seja decisivo. Na Medicina, justamente, não esqueço uma coisa que aconteceu quando fui viver na França, como bolsista, em 1972: morreu uma pessoa na calçada, a dois metros de uma farmácia, sendo que nenhum farmacêutico a acudiu. E os farmacêuticos não a socorreram porque se tocassem nela se tornariam responsáveis pelo atendimento. Propôs-se então uma lei que valorizasse o atendimento de emergência, mesmo que desse errado, e lembro um editorial do Nouvel Observateur dizendo que, se dependermos de leis para que as pessoas sejam humanas, estaremos perdidos.
Ou seja: a conduta correta, eticamente, teria sido o farmacêutico – ou qualquer pessoa – acudir o outro, mesmo correndo o risco de depois ser enquadrado na lei. Porque era um valor humano que estava ali, a vida de alguém. E se o juiz tivesse bom senso, depois, diria que não era o caso de aplicar a lei. E se o juiz não tivesse bom senso, mesmo assim a pessoa diria: fiz o que devia fazer.
Voltando ao clamor por ética, ele tem uma base muito boa, mas muitas vezes se reveste de uma forma equivocada, porque é a demanda de soluções prontas, como se ao cumprir uma legislação ética eu me tornasse um sujeito ético. Um sujeito ético é aquele que aceita assumir os riscos de estar errando, mas que tenta ir além do que a lei prescreve.
Há uma questão de meios e fins. Se dermos importância demais a um Código de Ética, transformaremos o que é meio em fim. Não é porque uma pessoa cumpre o Código de Ética de ponta a ponta que recebe um diploma de sujeito ético. Mas muitos acham que o simples fato de nunca terem violado um código lhes dá dignidade, quando um código, geralmente, é uma legislação que assume a forma negativa: proíbe, não ordena. Geralmente a legislação é menos enfática sobre as ordens do que sobre as proibições. Por exemplo, há um artigo no Código Penal, que obriga as pessoas a um dever de solidariedade a outras. É o artigo do socorro à pessoa em perigo. Há muita ilusão a seu respeito. A maior parte das pessoas pensa que, quando atropela alguém, está obrigada a acudir o atropelado. Não é bem isso. Não é o motorista que atropelou que está obrigado a acudir. Não; qualquer pessoa tem o dever de socorrer qualquer um em perigo. Ou seja: não só a pessoa atropelada tem o direito de ser atendida, e nem só o motorista tem obrigação de acudir. Eu comecei a ler esse artigo do Código e pensei: “gente, isso nos obrigaria, também, a acudir qualquer miserável que passe fome na rua! Ao não fazer isso, estamos infringindo o Código Penal!” Entretanto, é claro que não passa pela cabeça de ninguém nos processar porque há um miserável na rua.
É curioso que quando se tem uma lei que não diz não farás, mas sim farás, essa lei não seja cumprida. Nós nos acostumamos a leis, e até à ética, no sentido de proibições, mas não no sentido de imperativos. É triste pensar que a ética ficou reduzida à abstenção da conduta antiética e não se consubstancia, geralmente, no empenho por uma conduta ética.
Isso está mudando; o voluntariado, as ONGs estão assumindo um pouco esse perfil da conduta afirmativamente ética. Mas algo que faz uma falta extraordinária na vida acadêmica – e digo isso pela área de Humanas, que eu conheço, mas vale também para a área da Saúde – é o senso de responsabilidade social. Ou seja: a falta de se perguntar sempre “o que eu fiz, o que estou fazendo pela sociedade, pelos outros, de que maneira eu ajo...?”.
Há uma passagem importante no pensamento político que é a passagem de súdito para cidadão, embora em certos contextos os dois termos ainda sejam utilizados quase como sinônimos (tecnicamente, o cidadão britânico é, na verdade, súdito de Sua Majestade britânica). Súdito designa aquele que está sob um dito, que recebe ordens de quem lhe é superior. Já o cidadão é um sujeito ativo dentro de uma cidade, ou seja, de uma República. Portanto, ao falarmos em cidadania, em cidadão e na passagem de súdito a cidadão, temos presente a ideia de que se assume responsabilidade pela sociedade. Daí que haja um equívoco, talvez o principal que vejo na temática dos Direitos Humanos, que é ela assumir demasiado o caráter de direitos que temos, sem levar em conta que esses direitos estão ligados, também, a obrigações. Não é que tenhamos um rol de direitos e não saibamos nem quem vai executar esses direitos. Comentei, num artigo, aquele cartaz que constava nos ônibus paulistanos: “Transporte: direito do cidadão, dever do Estado”. É muito meritório, mas esquece que numa democracia o Estado é feito pelos cidadãos. Não é que devamos pedir ao Estado que, como uma gigantesca teta, nos dê isso. Temos a obrigação, como cidadãos, de construir um Estado que forneça isso. E no Brasil, a sensação de que o Estado é exterior a nós, de que nada temos a ver com ele, é tão grande que acabamos, mesmo quando lutando por uma sociedade melhor, pedindo ao Estado (e legitimando, portanto, quem está no poder), em vez de exigir uma reconstrução do Estado. Nesse ponto a cidadania se torna não apenas um direito, mas um dever. Em Roma era assim: na Roma antiga, estava claro que o direito de cidadania era, ao mesmo tempo, uma série de direitos e de obrigações que incluíam, por exemplo, o serviço militar.
É comum dizer que houve três (alguns falam hoje em quatro) gerações de direitos: direitos civis (do proprietário, basicamente), direitos políticos e, finalmente, os direitos sociais. Alguns agregam a esses, hoje, os direitos relativos à natureza, que formariam uma quarta geração dos direitos humanos. Porém, na maior parte desses casos, ou pelo menos nos paradigmáticos, que são os direitos civis, o sujeito dos direitos é o indivíduo privado, ou grupos sociais que não estão no poder. Há assim uma certa despolitização no horizonte dos direitos humanos. Diz-se muito que queremos tais direitos e pouco se discute como construir um Estado e uma sociedade que permitam a execução desses mesmos direitos. A cidadania...
Há assim uma ideia, às vezes explícita, às vezes implícita, de que os direitos precedem o Estado, de que eles permitem julgar a forma do Estado – e isso é muito bom, porque é a única maneira leiga de colocar um contraponto ao poder do Estado. Se não fosse assim, teríamos que invocar Deus e os valores sagrados, contra o Estado. Assim, se estabelecemos que todo ser humano tem direito, por exemplo, a ser julgado de maneira justa e correta, do ponto de vista dos valores esse direito precede o próprio Estado – o que é muito bom. Só que dessa maneira se deixa de lado outra questão, que é: os direitos humanos, a rigor, só podem ser implantados num Estado democrático. A construção da democracia e dos direitos humanos vão juntas. Mas, às vezes, perde-se de vista esse vínculo.
Sustento que temos quatro grandes tradições ou linhas políticas no século XX e no que começa, o XXI, o ideário republicano, o ideário democrático, o socialista e o liberal. Esses quatro ideários reúnem politicamente tudo o que há de bom no pensamento político do século XX, mas são conflitantes, ou tensos. Defino a república como regime da vontade e democracia como regime do desejo. Entendo que o essencial da República é a capacidade de cada um abrir mão de seus interesses e desejos pessoais em favor do bem comum, da coisa pública, da res pública. Desde Roma, a temática da República passa pela renúncia à vantagem própria em favor do bem comum, às vezes sacrificando-se a própria vida. Por outro lado, desde que surge entre os gregos, a democracia é acusada (ou elogiada) de ser o regime em que os mais pobres mandam. E o clamor básico dos mais pobres é o clamor do ter, do ter mais, porque eles se sentem desprovidos. Então, os pobres, segundo seus detratores gregos, desejariam tirar o que os ricos têm. Por isso afirmo que na democracia pulsa, com muita força, o desejo – enquanto na república a contenção é a regra.
Mas as duas são necessárias: é preciso que a república seja capaz de “segurar” a democracia, dizer que “não dá para cada um afirmar seu próprio desejo, é preciso haver um nível de renúncia, até para construir a casa de todos”; porém, por outro lado, se não houver esse clamor por ter daqueles que não têm, o que teremos como regime político será superficial, sem vida. É interessante que uma das maiores filósofas do século XX, Hannah Arendt, tenha, nesse ponto, perdido de vista o que é o cerne da democracia. Quando ela reclama que hoje se discute muito o interesse e pouco a política, como se discutia entre os gregos, a política de que fala é muito republicana e bem pouco desejante. E chega a um paradoxo curioso: elogia a forma dos Conselhos – como houve na revolução húngara ou na revolução russa, com o nome de sovietes – que vêm de baixo, de gente que participa diretamente da coisa política, mas não gosta da agenda que eles trabalhavam, muitas vezes uma agenda econômica e social. Defendia uma agenda política, mas sem o econômico e o social. Isso é difícil, para não dizer impossível. E talvez ela erre em sua caracterização dos gregos, porque, justamente, eles tinham em mente que na democracia mandavam “hoi polloi”, os muitos, os pobres, e por isso – diziam seus críticos – a democracia queria expropriar os mais ricos. Em meu artigo “Democracia versus República” (no livro Pensar a república, da UFMG) e nos meus dois livros A República e A Democracia (ambos da Publifolha), sustentei que para os gregos a democracia não era um regime só político, como vai ser ao ressuscitar no século XVIII, mas também social – o que ainda hoje lutamos por tornar realidade.
Contra a tese de Arendt, e de outros, entendo que a democracia é um regime baseado no desejo: é ele que a movimenta. Ou, para falar de outro modo: Montesquieu introduz uma ideia muito boa – há, diz ele, três formas de governo e, para funcionar, cada uma precisa de um certo tipo de paixão na sociedade. Quando se tem o Despotismo, para ele funcionar as pessoas precisam ter medo. Se não sentirem medo do déspota, o Despotismo não funciona. Na Monarquia, os súditos devem ter honra, porque é o amor à própria honra que os faz manterem o monarca na linha. O monarca pode muito, mas tem um limite, que é: ainda que ele possa tirar a vida dos súditos, eles não tolerarão que lhes seja retirada a honra. E na República, especialmente a democrática, a paixão básica é o que ele chama de virtude e eu traduziria como abnegação: é a capacidade de renunciar. A ideia de República é essa: a ideia de renunciar ao bem próprio, em favor do bem comum. O que quero extrair disso tudo é: se precisamos ter algum tipo de paixão pública, de paixão social, para que um regime político funcione, na democracia moderna o que tem funcionado como motor para as lutas das massas – que são justamente o que caracteriza o arquétipo melhor da democracia moderna – é o desejo de ter e de ser mais. Então, se não tivermos presente esse desejo, e se não o valorizarmos, não vamos entender nada e não vamos conseguir fazer nada que preste.
Quando falo em desejo, não estou falando só das carências, do movimento dos Sem Terra, dos sem isso, sem aquilo; não basta ter carência de algo, é preciso ter desejo de algo. Paradoxalmente (e talvez até involuntariamente), os comerciais de TV exercem um papel democrático, precisamente porque suscitam esse desejo nas pessoas. O que Montesquieu nos ensina é que não se conseguirá conhecer o funcionamento de um regime político, de um regime de relações entre as pessoas, se não se der atenção às paixões, às emoções que estão envolvidas.
Há emoções envolvidas não só na vida privada, mas também na vida pública. A vida pública está estruturada sobre algum tipo de emoção e, se não tivermos essa percepção muito nítida, não entenderemos o funcionamento de uma sociedade. Se construirmos uma sociedade com a melhor legislação e as melhores instituições, mas isso não se escorar em paixões vividas por aquela sociedade, a estrutura política ou jurídica girará no vazio.
É muito importante levarmos em conta que uma sociedade de massas, sobretudo se estiver marcada pela desigualdade social, é movida pelo desejo de ter mais e de ser mais: essa sociedade tem que abrir espaço para isso, ou então não conseguirá adesão popular. É isso o que marca o Brasil da Nova República, o Brasil desde 1985. Temos tido formas democráticas de governo, mas com deficiência no investimento democrático das massas, isto é, nos meios para que elas possam ter mais e ser mais. Em 17 anos, essa democracia não conseguiu dar, à grande maioria da população, boas razões para que ela sinta que pode melhorar seu nível de vida.
Por isso, os valores democráticos têm sido muito mais vantajosos para a elite e classe média (que acabam se beneficiando mais do sistema jurídico em que vivemos) do que para a grande maioria da população (que não se reconhece num ambiente de desemprego). Os grandes êxitos do governo Fernando Henrique foram tornar mais moderados os conflitos políticos, afastar ainda mais os militares da cena do poder e introduzir um clima mais civilizado na discussão política. São estes os méritos notáveis e inegáveis de seu governo – que talvez não sejam só seus, porque vêm de um processo histórico de maior amplidão do que sua vontade pessoal, mas certamente foram favorecidos por seu estilo de fazer política. Reconheço esse mérito.
Porém, naquilo que diz respeito aos mais pobres, esses avanços vieram junto com a consolidação do desemprego em níveis intoleráveis para um país como o Brasil. Ou seja: conseguimos consolidar valores de trato democrático, que funcionam já razoavelmente bem para a classe média e dela para cima, mas não se construiu aquilo que traria, para a grande massa, a esperança de emancipar-se da necessidade, da miséria. É nesse sentido que, se não levarmos em conta o desejo, um regime político pode ter seu alcance muito limitado – e talvez até o horizonte do fracasso apareça para ele.
Não basta levarmos em conta que a vivência política se origina em algum tipo de desejo. É preciso que esse desejo se converta, também, em direitos, que eles passem para outra esfera. É preciso que o elemento democrático que faz as massas clamarem, por exemplo, por mais professores na Faculdade de Filosofia da USP (refiro-me à recente greve, de três meses, de nossos estudantes), por terra, por direito à saúde, que esse desejo de ter o corpo saudável, a mente instruída, a alimentação suficiente, que tudo isso se converta em direito, em lei. E para fazer isso, é preciso ter a mediação da res publica, do bem comum. Se não, vai ser só um clamor egoísta, de cada um por si.
E essa passagem é muito difícil. Muito difícil por duas razões: primeira, porque o reconhecimento do desejo não é fácil. Propositadamente, utilizo a palavra desejo nesse sentido vago, porque é o sentido usado, antes de mais nada, pelos inimigos da democracia, já na Grécia. Tem uma cor até pejorativa, mas acho importante recuperar esse termo, para deixar claro que o desejo atinge âmbitos os mais variados, às vezes imprevisíveis. Em nossa sociedade, é objeto de desejo muita coisa que na Declaração de Direitos do Homem se considera direito. Desejamos, muitas vezes, o básico, o banal, o imprescindível; porém, junto com esse desejo por casa, comida etc., vem o desejo por um tênis bom, de grife: aí já se misturam as coisas. Enquanto a massa desejar apenas o necessário, todos reconhecem que isso é moral – ainda que esse desejo não seja satisfeito. Mas, no momento em que um menino mata outro por um tênis, isso vira uma coisa indecente. Só que há uma lógica nesse desejo do tênis, que é claro que não justifica matar, mas deve ser entendida para captarmos o que é a luta social, o que é a democracia: a paixão, em nossa sociedade, é o tênis, é o carro, é tudo isso. Como vamos, então, convencer alguém que ele não tem o direito de desejar, de se apaixonar?
O desejo privado é mais simples, realiza-se com maior facilidade. Não coloca tantos problemas percebê-lo, entendê-lo. Mas o que me interessa é quando o desejo entra numa dimensão pública. Sem dúvida, o desejo por um tênis é tão privado, e mais até, que o desejo pela namorada. Mas o desejo pelo tênis, numa sociedade em que a maior parte das pessoas não tem acesso aos tênis de grife e em que quase todos têm em seu coração, suscitado pela televisão, o desejo de ter um tênis de grife, é uma questão emocional que acaba entrando no plano público. Mais do que isso: muitas vezes o desejo por um tênis de grife pode dizer mais à sociedade do que certas questões tradicionais da política, como, por exemplo, acabar com a miséria. Acabar com a miséria, entendendo-a como proporcionar a todos as necessidades básicas, no caráter complexo de nossa sociedade, talvez se torne insuficiente, sempre falando de como chega às pessoas a agenda que lhes propõe o seu desejo.
Temos de levar em conta que muita gente que não tem casa quer ter um tênis. Que há mais casas no Brasil sem geladeira que sem televisão. Ou seja, no Brasil há muita gente que aceita não preservar os alimentos de um dia para o outro, mas que não abre mão de ver o espetáculo. Há muita gente para quem o circo é mais importante que o pão!
Então, o que quer dizer essa importância do circo, da emoção socialmente vivida? Que não podemos pensar a política, a sociedade, somente em função das ideias de interesse e de necessidades.
O primeiro passo consiste em reconhecer a legitimidade do desejo. No pensamento político, isso é raro. O primeiro caderno de qualquer jornal brasileiro, que fala de política, do Brasil, não trata disso. Se vocês examinarem o que meus colegas de Ciência Política dizem, hão de perceber que não gostam dessa idéia. Não trabalham com o termo desejo, mas com o termo interesse. Reconhecer o desejo e todo o seu caráter ambíguo é muito complicado.
Para dar um exemplo, a famosa pergunta feita a Fernando Henrique na campanha para prefeito de São Paulo, em 1985, “acredita ou não em Deus?”, é o tipo de pergunta que é desqualificada como irracional, que não corresponde aos interesses dos cidadãos; não tem a menor importância se ele crê ou não em Deus, e sim que tipo de gestão ele vai fazer. Mas ela diz respeito ao desejo de muita gente que tem um espírito religioso aguçado e para quem isso é importante. Desqualificar esse tipo de pergunta é, por isso, uma atitude apressada, que termina por nos impedir de entender como a política, de fato, é vivida.
Temos, diria eu, uma política, que chamo “política da Ciência Política”, que reconhece pouco espaço para a questão do desejo, com tudo o que ela tem de imprevisto, de ambíguo e, até mesmo, de duvidoso, mas que existe. Essa é uma primeira dificuldade... Mas é só depois de reconhecer a importância do desejo que vem outra questão: como civilizá-lo? Como fazer que aprendamos a realizar o máximo possível do nosso desejo, mas nunca tudo, e isso ainda de maneira a conciliar o máximo que se possa do meu desejo, do seu, do de todos os sujeitos desejantes?
O papel da Educação é complicado. De modo geral, quando se fala em direitos humanos, afirma-se que o papel da Educação seria, como li outro dia num artigo de jornal, o de consolidar os valores da cidadania. Como se eles já estivessem dados, e como se a questão dos valores devesse passar pela solidez e não, justamente, pela construção de sujeitos capazes de lidar com a dúvida. Exagerando um pouco, mas só um pouco, diria que consolidar valores é o que temos de mais próximo da lavagem cerebral. É tratar das pessoas como se fossem gansos franceses, e os valores como se fossem ração que se enfia goela abaixo deles. O que devemos ter claro é que a educação deve procurar tornar as pessoas o mais capazes possível de lidarem com um mundo de dúvidas, de ambiguidades, e isso é importante tanto do ponto de vista psicológico como do ponto de vista ético.
Estamos num mundo em que as condições de trabalho, de amor e de profissão, todas elas, estão sob risco. Ninguém sabe quanto tempo vai durar um casamento, um emprego ou mesmo uma profissão – há profissões que desaparecem! Temos que preparar as pessoas psicologicamente para aguentar esse tranco e eticamente para enfrentar essa dificuldade. Fiz um cálculo: quando um jovem escolhe uma profissão, ele está provavelmente com 15 a 17 anos, terminando o ensino médio. Elege uma profissão na qual vai se formar daí a cinco anos, aos 21 ou 22 de idade, e na qual se espera que se aposente aos setenta, com quarenta anos de exercício, ou seja, quase meio século depois da escolha.
Quem, no ano de 2002, pode, em sã consciência, dizer que profissão terá em 2047? E, no entanto, queremos que o jovem adote a escolha adequada do ponto de vista prático, que lhe dê dinheiro e segurança – o que é impossível. Por esta razão, penso que o importante na formação de alguém é preparar a pessoa para um exercício profissional bom, mas dando-lhe uma formação que a capacite a migrar, se isso for seu desejo ou necessidade. Isso me tem levado a prestar muita atenção no fenômeno da evasão nas Universidades, que não condeno com a mesma veemência dos reitores, porque nele vejo, justamente, um sinal dessa busca por um trajeto de vida que o mundo acadêmico e profissional não está conseguindo perceber.
As pessoas entram numa faculdade, e muitas vezes são as mais brilhantes, e migram de um curso para outro – e o que isso indica, senão que está havendo um erro? Não que o professor seja pouco dedicado ou as matérias mal lecionadas. Não! Isso pode existir, mas a questão é mais profunda: temos de formar pessoas que amem aprender, temos de dar a elas um hardware – ou um software, talvez – com o mínimo necessário para que sejam capazes, depois, de conquistar novos conteúdos e novas formações, mas aceitando que possam migrar e que nada disso seja um fracasso, como hoje, a rigor, muitos acham.
Quando um casamento se desfaz, não é que ele foi um fracasso. Ele pode ter sido um sucesso durante um tempo. Profissionalmente, podemos adotar, também, essa idéia de que os rumos mudam e de que as pessoas têm de ter essa capacidade de mudança.
Como a educação lida com isto? Temos de ter uma educação voltada para a construção do básico numa pessoa, daquilo que resista nela se o mundo todo cair agora – que a capacite para, se como dizia Maysa “meu mundo caiu”. Se isso ocorrer, que ela saiba onde se segurar para refazer sua vida pessoal, empregatícia, sua escolha de uma área de trabalho. Isso não são valores sólidos, no sentido convencional. A capacidade de lidar com a instabilidade ainda hoje não é valorizada devidamente. Se prestamos atenção na linguagem cotidiana, vemos o valor que dá para a estabilidade, para a densidade, para o equilíbrio... e isso num mundo em que tudo está sob terríveis ameaças.
O grande desafio hoje é: como fazer que valores democráticos (sobretudo os ligados à demanda que vem de baixo para cima, por maior igualdade) e valores republicanos (em especial os da construção do espaço comum entre as pessoas) não se restrinjam ao mundo das instituições políticas, mas difundam sua fecundidade por todas as relações de trabalho e afetivas, os dois mundos ditos privados que fogem dele – o mundo da propriedade privada, que rege a maior parte das relações de trabalho, e o mundo da vida privada, aqui no sentido de íntima, que rege a dimensão do coração. Como fazer para difundir isso e para que esses valores se espraiem?
Primeiro, é necessário que eles sejam difundidos, porque só isso dará base a uma sociabilidade democrática. Não há instituições democráticas sem pessoas democráticas. É preciso, pois, mexer na psique das pessoas e, sobretudo, ver como se dá a tradução do ideário democrático em cada coisa. Por exemplo: é democrática a eleição do chefe de departamento, diretor de faculdade e reitor da universidade? Isso é complicado; há os que acham que eles têm de ser eleitos pela comunidade acadêmica – o que traz um grande efeito positivo, que é tornar mais transparentes, mais explícitas, mais públicas as relações, criar um commitment, um compromisso de parte a parte; mas, por outro lado, nenhuma universidade, sobretudo a pública, tem por fim a comunidade que está nela. A finalidade da universidade é a sociedade como um todo. Então, se as direções são eleitas por quem está dentro desse processo, corre-se o risco de fazer prevalecer o egoísmo dos membros do grupo, que se beneficiam com salários ou com o ensino, sobre a sociedade, que é o fim efetivo da universidade. Discutir como traduzir essa questão democrática na prática cotidiana é muito complicado, mas já é importante fazê-lo.
Notemos, também, que a palavra democrático assumiu sentidos muito amplos. Costumo lembrar que falamos em pais democráticos sem imaginar que tenham sido eleitos pelos filhos – e o mesmo vale para o patrão, para o  professor, para o chefe: democrático, nesses casos, é quem age com educação, com respeito ao outro. Aqui estão envolvidos alguns valores básicos. O valor do respeito ao outro é uma expressão do valor da igualdade. Quando se fala em igualdade, abstratamente, ela se realiza na hora em que eu respeito o outro, apesar de toda a desigualdade social, etária, intelectual que possa haver entre nós. Mas penso que, até por causa da conversão do Brasil (e do mundo todo) em sociedade de massas, está havendo um clamor tão forte por igualdade, que é bastante positivo.
O desafio para nós, que temos uma formação acadêmica, intelectual, é como fazer que certos clamores afetivos, desejantes, por vezes muito prementes, mas também selvagens, convertam-se em algo mais passível de se aplicar, de se vivenciar. Vendo de outra forma: temos, hoje, a matéria bruta de um desejo muito forte de igualdade e, ao mesmo tempo, não temos canais pelos quais ele se possa realizar. Desde a queda do Muro de Berlim – que em si foi muito boa, mas trouxe junto um avanço quase irrestrito do capital, mundo afora –, as reivindicações que em outras épocas se traduziriam em militância política de esquerda foram se desviando para lutas individuais, até criminais. Para mudar a sociedade, pessoas que não têm em seu horizonte uma militância partidária, eventualmente revolucionária, podem se desviar até para o crime. Não estou dizendo que o militante se torna um criminoso, mas que, se essas multidões miseráveis que existem no Brasil conseguem ter uma meta política, elas têm um caminho a seguir. Como não conseguem, muitos têm tentado as soluções individuais. Quando alguém comentou que a existência do PT nos últimos vinte anos garantiu para o Brasil um nível de paz social (por paradoxal que isso pareça), que não haveria se só tivéssemos partidos não representativos dos trabalhadores, disse a verdade. Estaríamos numa situação muito pior, porque o PT assegurou um mínimo de tradução em termos institucionais, no caso, político-partidários, para os desejos sociais dos mais pobres. Mas isso ainda está muito longe do que precisamos ter. Basicamente nosso problema, hoje, no Brasil, é a dificuldade de conseguir ter linhas de tradução dos desejos populares em reivindicações políticas claras e passíveis de serem executadas.
O exemplo mais claro, porém também um pouco enganoso, da relação entre direitos e deveres, ou da idéia de que a democracia não se resume nos direitos humanos, mas implica as questões da participação e do poder do povo, está na discussão sobre a obrigatoriedade do voto. Muita gente diz: se o voto é um direito, como pode ser uma obrigação? Pois ele é exatamente essas duas coisas, ilustrando muito bem essa síntese que vem de Roma, da cidadania como direito e obrigação. Se, por hipótese, todos nós, estando isentos da obrigação de votar, não votássemos, a sociedade deixaria de ser democrática, pois deixaria de haver governo eleito. O voto é interessante, talvez sobretudo para minha geração, que só veio votar de verdade quando tinha mais de quarenta anos. Entre 1960 e 1989, nenhum brasileiro, salvo poucos generais, votou para presidente! É claro que, mais importante que votar a cada dois ou quatro anos, é a pessoa atuar, constantemente, na defesa dos direitos seus e dos outros. Mas, com isso, minha posição na questão do voto é a mais oposta possível à dos defensores de seu caráter facultativo. Eles acham que votar já é muito. Eu acho que é pouco. E o cerne do erro deles está em conceberem a liberdade e o direito como bem privado. Nesse sentido, aliás, captam muito bem um traço frequentíssimo no Brasil, que consiste em considerar as coisas do ponto de vista do indivíduo, de sua vantagem, de seu patrimônio. Pensa-se, então: “se tenho um direito, posso fazer uso dele da maneira como eu quiser, inclusive não fazendo uso”. Assim como o direito de guiar um carro inclui o direito de não guiar carro, imagina-se que o direito de votar, ou de participar da coisa pública, inclua o direito de não fazer nada disso. Mas são direitos diferentes, um de claro perfil privado, outro de caráter público. Ou, para usar a linguagem do pensador liberal Isaiah Berlin, o direito de ter carro, e em suma os direitos de ter, pertencem ao mundo da liberdade negativa (freedom from...), que é tanto maior quanto menos houver interferência do outro ou do setor público, ao passo que o direito de votar, diria eu, pertence à esfera da liberdade afirmativa ou positiva (freedom to...). Se não tivermos isso claro, não construiremos uma sociabilidade democrática. Vejam bem, nem mesmo estou defendendo a obrigatoriedade do voto. Estou apenas, mas é isso o essencial, levantando o que está por trás dessa discussão de uma classe média que não quer perder alguns minutos num domingo, cada dois anos. E que por isso mesmo difunde uma mentira extraordinária, segundo a qual “só no Brasil” haveria o voto obrigatório, esquecendo que existem países chamados Argentina, Austrália, Bélgica, Costa Rica, Itália, entre outros, que também exigem do eleitor que vá votar.
É claro que não será obrigando as pessoas, com penalidades, que se construirá uma sociedade democrática e republicana. Apenas acredito que deveríamos ter uma educação – não apenas na escola, mas na sociedade como um todo – que sensibilizasse mais as pessoas para a necessidade de atuarem, coletivamente, em favor do bem comum. Até porque isso reverte para elas próprias. E aí, de novo, vem a questão da obrigação política, da obrigação de agir e da responsabilidade pela sociedade em que se vive.
Os direitos humanos são considerados por seus militantes como se idealmente todos eles fossem conciliáveis. Isto é: os direitos humanos seriam indivisíveis. O direito a ser julgado de maneira imparcial, a não ser preso sem as formalidades da lei, o direito da mulher à igualdade com o homem, o direito à não discriminação por razões éticas... todos eles se conjugam. Há um clamor importante dos movimentos de Direitos Humanos para que nenhum deles seja usado contra outro. Mas é claro que há uma tendência, sim, a jogar um contra outro.
Em primeiro lugar, há conflito entre certos direitos humanos. Por exemplo, o direito a uma vida sexualmente feliz (não sei se esse direito está em alguma Declaração, mas podemos imaginar que, se não está, é por erro da Declaração) entra em contradição com o direito à prostituição porque, obviamente, é muito difícil imaginar a prostituição conjugada a uma vida sexual boa – ela é o melhor emblema de uma vida sexual ruim entre as pessoas. No entanto, é claro que há um acordo possível entre os dois direitos: para uma vida sexual feliz, ninguém precisa que as prostitutas sejam exploradas, espancadas ou maltratadas.
Outro direito que muitas vezes também entra em conflito se refere à propriedade. Temos aí duas formulações. É importante realçar que o direito à propriedade é um direito universal. Quando o Movimento dos Sem Terra reivindica terras, está reivindicando o direito à propriedade, direito esse do qual são titulares todos, tanto os que têm quanto a maioria que não tem propriedade. Por outro lado, o direito de propriedade é o direito da propriedade existente, um direito não universal, da ordem do privilégio, e que nega o primeiro, o direito do sem-terra a ter o mesmo que os com-terra.
O que é importante é termos noção de que muitos dos conflitos que ocorrem hoje são expressos, por um e por outro lado, na linguagem dos direitos humanos. Isso tem um lado muito bom: estamos tão imbuídos dos direitos humanos que até para os enfrentar se faz uso deles.
O grande exemplo que vejo nisso são os programas do apresentador Ratinho, o ex-deputado Carlos Massa. Aos olhos dos militantes de Direitos Humanos, Ratinho é o emblema mais nítido contra os referidos direitos (ele e o político paulista Paulo Salim Maluf, que também costuma falar contra os militantes desse tema). No entanto, se vemos bem o Programa do Ratinho, notamos que ele é contra os direitos humanos numa acepção precisa: a do direito, que tem o cidadão, de ter sua inocência presumida em face das ações policiais. Esse é o ponto em que o Ratinho é contra os direitos humanos. Ele defende uma polícia repressiva, que eventualmente não faça muitas perguntas... Essa visão é muito conservadora, errada. Mas, por outro lado, quando Ratinho coloca casais em cena, geralmente toma o partido da mulher contra o marido opressor. E isso é engraçado, porque obviamente a questão das mulheres afeta pelo menos metade da população, senão toda ela, ao passo que a questão da pessoa em face da polícia afeta, na prática, muito menos gente (mesmo que, em princípio, possa afetar também a todos).
O que quero dizer é que mesmo uma figura pública extremamente contrária aos direitos humanos na concepção dos militantes, de uso corrente, acaba tendo que aderir a outra concepção de direitos humanos. O que isso implica? Que, hoje, é muito difícil se sair do universo dos direitos humanos. O que os militantes devem fazer no caso do Ratinho é, para além de apontar suas falhas, mostrar que existem direitos humanos outros que não apenas os em face da polícia. Infelizmente parece que parte dos militantes dos direitos humanos, talvez por uma série de acasos, se confinou na questão da violência policial. E com isso se fica com uma falsa impressão, que eu também já tive, segundo a qual os direitos humanos são impopulares. Essa é uma leitura superficial, à primeira vista; com efeito, o discurso dos direitos humanos parece só persuadir quem já está convencido; mas, se cavarmos mais fundo, veremos que, por vezes, estamos dando à opinião pública uma visão errada, porque parcial, dos direitos humanos, como se estes fossem os do outro ameaçador (o criminoso), e não os de todos nós.
É fundamental deixar bem claro que os direitos humanos estão presentes, sobretudo, na questão da igualdade dos sexos, penso eu que o ponto mais visível da nossa sociedade. Salientando isso, acredito que possamos conquistar para a causa dos direitos humanos muitas pessoas que são céticas em relação a ela, que não percebem que não dá para defender uma parte dos direitos humanos sem defender as outras. Como antes afirmei, constatamos alguns conflitos entre os direitos humanos, mas devemos ter como meta a construção deles como um todo integrado, e assim, se tomarmos os aspectos em que eles são fortes e têm a simpatia popular, teremos condições de promover avanços importantes junto aos pontos que estão menos claros para o público em geral. Para tanto, é essencial termos claro que os direitos não podem ser entendidos apenas como liberdades – no sentido privado do termo – das quais se faz ou não uso, como se fossem bens sobre os quais temos direito de uso, de fruto e de abuso, ou seja: de alienação e destruição. Os direitos humanos estão ligados a uma idéia de liberdade que inclui, também, o dever de lutar por ela. E no caso dessa prática, isso implicaria diálogo, vivenciar os conflitos, aprender a lidar com eles, trazê-los para os locais de trabalho, para as relações pessoais.
Na escola e na universidade, é muito importante compreender o que está do outro lado da fronteira. Anos atrás, quando eu estava no Conselho Deliberativo do CNPq, foi discutida uma noção de beneficiário da pesquisa, do auxílio de pesquisa. O beneficiário geralmente é a pessoa cujo CPF está lá e que recebe o dinheiro em sua conta. Começou a surgir uma outra ideia, que naquela época acabei propondo que fosse identificada sob o nome de beneficiário social da pesquisa, que é aquele para quem vai reverter a qualidade da pesquisa. Por exemplo, numa pesquisa sobre vacina, serão as comunidades que se protegerão de determinadas doenças quando puderem ser vacinadas contra elas. A questão é: quando formamos um aluno na graduação, na pós-graduação ou para uma vida de pesquisa, é preciso ter em mente em que isso resulta. Não se trata de tornar as coisas mesquinhamente utilitárias, mas de ter noção de “para que isso está revertendo?”. O que significa determinado ato, qual resultado ele vai trazer socialmente: esse tipo de preocupação nós temos muito pouco, no Brasil.
Deveríamos aumentar a preocupação de saber em que alguma coisa vai reverter. Isso está ligado ao que eu chamo quebra de fronteiras. Se nós, dentro da universidade, tivermos a capacidade de parar de pensar em universidade e sociedade como opostas ou até mesmo como diferentes, e começarmos a discutir que tipo de ligações, de complexidades, de trabalhos conjuntos há ou pode haver entre elas, daremos certos saltos que faltam. Isso muitas vezes tem efeito até na qualidade da pesquisa. O fato de não se dar a devida atenção à sociedade ambiente, por vezes, deteriora a qualidade da pesquisa, porque a pesquisa acaba pensada mais em termos de um mundo ideal do que dos desafios reais que estão diante dela e de nós.
Há o óbvio: nós, vivendo numa sociedade das vítimas da desigualdade social – da desigualdade social intensa, de miséria –, temos de pensar em termos de responsabilidade social. Os currículos universitários têm de levar em conta isso. Não se trata de cortar cursos ou áreas, mas, se uma pessoa escolhe uma especialidade da Medicina mais voltada para as camadas mais ricas da população, deve ficar muito claro, para todos, e até de público, se for numa universidade pública, que ela está fazendo essa escolha. Não devemos tornar fácil, moralmente, essa escolha. Porque não se trata de uma escolha de direito ou foro privado, pois quem a toma é uma pessoa que está sendo paga pela sociedade para estudar de graça.
Também vejo uma mudança grande na Saúde nos últimos anos. Até um tempo atrás, a Saúde era vista como a tentativa de eliminar males, levando o corpo a um estado de bem-estar que seria basicamente um grau zero de mal estar. A saúde parecia ser entendida como ausência, negação da doença. Mas, de um tempo para cá, surgiu uma nova ideia de saúde, na qual se anseia por mais, e não só por zero. A Medicina Ortomolecular ofereceu isso, as hiperdoses de vitamina também. Quando fui operado da miopia, o médico falou em “curar a doença”; achei curioso, porque sei que outros oftalmologistas, como meu primo Fabio Guimarães Lobo, consideram que a miopia ou o astigmatismo não são doenças, mas uma forma de ser que traz incômodos, sim, mas não constitui uma moléstia; ou seja, está havendo uma oferta na Medicina de não apenas reduzir a zero o mal-estar, mas de promover, ativamente, o bem-estar. O Prozac, o Xenical, o Viagra, além das vitaminas que permitem a nossos filhos serem maiores que nós, que permitem a nossos filhos e netos terem uma expectativa de vida maior que a nossa... tudo isso vai numa direção diferente da que até um tempo atrás era a linha principal da Medicina. E essa linha tem trazido muito dinheiro, não é inocente. Traz muito dinheiro e enormes vantagens para quem a cultiva. A discussão social e política disso é fundamental.
Por um lado, são avanços incríveis na área de Saúde, que temos de aplaudir. Por outro, precisamos entender bem o que isso significa. Não se trata de defender um ideal de Medicina mais modesto. O surgimento prometéico de uma Medicina mais ambiciosa em termos de resultados é muito bom. Contudo, a grande questão que se coloca hoje é: como se faz a apropriação social desses resultados. Será um desafio para os estudantes, os futuros médicos e para a sociedade como um todo, na medida em que o corpo das pessoas está em jogo – o corpo e a psique. À medida que essas novas formas de tratamento tiverem êxito vai ser cada vez mais discutido quem tem direito a isso. Podemos chegar a uma sociedade dividida em corpos de rico e corpos de pobre. Corpos bem esculpidos, saudáveis, quem sabe até acompanhados de uma psique mais feliz, versus corpos e psiques infelizes por questão de dinheiro. Na profissão médica, essa questão talvez seja decisiva, nos próximos anos. Como fazer para que o valor da igualdade prevaleça sobre as tendências de uma sociedade capitalista selvagem, sobre uma desigualdade tão grande? Temos níveis de Educação muito diferentes. É mais óbvia a desigualdade na Educação entre uma escola boa – geralmente particular – e uma escola ruim, infelizmente muitas vezes pública. Mas o que está acontecendo na Saúde talvez deixe marcas mais fortes, porque são marcas que passam pelo corpo. Na Educação, ainda é possível reverter a diferença, até porque há constantemente uma ascensão social de gente pobre, mas inteligente, dedicada, que sempre, até nas sociedades mais desiguais, consegue entrar na elite. Mas, se tivermos corpos tratados desde muito cedo de maneiras diferente, estaremos perto do mundo terrível que Aldous Huxley descreve no Admirável Mundo Novo, em que desde o feto ou embrião já são programadas as pessoas para destinos distintos. Esse é o desafio principal, que tenho visto muito pouco tratado. Não vi ser discutida essa questão que para mim, hoje, é a crucial da Medicina. Promete-se uma vida sexual exuberante, corpos magros mesmo comendo gordura, alegria mediante medicamentos, vista sem óculos. Quando meu filho estava para nascer, ouvi uma mulher dizer que estava achando tão incômoda a gravidez que, se fosse ter outro filho, ela pensava em alugar uma barriga. E dizia isso a sério! É levar a desigualdade social, a contratação, a manipulação do outro pelo dinheiro, muito longe. Numa sociedade com tantos miseráveis, certamente ela encontraria uma mulher que aceitasse ser paga para isso. É errado. Ninguém deve ser forçado pela miséria a se prostituir, a alugar a barriga ou fazer inúmeras profissões que estão no limite da indignidade, como acontece aqui. Incluo nesse limite até mesmo as pessoas que distribuem propaganda de prédio na rua. É um desmerecimento precisar ter esse tipo de trabalho, precisar pedir esmola. Por sinal, às vezes escolhem garotas esculturais para isso. E a coisa piora, quando os corpos são montados desigualmente e quando isso é aceito. Esse ponto deve exigir muita atenção dos médicos e futuros médicos: pensar o que a profissão deles está fazendo para reduzir – ou, ao contrário – para aumentar a desigualdade social.
A questão é ambígua. Penso que é muito positivo os pobres, os miseráveis, não aceitarem mais a desigualdade social como ela é. Isso é muito bom e está crescendo. Quando fui morar na França, há trinta anos, um dia uma amiga me mostrou a carta que tinha recebido da empregada da família dela, que trabalhava para eles há vinte, trinta anos. A empregada tinha chorado a noite toda quando soube que a filha do patrão estava morando num quartinho pequeno, sem banheiro dentro, e colocou à disposição todas as economias da vida toda dela — empregada — para a filha do “sinhô” morar melhor. É bonito humanamente, é horrível socialmente. Esse tipo de aceitação da desigualdade social está desaparecendo e isso é muito bom.
Hoje, uma mulher que trabalhou a vida toda não vai simplesmente usar suas economias para isso. Vai querer casar, deixar para a família, comprar uma televisão ou se vestir bonito. Passamos a ter essas afirmações em si que, numa sociedade de massa, são a tradução da ideia de igualdade: sou igual a você, por que tenho de me vestir pior? Por que não posso ter prazer no vestir-me, no comer? Isso é muito positivo.
Mas, desde que o capitalismo praticamente venceu por nocaute o comunismo, ele não faz concessões ao trabalho, o que deixa a situação do trabalhador – sobretudo a do desempregado – precária. Por um lado, temos um desejo cada vez mais generalizado das bênçãos que o capitalismo fornece em termos de bens de consumo e dos valores cidadãos. Por outro lado, as condições de realizar isso na prática estão muito restritas. Temos dois fios puxados em direção contrária: um desejo crescente por bens (em todos os sentidos, tanto propriedades como coisas boas), mas também sua inviabilização na prática, porque, quando se mantém na grande São Paulo um desemprego da ordem de 1/6 da população ativa, é assustador. As pessoas vêm TV e não têm como saciar os desejos que são instigados nelas pelos programas e pelos comerciais da televisão. Isso torna o déficit de cidadania preocupante e é uma das causas do nível de violência na sociedade, independentemente da resposta tosca “a pessoa rouba porque não tem dinheiro, porque não tem trabalho”.

Não é isso. A pessoa se torna agressiva – mesmo que nunca o expresse, mas a agressividade dela cresce – porque o descompasso entre o desejo e as condições de sua realização é intransponível. Cria-se um abismo na psique das pessoas. Resultado: ela pode nunca roubar, mas será áspera, talvez arruíne seu casamento, construirá relações péssimas com seu entorno porque constatar esse abismo a torna agressiva. Daí, ser fundamental construirmos condições para que esses desejos sejam passíveis de alguma realização. Estamos diante de um processo que já tem dez, doze anos, desde o triunfo neoliberal. Como será nos próximos anos? Seremos capazes de construir na América do Sul alternativas que realizem os direitos humanos, que reduzam esse descompasso – ou vamos acirrar as tensões? Estamos diante de opções de civilização e é difícil saber; se Bush perder as eleições daqui a dois anos, o mundo vai ser um ou outro; e, dependendo do candidato que ganhar no Brasil, nosso cenário pode mudar muito, ou não.

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