sábado, 15 de abril de 2017
Possibilidades de ação educativa de cunho interdisciplinar na escola
Teoria da ação
comunicativa de Habermas: Possibilidades de uma ação educativa de cunho
interdisciplinar na escola
Maria Augusta Salin Gonçalves
Professora
do Programa de Mestrado em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
Unisinos.
RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar
e discutir condições teórico-práticas da execução de um projeto de ação
educativa de cunho interdisciplinar na escola, tendo como base a teoria da ação
comunicativa de Jürgen Habermas. Inicialmente, apresentamos aspectos
significativos dessa teoria. A seguir, apresentamos linhas norteadoras que
adotamos como ponto de partida e suporte da pesquisa-ação, e que fornecem
também as categorias para análise e interpretação da experiência.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade, teoria da ação
comunicativa, comunicação, linguagem
Pode-se
afirmar que, de maneira geral, é grande a preocupação dos educadores com a
atomização do conhecimento existente nos currículos escolares, que produz uma
visão fragmentada do real, desvinculada de um contexto histórico e distanciada
da realidade na qual o aluno vive. Educadores, sociólogos e epistemólogos têm
analisado essa questão sob diferentes perspectivas e trazido importantes
contribuições no que diz respeito à interdisciplinaridade, visualizando-a como
uma possibilidade de superação dessa fragmentação do conhecimento, tanto em
nível de currículo como de pesquisa (Etges 1993; Fazenda 1991 e 1994; Freitas
1989; Frigotto 1993; Jantsch e Bianchetti 1995; Japiassu 1976; Lück 1994;
Severino 1995; Siebeneichler 1989; entre outros).
Neste
artigo, pretendo abordar essa questão na perspectiva do currículo na escola
básica, cujos objetivos são anunciados no sentido de formar cidadãos que
participem ativa e criticamente do processo cultural de sua época histórica.
Parece-me pertinente colocar aqui a questão: Como possibilitar ao aluno
condições de participação ativa e crítica, em uma estrutura escolar que em si
mesma é fragmentada e destituída de vinculação com a vida concreta e com os
problemas de sua época histórica?
Por
outro lado, essa estrutura curricular gera um isolamento entre os professores,
ficando cada um fechado na sua disciplina, pouco comunicando-se com os colegas
a respeito dos problemas educacionais em geral e dos relativos aos seus alunos
em particular.
Não
pretendo, neste artigo, deter-me na crítica à escola dividida em diferentes
disciplinas com programas específicos e conteúdos determinados desde cima, mas,
sim, refletir sobre as possibilidades de, dentro das condições atuais de
ensino, minorar as consequências da fragmentação dos currículos escolares e das
condições de isolamento do professor.
Com
o objetivo de buscar uma alternativa para maior integração da prática
educativa, apresento algumas reflexões sobre as possibilidades de uma ação
educativa de cunho interdisciplinar na escola, apontando fundamentos
teórico-práticos que deem suporte a essa ação e, ao mesmo tempo, forneçam as
categorias para a análise e a avaliação.
Para
fundamentar uma ação educativa de cunho interdisciplinar, encontramos ideias
norteadoras na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, que passarei a
abordar em primeiro lugar, destacando os aspectos mais significativos para
nossa proposta. Finalizando, procuro refletir sobre algumas questões básicas
relacionadas à realização de um projeto de ação interdisciplinar na Escola,
discutindo os seus fundamentos com base na teoria da ação comunicativa.
Esta
proposta não pretende se constituir em uma aplicação mecânica da teoria da ação
comunicativa de Habermas em uma situação empírica da área pedagógica. A minha
intenção é buscar, nessa teoria, subsídios para fundamentar e orientar uma ação
interdisciplinar que tenha como como base uma interação dialógica, sem perder,
no entanto, a vinculação com a totalidade do pensamento desse autor.
Teoria
da ação comunicativa
Jürgen Habermas (1929) é um filósofo e sociólogo alemão
contemporâneo, que tem seu nome associado à Teoria Crítica da Escola de
Frankfurt, cujos principais representantes são Adorno (1903-1969), Marcuse
(1898-1979), Horkheimer (1895-1973) e Benjamin (1892-1940). Não obstante as
diferenças de pensamento desses filósofos, um tema perpassa a obra de todos
eles: a crítica radical à sociedade industrial moderna.
Com
o processo de modernização passou a prevalecer nas sociedades industriais uma
forma de racionalidade: a racionalidade instrumental. Essa racionalidade
define-se pela relação meios-fins, ou seja, pela organização de meios adequados
para atingir determinados fins ou pela escolha entre alternativas estratégicas
com vistas à consecução de objetivos.
Habermas
partilha dessa crítica. Não permanece, no entanto, no momento da negatividade,
mas tenta salvar a razão da perplexidade e do pessimismo. Ao repensar a ideia
de razão e racionalização, Habermas busca superar as oposições que transpassam
a cultura contemporânea, que, como resume McCarthy, são: "modernidade versus pós-modernidade, racionalismo versus relativismo, universalismo versus contextualismo, subjetivismo versus objetivismo, humanismo versus `morte do homem', etc." (1996,
p.10).
Habermas
busca superar o conceito de racionalidade instrumental, ampliando o conceito de
razão, para o de uma razão que contém em si as possibilidades de reconciliação
consigo mesma: a razão comunicativa. Discutiremos a seguir esses dois conceitos
básicos no pensamento de Habermas.
Racionalidade
instrumental e racionalidade comunicativa
Em suas análises a respeito da sociedade capitalista moderna, Max
Weber (1864-1920) introduz o conceito de "racionalização" para
descrever o processo de desenvolvimento existente nas sociedades modernas. Esse
processo caracteriza-se pela ampliação crescente de esferas sociais que ficam submetidas
a critérios técnicos de decisão racional, isto é, a critérios de adequação e
organização de meios em relação a determinados fins, como, por exemplo,
acontece na urbanização das formas de existência, na tecnificação do tráfego e
da comunicação. O planejamento e o cálculo foram tornando-se, cada vez mais,
partes integrantes de procedimentos envolvendo questões administrativas.
A
transformação pela qual passaram as sociedades industriais nesse processo de
modernização, ou seja, de racionalização da ação social, está diretamente
associada às formas de desenvolvimento do trabalho industrial na sociedade
capitalista, que expandiram os procedimentos e a racionalidade a eles inerente
para outros setores do âmbito da vida social. O desenvolvimento industrial, por
sua vez, está estreitamente vinculado ao progresso da ciência e da técnica.
Em
suas análises, Max Weber, Adorno e Horkheimer (1986) e, mais tarde, Marcuse
(1982) fazem uma crítica radical à racionalidade científica, que, entendida
como neutra em relação a valores, afastou do exame da razão, como subjetivas e
irracionais, todas as questões sociais que não podiam ser resolvidas na
perspectiva da relação meio-fins, e que fugiam do âmbito das questões relativas
à economia e à eficácia dos meios.
Para
esses autores, a ciência e a técnica, ao visarem o domínio da natureza e a sua
submissão ao homem, já trazem em si o germe da dominação. Abstraindo de toda a
discussão em torno da questão de valores, esse tipo de racionalidade traz em
seu bojo uma forma de dominação política que não lhe é imposta de fora, mas
habita o seu interior, e já está presente no processo de sua própria
construção.
Habermas
não se posiciona radicalmente contra a racionalidade instrumental da ciência e
da técnica em si mesmas, na medida em que essas contribuem para a
autoconservação do homem. Habermas considera que o trabalho, pela sua essência
de dominar a natureza para pô-la a serviço do homem, possui uma racionalidade
do mesmo tipo da racionalidade da ciência e da técnica, isto é, uma
racionalidade que consiste na organização e na escolha adequada de meios para
atingir determinados fins (1987d).
Para
ele, a ciência e a técnica ampliam as possibilidades humanas, libertando o
homem do jugo das necessidades materiais, sendo o desenvolvimento da espécie
humana resultado de um processo histórico de desenvolvimento tecnológico,
institucional e cultural, processos que são interdependentes.
Habermas
posiciona-se radicalmente contra a universalização da ciência e da técnica,
isto é, contra a penetração da racionalidade científica, instrumental, em
esferas de decisão onde deveria imperar um outro tipo de racionalidade: a
racionalidade comunicativa.
Ao
examinar essa questão, Habermas (1987d) distingue dois âmbitos do agir humano
contidos no conceito de Marx de "atividade humana sensível", que são
interdependentes, mas que podem ser analisados separadamente: o trabalho e a
interação social. Por "trabalho" ou "ação racional
teleológica", Habermas entende o processo pelo qual o homem emancipa-se
progressivamente da natureza. Por "interação", Habermas entende a
esfera da sociedade em que normas sociais se constituem a partir da convivência
entre sujeitos, capazes de comunicação e ação. Nessa dimensão da prática
social, prevalece uma ação comunicativa, isto é, "uma interação
simbolicamente mediada", a qual se orienta "segundo normas de vigência obrigatória que definem as expectativas recíprocas
de comportamento e que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por
dois sujeitos agentes" (1987d, p. 57).
Na
moderna sociedade industrial, esses dois âmbitos da prática social sofreram
grandes transformações, que estão na raiz dos inúmeros problemas com que nos
defrontamos na época atual.
O
desenvolvimento do conhecimento científico e técnico, ao propiciar o
crescimento e o aperfeiçoamento das forças produtivas, provê o sistema
capitalista de um mecanismo regular que assegura a sua manutenção. Desta forma,
"se institucionaliza a introdução de novas tecnologias e de novas
estratégias", isto é, "institucionaliza-se a inovação enquanto tal", cumprindo a
ciência e a técnica o papel de legitimar a dominação (Habermas 1987d, p. 62).
Com
o crescimento das forças produtivas, modificaram-se as atribuições do Estado. A
empresa passou, de forma crescente, a intervir no planejamento da vida
econômica, direcionando decisões que anteriormente cabiam à esfera social, e
assumindo atribuições que eram tradicionalmente da competência dos aparelhos do
Estado. Este, por sua vez, passou a intervir diretamente na economia, assumindo,
no capitalismo contemporâneo, a função de preservar as relações de produção,
submetendo-se às determinações do capital global, com o qual busca conciliar os
interesses nacionais.
Procurando
compensar as disfunções do sistema capitalista, as sociedades industriais
desenvolvidas adotaram o Estado de Bem-estar, que busca proporcionar à
população condições de educação, saúde, habitação e trabalho. Promovendo à
população segurança social e oportunidades de promoção pessoal, esse programa
estatal pretende garantir, ao mesmo tempo, "a forma privada de
revalorização do capital" (1987d, p. 70).
A
esfera política, passando a orientar-se para a prevenção das disfuncionalidades
do sistema, se enfraquece em sua função de ser espaço de discussão a respeito
da realização de fins éticos de convivência social, atendendo a interesses
coletivos. A política passou dessa forma a ocupar-se mais com a solução de
problemas técnicos do que com questões que dizem respeito à interação social e
cuja busca de soluções envolve o diálogo, tais como justiça, liberdade, poder,
opressão, satisfação, violência, etc.
O
Estado contemporâneo está cada vez mais submetido aos mecanismos financeiros,
ocupando-se de forma crescente com questões de ordem técnica, perdendo as
instituições, como, por exemplo, o direito, a economia e a política, ao longo
desse processo, a ligação com os fins para os quais foram criadas. Temos,
assim, um Estado que, por um lado, se vê subtraído de parte de suas funções
sociais primordiais e, por outro, na ampliação crescente de subsistemas de
"ação racional com respeito a fins", se vê submerso numa
administração burocrática que, imbuída de uma racionalidade instrumental,
pretende dotá-lo de eficácia na gestão dos problemas sociais.
Na
medida em que a racionalidade instrumental da ciência e da técnica penetra nas
esferas institucionais da sociedade, transforma as próprias instituições, de
tal modo que as questões referentes às decisões racionais baseadas em valores,
ou seja, em necessidades sociais e interesses globais, que se situam no plano
da interação, são afastadas do âmbito da reflexão e da discussão. A
racionalidade instrumental, na trajetória de ampliação de seu campo de atuação,
substituiu de forma crescente o espaço da interação comunicativa que havia
anteriormente no âmbito das decisões práticas que diziam respeito à comunidade.
Dessa forma, caem por terra as antigas formas ideológicas de legitimação das
relações sociais de poder. Com esse tipo de racionalidade não se questiona se
as normas institucionais vigentes são justas ou não, mas somente se são
eficazes, isto é, se os meios são adequados aos fins propostos, ficando a
questão dos valores éticos e políticos submetida a interesses instrumentais e
reduzida à discussão de problemas técnicos.
A
causa dos graves problemas da sociedade industrial moderna, para Habermas, não
reside no desenvolvimento científico e tecnológico como tal, mas, sim, na
unilateralidade dessa perspectiva como projeto humano, que deixa de lado a
discussão sobre questões vitais em torno das quais uma sociedade decide o rumo
da sua história.
A
subjetividade do indivíduo não é construída através de um ato solitário de
autorreflexão, mas, sim, é resultante de um processo de formação que se dá em
uma complexa rede de interações. A interação social é, ao menos potencialmente,
uma interação dialógica, comunicativa. A penetração da racionalidade
instrumental no âmbito da ação humana interativa, ao produzir um esvaziamento
da ação comunicativa e ao reduzi-la à sua própria estrutura de ação, gerou, no
homem contemporâneo, formas de sentir, pensar e agir ¾ fundadas no individualismo, no
isolamento, na competição, no cálculo e no rendimento ¾,
que estão na base dos problemas sociais.
Como
uma possibilidade de transformação da sociedade contemporânea na busca de
solução para os graves problemas que assolam a humanidade, Habermas visualiza o
resgate de uma racionalidade comunicativa em esferas de decisão do âmbito da
interação social que foram penetradas por uma racionalidade instrumental.
Tendo
em vista que o homem não reage simplesmente a estímulos do meio, mas atribui um
sentido às suas ações e, graças à linguagem, é capaz de comunicar percepções e
desejos, intenções, expectativas e pensamentos, Habermas vislumbra a possibilidade
de que, através do diálogo, o homem possa retomar o seu papel de sujeito.
A
sociedade brasileira vive um momento de profunda crise. A ideologia do
neoliberalismo, desencarregando o Estado da sua responsabilidade social, e a
rápida capitalização externa do país trazem consigo inúmeros custos sociais.
Convivemos diariamente com a violência, a miséria e o desemprego, e, muitas
vezes, um sentimento de perplexidade e impotência nos invade.
As
condições sociais, no entanto, não são estáticas nem imutáveis, pois são o
resultado de um processo histórico.
Como
educadores precisamos acreditar em possibilidades de mudança, e, no âmbito de
nossa ação profissional, tentar abrir espaços para a emergência de uma nova
racionalidade, que favoreça a reconstrução da sociedade e a reinvenção da
cultura. Esse processo somente será viável no desenvolvimento de uma ética de
responsabilidade social, que embase ações que visem ao bem coletivo, isto é,
que tenham por objetivo a criação de possibilidades de vida a todos, incluindo
as gerações futuras.
Nessa
perspectiva, a escola apresenta-se como o espaço onde uma ação comunicativa, ao
ser desenvolvida sistematicamente, coincide com os objetivos de uma educação
que visa à formação de indivíduos críticos e participativos.
Ação
comunicativa
Com sua teoria, Habermas pretende mostrar que as ideias de
verdade, liberdade e justiça inscrevem-se de forma quase transcendental nas
estruturas da fala cotidiana (Horster 1988).
As
comunicações que os sujeitos estabelecem entre si, mediadas por atos de fala,
dizem respeito sempre a três mundos: o mundo objetivo das coisas, o mundo
social das normas e instituições e o mundo subjetivo das vivências e dos
sentimentos. As relações com esses três mundos estão presentes, ainda que não
na mesma medida, em todas as interações sociais.
Em
primeiro lugar, as pessoas, ao interagirem, coordenam suas ações. Do conhecimento que elas
partilham do mundo objetivo depende o sucesso ou o insucesso de suas ações
conjuntas, sendo que a violação das regras técnicas conduz ao fracasso. Em
segundo lugar, as pessoas interagem orientando-se
segundo normas sociais que já
existem previamente ou que são produzidas durante a interação. Essas normas
definem expectativas recíprocas de comportamento, sobre as quais todos os
participantes têm conhecimento. Esse tipo de ação não é avaliada pelo seu
êxito, mas pelo reconhecimento intersubjetivo e pelo consenso valorativo, sendo
que sua violação gera sanções. Em terceiro lugar, em todas as interações as
pessoas revelam algo de suas
vivências, intenções, necessidades, de seus temores etc., de tal modo que
deixam transparecer sua interioridade. Embora as pessoas, em maior ou menor
grau, possam controlar as manifestações de suas vivências subjetivas, das suas
ações podem-se tirar conclusões a respeito da sua veracidade.
A
cada um desses mundos correspondem diferentes pretensões de validade. Ao mundo
objetivo correspondem pretensões de validade referentes à verdade das
afirmações feitas pelos participantes no processo comunicativo. Ao mundo social
correspondem pretensões de validade referentes à correção e à adequação das
normas, e ao mundo subjetivo ¾ das vivências e sentimentos ¾ correspondem pretensões de
veracidade, o que significa que os participantes do diálogo estejam sendo sinceros
na expressão dos seus sentimentos.
No
que diz respeito tanto à coordenação de ações, como às avaliações éticas e às
manifestações subjetivas, a linguagem ocupa um papel fundamental. A legitimação
dos valores ¾ verdade, correção normativa e veracidade ¾,
que toda a ação comunicativa pressupõe, não é alcançada por uma racionalidade
meio-fim, mas somente pela argumentação em função de princípios reconhecidos e
validados pelo grupo.
Habermas
propõe um modelo ideal de ação comunicativa, em que as pessoas interagem e,
através da utilização da linguagem, organizam-se socialmente, buscando o
consenso de uma forma livre de toda a coação externa e interna.
Vinculado
ao modelo da ação comunicativa, Habermas apresenta a situação linguística
ideal: o discurso. Para Habermas, discurso (Diskurs) refere-se a uma das formas
da comunicação ou da "fala" (Rede), que tem por objetivo fundamentar
as pretensões de validade das opiniões e normas em que se baseia implicitamente
a outra forma de comunicação ou "fala", que chama de "agir
comunicativo" ou "interação". O discurso ¾ teórico ou prático, conforme se
refira a pretensões de validade de opiniões ou de normas sociais ¾ no sentido de Habermas possui um
aspecto intersubjetivo,
que serve para classificá-lo como uma espécie do gênero
"comunicação", e um lógico-
argumentativo, que serve para determiná-lo como caso específico da
fundamentação de pretensões de validade problematizadas (Almeida 1989).
Assim
como o modelo de comunicação ideal constitui-se na utopia de um processo de
comunicação e remete a uma ordem social ainda não existente, a situação
linguística ideal constitui-se no telos de um discurso, que seria perfeito se
existissem condições ideais de realização (Freitag 1980). Sendo assim, esses
dois modelos se constituem em utopias, que todavia devem ser pressupostas como
reais, para que possa se efetivar qualquer comunicação. Ao mesmo tempo, esses
modelos fornecem os elementos para uma crítica das formas concretas de
interação e discurso, constituindo-se em uma antecipação dessas.
O
processo de comunicação que visa ao entendimento mútuo está na base de toda a
interação, pois somente uma argumentação em forma de discurso permite o acordo
de indivíduos quanto à validade das proposições ou à legitimidade das normas.
Por outro lado, o discurso pressupõe a interação, isto é, a participação de
atores que se comunicam livremente e em situação de simetria.
Possibilidades
educacionais da ação comunicativa em um projeto de ação interdisciplinar
A teoria da ação comunicativa de Habermas tem sido, sob diferentes
perspectivas, fonte inspiradora de reflexões em torno de questões educativas
(Schäfer 1982; Pucci et alii.
1994; Freitag 1986; Flecha 1996; Peukert 1996; Prestes 1996; entre outros).
Neste
item, pretendo tecer algumas considerações a respeito das possibilidades de a
teoria da ação comunicativa de Habermas oferecer ideias norteadoras para a
realização de um projeto interdisciplinar na Escola, na medida em que fornece
as bases para uma comunicação que visa ao entendimento mútuo.
Tratando-se
de um projeto pedagógico, creio que é oportuno anteriormente explicitar os
conceitos de educação e interdisciplinaridade que embasam as nossas reflexões e
nossas ações pedagógicas. Penso a educação
(...)
como uma instituição social e histórica, que tem como fim gerar transformações
tanto em nível das consciências individuais, como em nível mais amplo, da
sociedade. Trazendo em seu bojo a concepção do homem na dimensão da práxis -
como um ser capaz de refletir sobre a realidade e nela atuar, ao mesmo tempo
que esta atua sobre ele transformando-o -, a Educação é vista aqui como uma
possibilidade, ainda que limitada por condicionantes históricos (e justamente o
desvelamento desses condicionantes históricos é que possibilita o pensamento de
transformação), de uma ação transformadora, buscando modificar as condições
desumanizantes da sociedade industrial contemporânea e, em especial, da
sociedade brasileira. (Gonçalves 1996, p. 170)
Em
meu livro "Sentir, pensar, agir ¾ Corporeidade e educação (1994, 1997),
embora não me aprofunde na teoria de Habermas, já assinalo, na proposta dessa
teoria de recuperação da ação comunicativa no âmbito das decisões
político-culturais, o seu valor pedagógico, de se constituir em base de
fundamentação para a definição de "objetivos educacionais que situam a
capacidade de diálogo no centro das decisões comunitárias" (p. 131).
Em
estreita relação de interdependência com os objetivos educativos de formação de
cidadãos críticos e participativos estão os objetivos diretamente ligados ao
exercício do diálogo e ao desenvolvimento da competência comunicativa.
A
proposta de ação educativa de cunho interdisciplinar na escola, que pretendemos
desenvolver em uma pesquisa-ação, tem como base um processo de interação
comunicativa, em que os professores buscam conjuntamente coordenar e justificar
ações pedagógicas, a partir da troca de conhecimentos e enfoques, inerentes a
cada disciplina, partilhando e planejando experiências integradas.
Nesse
contexto, uma ação educativa
de cunho interdisciplinar se
constitui no esforço conjunto de professores de uma série do currículo escolar
no sentido de estabelecer diálogo na busca de um eixo de articulação entre suas
disciplinas, de modo a possibilitar aos alunos experiências em que eles possam integrar
os diferentes enfoques disciplinares, enriquecendo sua compreensão da realidade
concreta.
Para
a consecução dessa ação, em primeiro lugar me parece necessário que os
professores cheguem a um consenso a respeito das regras que vão reger as
discussões e as participações dos elementos do grupo, fundamentando e
justificando essas regras.
Para
que os participantes alcancem um consenso verdadeiro, é também fundamental que
cheguem a um entendimento sobre questões de cunho filosófico e pedagógico, que
estão na base de uma ação comunicativa de cunho interdisciplinar. Essas
questões referem-se, primeiramente, a concepções de educação e conhecimento.
Pensamos que seja impossível chegar a um consenso real, se os participantes não
partilharem de concepções básicas comuns, ou se ao menos não tiverem claramente
explicitadas as concepções de todos.
Estabelecidas
as regras de discussão e argumentação, essas poderão ser modificadas, no
decorrer das sessões, por decisão do grupo. Um processo de ação comunicativa
deve ter em seu bojo um princípio de não-dominação, na medida em que se buscam
a participação de todos os elementos do grupo e o consenso em relação às
próprias regras que vão orientar as discussões.
Para
que o entendimento funcione como mecanismo coordenador da ação, é necessário
que os participantes na interação ponham-se de acordo acerca da validade que pretendem para suas emissões ou
manifestações, isto é, que reconheçam intersubjetivamente as pretensões de validade com que
se apresentam diante dos outros. Essas pretensões de validade podem ser
reconhecidas ou questionadas (Habermas 1987b).
As
três pretensões de validade que o ator tem que colocar explicitamente com sua
manifestação, conforme já anunciamos anteriormente, são:
•
que o enunciado seja verdadeiro (verdade);
•
que a manifestação seja correta em relação ao sistema de normas vigente ou que
o próprio contexto normativo seja legítimo (legitimidade ou retidão);
•
que a intenção expressa coincida com a intenção do falante (veracidade).
O
consenso, ou seja, o acordo alcançado comunicativamente, se busca
simultaneamente nos três planos e se mede por essas três pretensões de validade
suscetíveis de crítica. Quem rejeita a oferta feita com um ato de fala que foi
entendido questiona pelo menos uma dessas três pretensões.
Com
base nas pretensões de validade, nas reuniões do grupo interdisciplinar, os
participantes, ao tentarem se aproximar da situação ideal da fala, deverão
reunir esforços no sentido de preencher as seguintes condições:
1.
Todos os participantes das discussões têm a mesma chance de se comunicar por
meio de atos da fala, argumentando, questionando e respondendo às questões.
2.
Todos os participantes têm a mesma chance de apresentar interpretações,
opiniões, recomendações, declarações e justificativas e de problematizar sua
validade, fundamentar ou rebater (Widerlegen), de tal modo que nenhuma
ideia preconcebida (Vormeinung) seja ignorada na continuidade da
tematização.
3.
Todos os participantes têm a mesma chance de expressar atitudes, sentimentos e
desejos referentes à sua subjetividade, devendo ser verdadeiros nas suas
manifestações, significando que assim se colocam perante si mesmos e deixam
transparecer sua interioridade.
4.
Os participantes das discussões têm a mesma chance de empregar atos regulativos,
isto é, ordenar e rebelar-se, permitir ou proibir, prometer e aceitar
promessas, dar explicações e solicitá-las. As expectativas de comportamento são
recíprocas e os privilégios, afastados (Horster 1988).
Com
o modelo de ação comunicativa de Habermas, como base para uma ação
interdisciplinar, pressupõe-se que os participantes na interação
intencionalmente mobilizem o potencial de racionalidade que encerram as três
relações do sujeito agente com o mundo, com o propósito de chegarem a um
entendimento.
Definidos
e estabelecidos em consenso as regras de participação e os conceitos básicos
para a construção dos fazeres pedagógicos, em um segundo momento a ação
educativa de cunho interdisciplinar consiste de sessões de comunicação e
diálogo, nas quais o esforço coletivo do grupo se concentra no sentido de
buscar eixos articuladores entre as disciplinas do currículo.
O
objetivo das discussões, neste momento, é encontrar caminhos comuns e
devidamente articulados, para proporcionar aos alunos experiências que lhes
possibilitem construir conhecimentos vinculados à sua vida concreta e que lhes
permitam uma visão crítica da realidade onde estão inseridos, e, ao mesmo
tempo, incentivem sentimentos e pensamentos relacionados a uma participação
ativa nos assuntos comunitários, dentro de princípios éticos de cooperação e
justiça social.
A
direção do processo interativo emerge do próprio grupo e não está sujeita a
convenções predeterminadas, exigindo o esforço de todos no sentido de preencher
os princípios de realização de uma ação comunicativa com as suas pretensões de
validade, e de buscar uma comunicação simétrica, cada vez mais livre e isenta
de coação. Esse esforço tem em seu cerne um princípio ético que se concretiza
em um processo comunicativo no qual cada elemento do grupo é considerado um
parceiro de diálogo, cujas falas são oferecidas à interpretação dos outros, ao
mesmo tempo em que ele abre possibilidades para criticar as próprias
interpretações.
Dessa
forma, o desenrolar do processo é imprevisível, pois a busca de um possível
consenso constitui-se em algo inovador para todos os participantes. No momento,
somente podemos apontar linhas norteadoras, a partir das pretensões de validade
inerentes a uma ação comunicativa. Os princípios e as normas que vão reger essa
ação no grupo de professores e fornecer os critérios para avaliações e
redimensionamentos vão emergir do processo interativo e serão resultados das
discussões do grupo, realizadas visando a um consenso.
A
análise do desenvolvimento desse processo conta com categorias dos atos de
fala, que possibilitam uma compreensão, na perspectiva da teoria da ação
comunicativa de Habermas, do processo interativo e argumentativo que se
manifesta nesses atos. Para o desenvolvimento da competência comunicativa, na
realização da pesquisa, pretendemos atuar no sentido de tentar elevar o nível
de argumentação dos participantes. De forma coerente com essa teoria, a
pesquisa é realizada com a participação efetiva do grupo de professores
participantes da ação interdisciplinar, não somente no direcionamento do
processo, mas também na interpretação e na avaliação do seu desenvolvimento.
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