domingo, 30 de abril de 2017
O modelo comunicativo de Roman Jacobson
Um dos modelos mais utilizados por
professores de português para explicar a comunicação humana nasceu — quem
diria? — na matemática. Tudo começou em 1948, quando o matemático e engenheiro
elétrico Claude Shannon publicou um artigo chamado “Uma teoria matemática da
comunicação”. Shannon era pesquisador dos Laboratórios Bell, ligados à gigante
norte-americana das computações AT&T, e buscava maneiras de tornar mais
eficientes os telégrafos e aparelhos de telefonia da época. Sua grande
preocupação era evitar o ruído, isto é, as interferências que
prejudicavam a perfeita transmissão da mensagem entre um aparelho e outro.
No ano seguinte, a teoria de Shannon
foi publicada em um livro com prefácio de Warren Weaver, outro matemático e
engenheiro. Weaver — que também era um ótimo relações-públicas — enviou um
exemplar da obra a Roman Jakobson, renomado linguista de origem russa que
lecionava na Universidade de Harvard. O linguista ficou fascinado com a nova
teoria e considerou que ela também se aplicava à comunicação humana. Nascia,
assim, a versão mais clássica do modelo comunicativo,
divulgada por Jakobson nos anos 1960 e comunicação humana estão presentes seis
elementos:
De
acordo com esse modelo, em qualquer ato de comunicação humana estão presentes
seis elementos:
· a mensagem —
o conjunto de informações que se quer transmitir;
· o emissor ou remetente —
aquele de quem parte a mensagem;
· o receptor ou destinatário —aquele
a quem se destina a mensagem;
· o código —
um sistema de signos que emissor e receptor precisam compartilhar, total ou
parcialmente, para que haja a comunicação;
· o canal ou contato —
o meio físico pelo qual emissor e receptor se comunicam;
· o referente ou contexto —
o assunto da mensagem, aquilo a que ela se refere.
Assim, por exemplo, se você enviar um
torpedo a um amigo convidando-o para uma festa, a mensagem será o conteúdo do
torpedo, ou seja, o conjunto de palavras que o compõem. O emissor será você, e
o receptor, seu amigo. O código será a língua portuguesa, o canal será o
celular e o referente será a festa, pois é a ela que a mensagem se refere.
Se você preferir fazer o convite
pessoalmente, quase todos os elementos permanecerão inalterados, quase todos os
elementos permanecerão inalterados — exceto o canal, que passará a ser o ar,
pelo qual sua voz se propagará. Vale lembrar, ainda, que, em um evento
comunicativo dinâmico como a conversa face a face, emissor e receptor trocam o
tempo todo de posição, de acordo com aquele que está falando ou ouvindo em cada
momento.
Vamos a outro exemplo, imagine que
você esteja dirigindo por uma estrada e depare com uma placa [com o desenho
de uma ponte em que as metades inclinam liberando o rio para a navegação de
embarcações]. Neste caso, o emissor é o órgão responsável
pelo controle do trânsito, os receptores são você e os demais
motoristas. O canal é a placa em si, o código é
o conjunto dos sinais de trânsito do país e a mensagem —
expressa segundo os símbolos desse código — é “ponte móvel adiante”. Por fim, o referente é
a ponte em questão; não qualquer uma, mas especificamente aquela que se
encontra adiante, na estrada. Observe que se o receptor não conhecer o código
(as placas de trânsito do país), não saberá interpretar a mensagem. Daí termos
afirmado que emissor e receptor precisam compartilhar o código, ainda que
parcialmente.
Adaptado:
GUIMARÃES, Thelma de Carvalho. Comunicação e linguagem. São
Paulo: Pearson, 2012.
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sábado, 29 de abril de 2017
Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche
OS PENSAMENTOS FUNDAMENTAIS
DE NIETZSCHE
Segundo livro
Não há quase uma
realidade sobre a qual Nietzsche não teria dito algo: é possível fazer sínteses
a partir de seus escritos sobre quase todas as coisas grandes e pequenas, sobre
o Estado, a religião, a moral, a ciência, a arte, a música, sobre a natureza, a
vida, a doença, sobre trabalho, homem e mulher, amor, casamento, família, sobre
povos, épocas, história, personalidades históricas, contemporâneos, sobre as
questões derradeiras do filosofar. Essas sínteses podem ter, no caso
particular, um peso maior ou menor; em todo caso, a correta compreensão das
manifestações singulares depende da posse dos traços fundamentais de seus movimentos de pensamento e do saber em
torno dos conteúdos dominantes.
É possível alcançar os traços fundamentais por dois
caminhos: acompanhando a negação
ilimitada e apreendendo o elemento positivo.
Mas já na negação nietzschiana está constantemente presente um envolvimento de
origens positivas, que se comunicam indiretamente no não; inversamente, na
comunicação direta da verdade, está ininterruptamente pronta a contradição, que
insere posições aparentemente as mais absolutas no movimento que vem do
envolvimento; a não ser que Nietzsche permaneça parado contra a sua essência
por um instante em uma fixidez dogmática, que se mostra para ele como uma
ruptura e que, de fato, nunca permanece em parte alguma irrestrita.
Vir do negativo para
o positivo é, para a própria consciência de Nietzsche, o seu problema até o
fim. As coisas não se dão de tal modo que, depois de uma fase da vida meramente
crítica, ele estaria um dia de posse de uma nova crença. O tempo inteiro há
nele o perigo do nada e o tempo inteiro também a percepção do ser. Ainda por
fim, ele contabiliza a si mesmo, juntamente com Burckhardt e Taine, entre os
niilistas fundamentais: “apesar de eu mesmo ainda não me encontrar desesperado
quanto a encontrar a saída e o buraco por meio do qual se chega a ‘algo’” (para
Rohde, 23 de maio de 1887).
Até o colapso
encontram-se em uma contradição aguda as sentenças negadores e as positivas:
“Por mim, nenhum novo ídolo é erigido... Ídolos (meu termo para os ‘ideais’).
E, em contrapartida: “Depois de longos anos... prossigo e procuro fazer também
publicamente uma vez mais aquilo, que sempre faço para mim e sempre fiz: a
saber, pintar imagens de novos ideais na parede” (14, 351).
Essa contradição é,
para ele, a expressão do processo unicamente necessário, depois que “Deus está
morto”. Ideais significam para ele ídolos, quando eles passam, mas significam
também para ele a verdade, quando são prenhes de futuro. “Quem não encontra
mais a grandeza em Deus não a encontra mais em geral – ele precisa negá-la ou
criá-la” (12, 329). Nietzsche quer criá-la: “Vós o denominais a
autodecomposição de Deus: mas trata-se apenas de sua troca de pele... vós
deveis revê-lo em breve uma vez mais, para além do bem e do mal” (12, 329).
Aquilo que aparece
para a consciência de Nietzsche e em seu agir fático como duas coisas, negar e
afirmar, decompor e criar, aniquilar e produzir, torna-se um problema
inverídico, quando a resposta afirmadora é esperada no mesmo plano no qual vige
o juízo negador: no plano da concepção racional e de sua enunciabilidade
compreensível para qualquer um.
O universal racional
é como tal crítico e negativo, isto é, o entendimento por si é decompositor;
positivamente, só a historicidade do ser irrepresentável, não universal, é que
se encontra por si mesma e ligada com o seu fundamento, que não permanece,
contudo, velado, mas desprovido de essência, quando ele não traz a si mesmo
para a clareza por meio do entendimento. Essa intelecção profunda de Schelling,
que o conduziu à cisão de sua filosofia negativa e positiva, não foi possuída
por Nietzsche, mas Nietzsche a seguiu inconscientemente. A negação enquanto a
aparição do conceber racional é ela mesma afirmação a serviço da historicidade.
Essa historicidade, em contrapartida, enunciando-se, entra na esfera do
racional e decai, assim, no ser dito do movimento. O racional é apenas
respectivamente como um racional por meio de um outro e vale apenas em relações;
o histórico vive a partir de si mesmo e entra em comunicações do tornar-se si
mesmo.
Sem a amplitude da
filosofia negativa não há nenhuma filosofia positiva. Só no purgatório do
racional, o homem pode verdadeiramente perceber a sua historicidade positiva.
Essa historicidade só chega a falar por meio do racional, com o qual ela de
qualquer modo apreende indiretamente o seu elemento historicamente originário.
O positivo como fundamento da historicidade da existência movimenta-se, por
isto, em todas as direções da racionalidade, entregando-se a elas totalmente,
mas conduzindo-as e mantendo-se coeso a partir da origem histórica própria, que
não pode saber a si mesma, mas só se clarifica sem intenção na universalidade
do que há para ser sabido e por ele produzido.
O positivo sob a
forma do que acaba de ser dito teria, porém, se tornado ele mesmo
racional-universal e recaído no plano da decomponibilidade ilimitada. Pois é
assim que as coisas precisam se dar na racionalidade, ainda que seja na falsa
racionalidade, pois uma racionalidade não compreensiva ganha a palavra e se
torna consciente. Sob essa figura como doutrina de uma possibilidade de saber
geral é que o positivo se mostra como degradado em suas raízes, porque
considerado como o mero entendimento, e, com isto, transformado em algo
universal e abstrato; da maneira mais radical possível, quando ela emprega essa
doutrina da cisão de filosofia positiva e negativa (ou racional e histórica)
para alijar o entendimento e, então, recusa de qualquer modo uma prova racional
em enunciados faticamente racionais.
Os nexos apontam o
caminho para os conteúdos que dominam
Nietzsche: na medida em que Nietzsche expõe francamente a sua positividade, seu
conteúdo se torna questionável. Na medida em que ele procede buscando e
tentando, ele levanta a pretensão extraordinária de uma existência possível.
Nietzsche filosofa em uma situação filosófica nova, criada pelos séculos que
lhe foram precedentes.
Uma filosofia ingênua, que pode apresentar Deus e
mundo e aí o homem, não vê a cisão entre racionalidade e historicidade; ela
pode comunicar os seus conteúdos de uma maneira despreocupadamente direta e de
modo imagético e pensante, sem decair necessariamente em um equívoco
existencial; e, mais tarde, depois da ruptura da ingenuidade, ela pode
satisfazer ainda esteticamente aquele que olha para trás por meio da
unilateralidade e da totalidade de sua obra, pode se mostrar pretensiosa por
meio da verdade da existência que a sustenta. Todavia, se, depois da ruptura do
todo inquestionado de Deus, alma e mundo, se sente e ganha a consciência a
cisão entre um universal racional e uma historicidade existencial, então se
mostram no primeiro plano do racional as questões da dúvida; em Nietzsche: o
que é o homem (primeiro capítulo), o que é a verdade (segundo capítulo), o que
significa a história e a era atual (terceiro capítulo). Então, porém, o ser também se revela presente em sua
história, e, em verdade, é buscado na vontade de futuro (capítulo 4), como
interpretação do mundo por esse instante (quinto capítulo), como unificação
mística do ser (sexto capítulo).
Nessas questões da dúvida, o impulso já
positivamente preenchedor é, para Nietzsche, o seguinte: o amor ao ser humano
nobre, que se desespera com o homem em cada uma de suas figuras efetivas; a
seriedade inexorável de uma veracidade, que coloca a própria verdade em
questão; o preenchimento com figuras históricas, que desemboca na ausência de
sentido e de meta da história.
Nas intervenções positivas, a vontade de
futuro se mostra como projeto da grande política, que se enraíza no conceito
permanente indeterminado da criação; uma doutrina do mundo da vontade de poder
se mostra como a intuição que anima os portadores do contramovimento em relação
ao niilismo, intuição essa que, girando em círculo, suspende a si mesma; a
experiência do ser se anuncia em estados místicos, enunciando-se, sobretudo, na
doutrina do eterno do mesmo, que fracassa no paradoxo.
Reside na essência
dos conteúdos revelados em Nietzsche o fato de que eles só se mostram para
aquele que vai ao seu encontro a partir de si. Por isto, o pensamento de
Nietzsche pode parecer por um lado vazio e, por outro, o mais profundo de
todos. Ele é vazio, se quisermos ter algo, que valha e subsista; ele é pleno,
se participarmos do seu movimento. Se a própria comoção dos impulsos
originários de Nietzsche é vivificada, então os desdobramentos negativos de seu
pensamento são mais plenos do que os enunciados positivos que, em sua falsa
racionalidade, assumem rapidamente ares de cascas nas quais não há nada.
Inversamente, os enunciados positivos talvez consigam por um instante
arrebatar, quando eles conseguem ser apreendidos simbolicamente e ser tomados
como signos; e, por sua vez, os enunciados negativos podem entediar, quando não
parecer haver neles nenhuma imagem e nenhum pensamento criador, quando não
parece subsistir nenhum símbolo.
Diferentemente dos
maiores filósofos do passado, o que é característico de Nietzsche é o fato de
que ele, por meio de suas negações, dá a impressão de ser mais verdadeiro do
que por meio de suas posições. Não vem à tona para onde o impulso propriamente
dito, mais originário, segue por fim, o impulso cuja verdadeira essência não
pôde se subtrair a nenhum leitor sério: Nietzsche abre o espaço, ele destrói os
horizontes limitadores; ele não realiza uma crítica que institui limites, como
Kant, mas ele ensina a colocar em questão; ele preenche com possibilidades,
desperta as forças que animam a postura interior.
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JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich
Nietzsche / Karl Jaspers; tradução Marco Antônio Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
A ontologia e a ética em Michel Foucault
Celso
Kraemer
Aproximação
com Foucault
O nome
de Michel Foucault, nos espaços de formação acadêmica e fora deles, é um
dos mais conhecidos entre os que se poderiam chamar de intelectuais
contemporâneos. Passados 30 anos da data de sua morte, o número de pessoas
interessadas em seu pensamento cresce diariamente. Seus livros são publicados
em praticamente todos os países do mundo. Nos principais centros de pesquisa,
na área das ciências humanas, sempre há alguém pesquisando ou escrevendo
algo que envolve o nome de Michel Foucault.
No
Brasil, o interesse por Foucault parece crescer acima da média mundial. Grande
parte dos leitores, pesquisadores, estudantes e intelectuais brasileiros
parecem encontrar familiaridade em seus textos, tanto na forma da escrita
quanto na forma de seu pensamento. Cresce rapidamente o número de
publicações dos textos originais, incluindo os livros, os Cursos de Foucault
no Collège de France, os Ditos e
Escritos editados em Língua Portuguesa numa coleção que já está no
oitavo volume. Mas crescem ainda mais rapidamente as publicações que envolvem
seu nome e seu pensamento. Também nos programas de Pós-Graduação stricto senso é elevado o número de
pesquisas que, direta ou indiretamente, se relacionam com Foucault.
No
entanto, não é só o número de pesquisas e publicações que chama a
atenção. Também a amplitude de disciplinas, de domínios empíricos, de
recortes históricos envolvidos nessas pesquisas e publicações é
extremamente elevada. As pesquisas se distribuem num leque que vai da área do
direito, da educação, da pedagogia, das ciências sociais, da psicologia, da
história, do serviço social, das artes, da medicina, fisioterapia,
enfermagem, etc., até a epistemologia e a ontologia.
Os
domínios empíricos, igualmente, percorrem praticamente todas as faixas
etárias, da infância à velhice, todas as práticas sociais, da violência ao
amor, dos modelos de parto aos tipos de morte, da escola à prisão, fábrica,
hospitais, da inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais à
corrupção da moral da juventude. Igualmente os recortes históricos variam de
Platão (Antiguidade clássica) às sociedades dos fluxos que ainda nem se constituíram completamente em nossa contemporaneidade,
passando por temas tão díspares como a Phrónesis
em Aristóteles, a inquisição na Idade Média, a amizade no século XVII ou o
sadomasoquismo na Califórnia do século XX.
Seguramente,
o Brasil passa, neste momento, por uma elevação significativa das pesquisas e
das publicações. Nunca se pesquisou e se publicou tanto, em tantos meios,
como nesta última década. Tal elevação, em parte, é advinda da ampliação
e estruturação dos programas de pós-graduação stricto senso, em parte dos financiamentos, públicos e privados,
à pesquisa, também nas áreas que se situam fora ou estão para além da
geração de tecnologias ou conhecimentos positivos, envolvendo o que se
poderia chamar de produção de um conhecimento crítico da cultura e da
sociedade. Mas contribuem também nessa ampliação da pesquisa e da
publicação a elevação dos níveis de escolaridade e das facilidades em se
publicar, desde um simples blog até um livro de autoria própria, passando
pelos mais variados tipos de revistas, jornais, folhetins.
Essa
história dinâmica e plural que nós fazemos, e que também nos faz, coloca
sempre novos problemas para a pesquisa. É nesse movimento do pensamento de
precisar compreender criticamente o que e quem nós somos que os trabalhos de
Foucault encontram seu terreno fértil.
Vivemos
um momento histórico destituído de utopias ou paraísos prometidos. Fazemos
uma história na qual a verdade absoluta cede lugar às perspectivas (uma
filosofia metafísica é substituída pelo perspectivismo). As atitudes
dogmáticas são substituídas por ceticismos críticos ou esclarecidos. As
grandes narrativas ou teorias sobre o ser do mundo e das coisas são
substituídas por uma analítica bem mais pontual, assumida em sua
problematicidade e finitude histórica. Inútil conjecturar até que ponto
Foucault seria apenas um fruto desse tempo histórico e até que ponto Foucault
seria seu causador. De todo modo, é esse o solo
epistemológico da obra de Foucault. É por ser tão profundamente
sintonizado, de modo rizomático, com o tempo no qual vivemos que o interesse
por Foucault cresce no ritmo que percebemos.
Frente
ao volume de pesquisas e de publicações que anualmente surgem associadas ao
nome de Foucault, do número de congressos, seminários e simpósios realizados
ao abrigo de sua figura, pergunta-se se ainda vale a pena escrever sobre
Foucault, ou seja, quais as motivações de escrita, tanto internas, do
próprio escritor, quanto externas, do ponto de vista de um público leitor,
para falar sobre Foucault? Com tanta
publicidade de seus trabalhos, ainda vale escrever sobre ele? Talvez seria melhor usar seu pensamento para fazer
avançar novas problemáticas, abordar outros temas ou objetos, deixando seus
textos repousarem no século passado.
Questão
de método: o perspectivismo
Não
é incomum ouvir-se uma expressão como perspectiva
foucaultiana ou falar-se de uma perspectiva de Foucault. Sabidamente esta
expressão remete aos trabalhos de Michel Foucault. Quando se usa uma
expressão como perspectiva platônica,
não resta dúvida de que se trata da perspectiva idealista metafísica. Se for
perspectiva marxista, trata-se da
perspectiva histórico-dialética. Mas quando se fala de perspectiva
foucaultiana, de que perspectiva se trata? Haveria algo que se poderia chamar de
perspectiva foucaultiana? A questão é: há unidade conceitual, teórica e
metodológica nos trabalhos de Foucault que nos possibilitaria falar
propriamente de uma perspectiva?
Proveniente
do latim, perspectiva significa “Arte
de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista;
Aspecto dos objetos vistos de uma certa distância; panorama; Aparência,
aspecto; Aspecto sob o qual uma coisa se apresenta; ponto de vista” (Ferreira,
1999). Neste uso, o conceito de perspectiva não deixa de aludir a certo jogo
entre o modo como as coisas parecem ser a um observador, do lugar e nas
condições em que ambos se encontram (perspectiva) e o modo como elas
realmente são, ou seja, uma visão em totalidade, não mais em perspectiva.
Quando
transposto para a linguagem filosófica, o conceito guarda sua origem popular,
não se desgarrando, necessariamente, de sua “força sensível” (Nietzsche,
1999a, p. 57). Igualmente, ele traz consigo a tensão entre a perspectiva da
verdade e a verdade como tal, em sua objetividade. Entende- se, assim, que na
filosofia a questão da perspectiva se aloja no interior das discussões acerca
do conhecimento, da verdade e do próprio ser do homem.
A
questão do perspectivismo, em nossa modernidade, mais explicitamente colocado
na filosofia de Nietzsche, radica, possivelmente, na Revolução Copernicana de Kant (1999). Nessa revolução, Kant, simultaneamente, inverte o princípio do
empirismo, segundo o qual a origem de todo conhecimento reside na experiência.
Contra o empirismo, Kant indica que os dados sensíveis são obrigados a se
conformarem às condições do entendimento. Com isso Kant limita o primado da
razão em suas pretensões de universalidade e neutralidade, no que se refere
aos conceitos, sejam científicos, sejam metafísicos.
Segundo
sua revolução copernicana, Kant mostrou que a mente
(razão) não se molda ao modo como as coisas são objetivamente. A mente não
faz das coisas uma representação exata e perfeita, preservando sua
objetividade. Ao contrário, a razão é muito menos flexível e são as coisas
que necessitam adequar-se a seus estreitos limites: “tente-se ver uma vez se
não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos
têm que se regular pelo nosso conhecimento” (Kant, 1999, p. 39), ou seja, “a
razão só discerne o que ela mesma produz segundo seu projeto, que ela tem de
ir à frente [...] e obrigar a natureza a responder suas perguntas [...]”
(Kant, 1999, p. 37); isso significa que em nosso conhecimento universal temos apenas objetos a nós
apresentados através de nossos órgãos de sensibilidade (objetos
fenomênicos), nos limites da experiência, sem delas termos um conhecimento
“como coisas em si mesmas” (Kant, 1999, p. 41).
Ante a
essas dificuldades, “o velho chinês de Königsberg”[i]
(Foucault, 2011, p. 96) colocou a questão da Crítica na questão que se interroga “como condições subjetivas do pensamento devam possuir validade objetiva, isto é, fornecer
condições de possibilidade de todo o conhecimento de objetos” (Kant, 1999, p.
117). O que se depreende da Primeira Crítica de Kant é que nosso
conhecimento, mesmo o científico, corresponde à perspectiva do entendimento
humano sobre mundo.
Dessa
forma, a Crítica kantiana sinaliza a
impossibilidade de um conhecimento puramente objetivo das coisas, independente
de nossas condições subjetivas. Entre as diferentes alternativas
constituídas nas teorias filosóficas pós-kantianas, para contornar os
limites impostos pela Crítica,
acerca de nossa relação com a verdade, está o que poderíamos chamar de
perspectivismo nietzschiano.
Os
praticamente 100 anos que transcorrem entre a obra Crítica de Kant e os
escritos filosóficos de Nietzsche foram importantes no âmbito da cultura, na
qual se delineou um complexo modo de ver, viver e produzir o mundo a que
Foucault (2002, p. 13) chamou de nossa
modernidade. Nela se foi, progressivamente, abandonando a fé na unidade
metafísica da Razão ou da Verdade. A noção de unidade torna-se cada vez
mais mundana. Darwin ou Marx pensam a
unidade a partir de princípios bem mais físicos e biológicos do que jamais
se pensara ao longo de toda a história dos sistemas de pensamento.[ii] O
século XIX promove essa queda na finitude que, a um só tempo, faz aparecer o
homem e reduz todo pensamento a uma antropologia: “a filosofia da vida denuncia
a metafísica como véu da ilusão, a do trabalho a denuncia como pensamento
alienado, a da linguagem, como episódio cultural” (Foucault, 1999, p. 437).
Um
novo cenário, portanto, descortinou-se ao pensamento no século XIX, em que
Nietzsche erige seu pensamento. É um momento histórico no qual se oscila
entre um relativismo quase cético e tendências racistas e totalitárias. O
homem oscilou entre ser deus e ser nada. A sensibilidade de Nietzsche absorveu
as tensões dessa história peculiar da Europa. Tais tensões estão, todas,
presentes nos textos nietzschianos. No âmago dessa experiência histórica do
homem, amarrando-se à sua finitude histórica, num Eterno Retorno do Mesmo
(Nietzsche, 1999b, p. 193), em que, segundo Marton (1993, p. 31) “todos os
dados são conhecidos: finitos são os elementos que constituem o universo,
finito é o número de combinações entre eles; só o tempo é eterno”. Assim,
somos filhos da história. Só nela buscamos explicações. Mais do que livres
do dogmatismo metafísico, ficamos presos no que Foucault (1999) chamou de
metafísica da finitude. Mas Nietzsche não se acomoda nela. Ele irrompe dela.
Sacode-a em um movimento que a questiona e quer superá-la. Conforme Foucault
(2011):
Seria preciso
[...] compreender o que nos retorna no Eterno Retorno, para ver nisso a
repetição autêntica, em um mundo que é o nosso, daquilo que, para uma
cultura já distante, era a reflexão sobre o a priori, o originário e a finitude. É ali, neste pensamento que
pensava o fim da filosofia, que residem a possibilidade de filosofar ainda e a
injunção de uma austeridade nova (Foucault, 2011, p. 96).
No
interior dos combates do pensamento com seu tempo é que Nietzsche projeta seu
pensar como perspectiva. Para a filósofa brasileira Scarlett Marton, há um
emaranhado de conflitos internos nos textos de Nietzsche. Para ela, “fruto do
estilo aforismático, as contradições devem-se muito mais ao que torna seu
estilo tão adequado a seu modo de pensar, ou seja, o perspectivismo, que é a
marca mesma da filosofia de Nietzsche” (Marton, 1993, p. 47). O perspectivismo
de Nietzsche, mais do que seu estilo, é condição de seu filosofar. A verdade
não é objeto a ser encontrada. Ao contrário, ela resulta da perspectiva de
abordagem e nela produz seus efeitos. Assim, sempre que se fala de educar o
homem, trata-se de assumir certa perspectiva sobre o homem e engajar-se nessa
perspectiva, fazendo-a ser verdadeira. Nisso se antecipa que não se trata, em
sua filosofia, de descobrir a verdade
acerca da existência do homem (ontologia), mas de assumir uma perspectiva.
Nesse
sentido, ao que se percebe na arqueologia e na genealogia de Foucault, mais do
que uma verdade objetiva sobre o ser do homem, trata-se de uma perspectiva.
Assim, ao se falar de uma perspectiva foucaultiana, alude-se, em realidade, a
um perspectivismo da verdade, pois, no âmbito da filosofia, ela é uma maneira
específica de abordar o homem, seus modos de ser ou constituir-se em sua
subjetividade. Assim, a questão central, na perspectiva foucaultiana, seja na
arqueologia, na genealogia ou na ética, é uma questão relativa à
constituição da subjetividade e que já fora anunciada quase 100 anos antes
por Nietzsche: como tornar-se aquilo que se é, ou seja, como nos tornamos o
que somos hoje.
Conforme
se vê, do ponto de vista metodológico, há um perspectivismo em Foucault.
Assim, a ontologia é assumida em
perspectiva, o que quer dizer que se pode explorar a perspectiva
ontológica de Foucault, sem a pretensão de se encontrar a verdade ontológica
sobre o homem em geral nos trabalhos de Foucault. Próprio das heranças do
século XIX presentes em nosso modo de pensar, o perspectivismo de Foucault assume a historicidade do homem. Mas tal
historicidade não pode ser desgarrada do caráter genealógico, ou seja, das
complexas tramas de saber poder constituintes do que se pode chamar de história
do homem e suas verdades.
Introdução
do tema
Conforme
se escreveu acima, já se encontram muitos escritos sobre Foucault no Brasil.
Alguns contra, a maioria a favor, mas parece que somos impulsionados a
continuar a escrever, falar, debater, pensar. Nesse sentido, a motivação para
este trabalho advém de um debate iniciado no livro Ética e liberdade em Michel Foucault – uma leitura de Kant
(Kraemer, 2011). Nesse trabalho, foram analisadas as implicações que a obra
crítica de Kant teve no pensamento de Foucault, na arqueologia, na genealogia
e na genealogia da ética, mostrando o modo crítico de Foucault pensar o tema
da liberdade e da ética. Ambos, ética e liberdade, têm caráter
eminentemente histórico, pensados não como substâncias ou materialidades em
si mesmas, mas a partir de suas condições de possibilidade, que são
históricas. Tais condições de possibilidade se reduzem ao caráter
histórico? Qual seria a condição ontológica da própria história, ou seja,
quais componentes fazem com que haja história em vez de nada? Caso Foucault se contentasse com a história para responder
à pergunta o que é o homem?, ele se
tornaria vítima da analítica da finitude, por ele criticada em As palavras e as coisas (1999) como
sendo algo próprio às ciências humanas, que tomam o homem empírico como se
fosse transcendental.
Esses
questionamentos motivam a continuação da pesquisa. Dirigir-se à questão
ontológica em Foucault passa pelas questões o que é o homem e o que é
sujeito para o autor. Com essas duas questões pode-se preparar a
discussão para o tema da ontologia, embora sem uma resposta conclusiva, apenas
apontando-se a problemática da ontologia em Foucault.
A
ontologia, na hermenêutica radical de Heidegger, lido por Foucault ainda na
década de 1950, mostra a importância do questionamento ontológico, “[...] o
que é digno de ser questionado nos proporciona, por si mesmo, a oportunidade
clara e o apoio livre para podermos vir ao encontro e evocar o apelo de [...] um
retorno ao lar” (Heidegger, 2001, p. 58). Retorno
ao lar significa endereçar-se criticamente ao ponto de partida, buscar a
proveniência e construir um caminho (com o pensamento) ao que se é.
Em
termos foucaultianos, o que é digno de ser questionado, a questão que
realmente importa é a de reconduzirmos nossa preocupação sobre a questão
antropológica da modernidade e ver que nela o jogo de forças entre
disciplina, biopolítica e resistência alimenta uma estratégia que nos prende
à própria modernidade. Colocar em questão essa imbricação nos deve abrir
para a ontologia e deve nos propiciar uma oportunidade de ir além do puro
embate de forças na temporalidade do ente (finitude), abrindo possibilidade de
pensar formas diversas (em relação à moderni- dade) para constituir a si no
presente. Significa perguntar não só o que tornou possível o homem da
modernidade, objetivado pela epistemologia, pela disciplina e pela biopolítica
e colocado à disposição para um saber científico, mas perguntar o que essa
objetivação obscureceu, sonegou ou excluiu para, só então, constituir-nos
como objetos de ciência.
A
questão da ética em Michel Foucault já tem sido estudada por vários
pesquisadores[iii]
há algum tempo. A ontologia de Foucault[iv]
também já é objeto de alguns estudos. Este texto é um primeiro esboço,
pois, mais do que definições, busca levantar possibilidades de análise para
a questão da ontologia em Foucault. Um estudo sobre a questão ontológica em
Foucault requer que se percorra a totalidade de seus escritos e estudos. A tese
complementar que Foucault escreveu para seu doutorado (a tese principal foi
sobre Loucura, resultando no livro História
da Loucura), publicada no Brasil com o título Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (Foucault, 2011), é um
texto relevante nesse sentido, pois assinala um caminho para se pensar o tema
da ontologia. A partir dela, todo período arqueológico e genealógico
necessita ser analisado com cuidado nessa discussão. Os últimos livros (O uso dos prazeres e O cuidado de si), junto com os cursos da
década de 1980, são igualmente fundamentais. Assim, um exame completo do tema
da ontologia é um trabalho de fôlego maior do que esse (pequeno) início.
O sujeito em Foucault
É
sabido que o sujeito de que fala Foucault não se confunde com o indivíduo. O
sujeito é antes uma figura histórica, podendo constituir-se por múltiplos
indivíduos. O próprio sujeito Foucault, do qual resultou a Obra Foucault, não se reduz ao
indivíduo, com o nome próprio Paul-Michel Foucault, nascido em 15 de outubro
de 1926 e falecido em 25 de junho de 1984. Esse é só um indivíduo, mais um,
entre tantos nascidos naquele ano na França e entre tantos outros que também
morreram em 1984. O sujeito Foucault é uma complexidade maior, que não
começa no nascimento de Paul-Michel e não acaba no dia de sua morte. O
sujeito Foucault é uma posição no interior do discurso (Foucault, 1997) e se
inscreve em uma longa tradição, à qual é impossível fixar uma data exata
de início, embora Paul-Michel (Foucault, 2004a) tenha indicado um momento
histórico: a obra Crítica de
Immanuel Kant. O sujeito Foucault também não acabou com a morte de
Paul-Michel. Estende-se nos múltiplos trabalhos que resgatam faces da
arqueologia da obra Foucault, entre os quais se inclui mais este, mas também
nas múltiplas pesquisas sobre empiricidades históricas específicas e nos
diversos movimentos de pensamento ou de “intervenção” que inspirou. O sujeito
é expressão de um tempo, é uma
possibilidade efetivada, entre múltiplas, na historicidade e coletividade
do homem. A “estética da existência” não é uma receita de autoajuda,
recomendada para indivíduos. Ela é a retomada de uma possibilidade para o sujeito histórico, em nosso tempo, ou
seja, na categoria que Foucault, no texto “What
Is Enlightenment?”, tanto valorizou em Kant: a ocupação com o presente,
com o que se é agora, com “o que estamos fazendo de nós mesmos [...] para a
constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos” (Foucault, 1988, p.
345).
A
liberdade, fundamento da ética, também está referida ao sujeito, não ao
indivíduo. É angustiante pensar essa dificuldade de como situar o tema do
indivíduo e do sujeito, não só na ética, mas na própria ontologia de
Foucault. Que relações se podem estabelecer entre o sujeito histórico e o
indivíduo? Como se poderia abordar o tema da liberdade dos indivíduos? Como
articular o “conhece-te a ti mesmo”, que o sujeito Foucault praticou em toda a
arqueologia e a genealogia de sua obra, num trabalho que ele próprio chamou de
“ontologia histórica de nós mesmos” (Foucault, 1988, p. 347), com a
possibilidade de o indivíduo conhecer- se? Ou será que o indivíduo deve
contentar-se em reconhecer a si no sujeito que a ontologia histórica do nós
faz aparecer? Talvez a “estética da existência”, muito diferente de um
capricho individual, seja uma empreitada coletiva e histórica de criar novas
possibilidades ao sujeito histórico. Em tal empreitada, o lugar do indivíduo
poderia estar resguardado na coletividade, analogamente ao que ocorre nas Tischgesellschaft, o “Banquet kantien” (Foucault, 2011). É
sabido que Foucault não sustenta um discurso de que o indivíduo é livre ou
que deve ser livre. O discurso de
Foucault sustenta o princípio de que o sujeito tem o direito de exercer
liberdades, seja na forma de resistência (Vigiar
e punir), de contraconduta (Segurança,
território e população) ou de um agir sobre si (Hermenêutica do sujeito). É nesse universo de relações que o
tema do indivíduo aparece frente ao sujeito. São questões que, obrigatoriamente,
se abrem e convocam o pensamento a aprofundar a interrogação e a buscar
respostas numa possível ontologia em Foucault.
Ética e ontologia
A
leitura inicial de textos de Foucault, nos domínios arqueológicos e
genealógicos, já revela seu caráter de crítica e de denúncia[v].
Mas eles, facilmente, também, deixam a impressão de que o indivíduo é
simplesmente um efeito da episteme e dos dispositivos, uma subjetividade
passiva frente às práticas de saber-poder, uma pura determinação provinda
do exterior. Neste caso, o sujeito não teria qualquer abertura ao ainda não
presente; não estaria disposto no horizonte da possibilidade. Pensando o
sujeito apenas como passividade, constituído pelas formas de saber e de poder
atuantes no meio, não faz o menor sentido discutir-se o tema da liberdade, da
autonomia ou da ética na ontologia. A ontologia, nesse caso, se reduziria à
mera determinação histórica, uma espécie de absoluto produzindo indivíduos
autômatos.
Desse
ponto de vista, a arqueologia e genealogia de Foucault deixam a impressão de
não haver teoria ou ideologia política capaz de contornar os efeitos da
episteme e do dispositivo. Nada poderia, então, nos salvar de nós mesmos, da
repetição das verdades que nos constituem, nos submetem, nos governam. Não
há Razão, não há Eu, não há Sujeito que supere o eterno Retorno das
Mesmas Verdades, dos mesmos enganos, das mesmas ilusões, das mesmas
submissões, das formas cada vez mais refinadas de sermos “conduzidos” pelas
verdades.
Mas é
fundamental ter-se em conta que, para Foucault, a arqueologia e a genealogia
não se limitam ao estudo das formas históricas de submissão à verdade ou ao
governo. Elas, obviamente, realizam com profundidade tais estudos. Por outro
lado, elas não limitam o universo do
possível às formas historicamente determinadas, como se tais formas
significassem o ponto de chegada de um percurso histórico no qual o homem
teria atingido sua forma plena e acabada.
A
estrutura da obra de Foucault se desenvolve em três domínios de abordagem,
diferentes e interligados: o domínio da crítica, o domínio das empiricidades
históricas e o domínio da abertura. A crítica, conforme demonstrado por
Kraemer (2011), é utilizada por Foucault em sentido kantiano, ou seja, ela é
uma propedêutica à pesquisa e uma atitude metodológica na pesquisa, quer
dizer, em vez de buscar a objetividade e neutralidade de seus objetos, busca
entender as condições de possibilidade em que os objetos e os conhecimentos
sobre tais objetos são possíveis ou têm seu aparecimento na história.
Nesse
sentido, pode-se compreender que arqueologia e genealogia são formas críticas de pesquisa, na medida em que
elas constituem estudos sobre as condições de possibilidade histórica de
constituição das empiricidades relativas ao homem da modernidade. Suas
pesquisas buscam as condições de possibilidade das formas historicamente
determinadas de conhecimento. Seus estudos explicitam os dispositivos que
atuaram em cada período histórico e os modos de sujeição daí resultantes.
A
abertura é um conceito que Foucault utilizou pela primeira vez em sua tese
complementar Gênese e estrutura da antropologia de Kant (Foucault, 2011) e,
depois, em outros textos, como no Prefácio à Transgressão, cuja publicação
no Brasil está em no terceiro volume da Coleção Ditos e escritos, intitulado
Estética, literatura e pintura, música e cinema (Foucault, 2001b),
sinalizando que para ele os limites do atualmente dado na história não
significa um cercado intransponível, mas uma fronteira que se divisa com novas
formas de ser e de saber. Este sentido de pensar o presente, não como
determinado, mas como possibilidade de abertura para o ainda não presente, é
nitidamente retomado em seus últimos trabalhos, da década de 1980,
marcadamente em conceitos como estética da existência, cuidado de si, etc., o
que pode ser considerado um contraponto, no domínio da ontologia, às formas
de sujeição estudadas na arqueologia e na genealogia. A abertura parece
constituir uma espécie de meta, já anunciada desde fins dos anos 1950, mas
não claramente tematizada nas abordagens arqueológicas e genealógicas. Por
isso sua ocupação com as questões da ética e da ontologia, normalmente,
passam despercebidas quando se estudam textos como Vigiar e punir.
As
discussões que ele faz na Tese
complementar se aproximam bastante das discussões que faz em seus dois
últimos livros (O uso dos prazeres e
O cuidado de si), percebe-se a
presença do tema da ética e da ontologia. Seus últimos cursos no Collège de
France, marcadamente A hermenêutica do
sujeito e O governo de si e dos
outros também sinalizam a importância que o autor concede para temas como
liberdade, ética, ontologia. Nos trabalhos finais, ao abordar os domínios do
saber e do poder, Foucault prioriza o estudo do modo de inserção do sujeito
nas práticas do saber-poder. Ele se ocupa, prioritariamente, da atuação do
sujeito, ou seja, do modo como cada um pode agir sobre si, sobre as verdades e
as formas de poder que o atravessam.
Saliente-se,
entretanto, que, ao trazer as questões da ética e da ontologia para o debate,
Foucault não superou ou abandonou a arqueologia e a genealogia[vi].
Ao contrário, é a partir do que foi trazido à luz sobre as práticas do
saber-poder que pôde aprofundar-se o estudo e o debate sobre a constituição
de si. A dimensão crítica da arqueologia e da genealogia assegura que a
discussão sobre a constituição de si nada tem de ingênuo, utópico,
idealista ou teleológico. Não promete um mundo futuro, livre e feliz. Nem
idealiza um mundo no qual, atingidas determinadas condições (econômicas,
políticas, ou de consciência), reinará o verdadeiro homem. Ao contrário, é
na imanência histórica, no universo das relações efetivas, das práticas
historicamente constituídas, que a ética e a ontologia são pensadas e
estudadas.
Suas
pesquisas da Antiguidade, grega e romana, desenvolvem-se com as ferramentas da arqueologia e da
genealogia. Foucault analisa, na “empreitada de uma história da verdade, [...]
as problematizações através das
quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”[vii].
Analisa o modo como se dá a “determinação
da substância ética, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir
tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral,”[viii]
o modo de sujeição[ix]
e as formas de subjetivação[x].
Mas investigam também o
[...]
desenvolvimento de uma arte da existência dominada pelo cuidado de si, que
gravita em torno da questão do si mesmo, de sua própria dependência e
independência, de sua forma universal [...], dos procedimentos pelos quais se
exerce seu controle sobre si próprio e da maneira pela qual se pode
estabelecer a plena soberania sobre si.[xi]
Isso
tudo explicita que a ontologia está em foco. Porém, parte dos elementos que
auxilia na compreensão do modo específico de Foucault entender a ontologia,
posto em evidência nesse terceiro
deslocamento, não está explicitado nos próprios livros, sendo importante
recorrer a alguns “textos menores” do período entre 1978 e 1984.
Por
longo tempo, mesmo depois de sua morte, os estudos não indicavam maiores
relações entre ele e Kant. A partir do momento em que se tornam conhecidos
seus textos sobre a Aufklärung
(Kant, 2008), acreditou-se que Foucault, no final de sua vida, teria feito uma virada em direção a Kant. Isso estaria
motivado por questões internas a sua obra, como as que implicam a noção de
liberdade e autonomia do sujeito frente às noções de episteme e de dispositivo, e questões que dizem respeito
à relação com o presente,[xii]
modo de se atuar sobre as questões do presente.[xiii]
Mas a leitura da tese complementar e um olhar mais atento a As palavras e as coisas faz ver que Kant
já é presença desde o início de sua obra. A partir de 1978, a presença da Aufklärung e as referências a Kant nos
“textos menores” de Foucault se intensifica.[xiv]
A
questão do presente é relevante para pensar o tema da ontologia em Foucault.
Ao discutir o texto de Kant, “Resposta à questão: o que é o esclarecimento?”
ele fala de uma “ontologia histórica de nós mesmos” e de uma “ontologia
crítica de nós mesmos, como uma prova histórico-prática dos limites que
podemos transpor, portanto, como o nosso trabalho sobre nós mesmos como seres
livres” (Foucault, 2000, p. 348). Tal trabalho sobre si implica, obviamente, um
conhecimento crítico sobre as formas históricas que configuram o presente, além
de estratégias específicas para enfrentá-lo nos domínios do saber-poder.
Por
esta via, entende-se por que o domínio de ética e da ontologia só foi
evidenciado após os trabalhos
arqueológicos e genealógicos. As pesquisas realizadas nas décadas de 1960 e
1970 correspondem ao trabalho da crítica, no qual Foucault buscou as
condições em que o sujeito é constituído, os mecanismos de sujeição de
que nunca se está livre – episteme, dispositivo, disciplina,
objetivação-subjetivação, produção e efeitos-poder da verdade. Abordar
primeiro o domínio da ética e da ontologia significaria discuti-las
ingenuamente, sem perceber as relações que determinam, ao longo da história,
conceitos, valores, comportamentos, hierarquias, não evitando a repetição do
Mesmo.[xv] O
modo como Foucault assume a ética e a ontologia dá-se sem prescrever nenhum
comportamento, valor ou Verdade aos outros, por perceber, na esteira da Crítica kantiana e da genealogia
nietzschiana, a impossibilidade de fundamentar qualquer conteúdo objetivo sem
cair no dogmatismo.[xvi]
Para
pensar a ontologia, tendo-se em conta as noções de episteme e dispositivo, a
constituição do sujeito se dá, num primeiro momento, de modo independente da
vontade ou escolha. O sujeito, muito antes de ser fonte originária ou suporte
sobre o qual fundar a verdade sobre si, é efeito de complexas relações de
saber-poder-verdade. Para uma considerável parte dos discursos das ciências
humanas, vale o que Foucault, em As
palavras e as coisas chamou de ilusão
antropológica da modernidade. Ela consiste em fundar, a partir do homem
empírico, um conhecimento universal sobre o homem. Para tal, é obrigada a
fazer valer como sujeito transcendental aquilo que é apenas sujeito empírico.
Uma vez denunciada a ilusão
antropológica, Foucault não se dirige ao que seria o verdadeiro sujeito que
residiria por traz de tal ilusão antropológica. Ele faz, muito
antes, um desmonte dos discursos sobre o sujeito, explicitando os mecanismos de
saber-poder que, historicamente, o constituem, mostrando como tais discursos
tentam amarrar o indivíduo a essas verdades.
Contrapondo-se
a uma dogmatização do presente, a ontologia em Foucault guarda um caráter de
liberdade, o que mantém o homem numa essencial abertura. Esse dado é de vital
importância para que o pensar do
homem, no domínio da ontologia e da ética, não tome os fenômenos do
presente como se fossem coisas em-si,
fundando o presente metafisicamente. Também é importante para que não tome
ideias atuais das ciências sobre o homem como se fossem conteúdos objetivamente
fundados (dogmatismo) numa verdade inquestionável. O caráter de liberdade da
ontologia de Foucault também é relevante para que não se tome o homem atual,
empírico, historicamente constituído, como se fosse a verdadeira natureza
humana (redução do possível ao atual).
A
manutenção do possível por sobre o atual, em Foucault, tem por consequência
necessária o pertencimento recíproco entre a verdade e a liberdade, no
tocante à ética e à ontologia. Para pensar essa temática, a verdade deve
manter-se vinculada e subordinada à liberdade. Do contrário, o homem perde a
condição fundamental de sua moralidade e acaba sendo vítima ou refém de
suas próprias “ilusões ou fantasias”. Despertar do sono antropológico pela destruição do quadrilátero antropológico tem caráter de “denúncia”, em As palavras e as coisas. A partir de tal
denúncia, Foucault mostra a necessária superação da antropologia de nossa
modernidade. O cuidado de si e a estética da existência são formas de o filósofo
responder para superar a ontologia e a ética circunscritas pela metafísica da finitude de nossa
modernidade.
O
enfrentamento da modernidade, no nível ontológico, se dá por uma atitude
crítica, que aponta para um desnível entre o que seria o homem por natureza
(ou um discurso sobre a natureza do homem) e o modo como ele se constitui
enquanto ser da cultura. Com isso Foucault insere a ontologia na temporalidade
na experiência histórica do homem. Isso põe a ontologia na dinâmica da
indeterminação e da possibilidade humanas, enfim, na dinâmica de sua
liberdade, universal como princípio e imanente como exercício.
Considerações
Há
uma originalidade de Foucault, sobretudo no conceito que utiliza para a
questão ontológica, apresentado em Berkeley em 1983:
Eu gostaria de
enfatizar que o fio que pode nos ligar dessa maneira à Aufklärung não é a
fidelidade aos elementos de doutrina, mas, de preferência a reativação
permanente de uma atitude; quer dizer, de um êthos filosófico que se pode
caracterizar como Crítica permanente de nosso ser histórico.[xvii]
Com o
conceito de crítica de nosso ser histórico pode-se entender que os trabalhos
arqueológicos e genealógicos efetivam, sob a égide da própria crítica, uma
ontologia histórica de nós mesmos, apesar de mirar tal ontologia em sentido negativo, ou seja, desmantelando a epistemè e os dispositivos que nos
amarram às verdades modernas sobre o homem. O conceito de ontologia
histórica, embora seja um avanço significativo no entendimento de sua obra,
somente foi cunhado em 1982[xviii]
e 1983[xix],
mas com valor retrospectivo sobre toda sua obra. Isso é assinalada pelo
próprio Foucault:
Há três
domínios possíveis na genealogia. Primeiro uma ontologia histórica de nós
mesmos com relação à verdade através da qual nós nos constituímos como
sujeitos de conhecimento; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos
relacionada a um campo de poder através do qual nos constituímos como
sujeitos agindo sobre outros; terceiro, uma ontologia histórica de nossas
relações à moral, que nos permite constituir-nos em agentes éticos.[xx]
Caracterizar
seu próprio trabalho como ontologia histórica é uma resposta positiva de
Foucault ao tema ontológico e ético de sua obra. O conceito admite,
simultaneamente, uma negação e uma afirmação. Enquanto negação, ela
permite “fugir” dos modelos essencialistas de pensamento; não requer um
fundamento positivo, universalmente válido, do qual se poderiam derivar as
demais verdades sobre o homem e sobre a história; permite “fugir” igualmente
dos humanismos, com seus prognósticos sobre modelos de homem e de mundo.
Nisto, a ontologia histórica se mantém estritamente na esteira da Crítica. Enquanto afirmação permite
“fazer análises de nós mesmos como seres historicamente situados [...]
orientadas para a constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos”.
Compreende-se,
mesmo com esse rápido recorte, que o tema da ontologia, em Foucault, por um
lado, é uma possibilidade que merece ser aprofundada e explorada. Por outro
lado, percebe-se que ele está intimamente relacionado ao tema do homem e do
modo de sermos sujeitos. Com certa ousadia, pode-se afirmar que o tema da
ontologia em Foucault está entrelaçado com o tema da ética, não se podendo
analisá-los separadamente.
Neste
primeiro esboço, assinalamos apenas relações da ontologia em Foucault com a
filosofia de Kant. Mas, sabidamente, é necessário buscar as relações com
Nietzsche, Heidegger, Deleuze, os estoicos, entre outros. Mas, como assinalado
no início, é tarefa para próximos estudos, ao longo dos próximos anos,
contando com a ajuda de outros pesquisadores. De momento, atingimos nossa meta:
buscar indicativos para se discutir o tema da ontologia em Michel Foucault.
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verdade, o sujeito, a experiência. Belém: Cejup, 2000.
[i] A
expressão “velho chinês de Königsberg” é citada por Foucault (2011), no seu
texto para a Tese Complementar ao Doutorado, no qual analisa, em Kant, a
relação entre a Antropologia e o pensamento crítico, numa menção ao modo
como Nietzsche se refere a Kant em Para
além do bem e do mal (FOUCAULT, 2011, p. 96).
[ii] “Titres
et travaux” é o texto de apresentação de sua candidatura ao Collège de France,
em 1969, chamando seu projeto de pesquisa e de ensino de “História dos
sistemas de pensamento” (DE I, p.
874, texto no 71). Ver do mesmo autor: Dictionnaire
des Philosophes, em que declara poder-se “nomear seu empreendimento História crítica do pensamento”,
buscando, com isso, dar uma identidade mais abrangente a seu trabalho,
colocando-se “na esteira de Kant” (DE II,
p. 1450-1455, texto no 345).
[iii] Veja-se
o livro de Souza (2000), em que publica sua tese de doutoramento, defendida em
1995. Igualmente, nossa tese de doutorado defendida em 2008 e publicada como
livro (KRAEMER, 2011), além de diversos trabalhos em congressos e artigos
publicados nos últimos tempos.
[v] Parte
das críticas sobre as noções de episteme e de dispositivo é motivada por
uma forma de ler Foucault. Enquanto
ele apenas discute mecanismos específicos de saber-poder, ressaltando sua
não-universalidade e não-neutralidade, muitos o leem como um trabalho
prescritivo, uma opção teórica e ética, na qual o sujeito desapareceria.
Deve-se ter em conta, entretanto, o caráter de jogo que há, para Foucault, entre os mecanismos de sujeição e as
formas de enfrentamento.
[vi] Em
1984, no final de sua vida, ele salienta três deslocamentos teóricos de seu
trabalho: 1o “interrogar-me sobre as formas de práticas discursivas que
articulavam o saber [...] os jogos de verdade considerados entre si”; 2o
“interrogar-me, sobretudo sobre as relações múltiplas, as estratégias
abertas e as técnicas racionais que articulam o exercício dos poderes [...]
os jogos de verdade em referência às relações de poder”; 3o “pesquisar
quais são as formas e as modalidades da relação consigo, através das quais
o indivíduo se constitui como ‘sujeito’; [...] estudar os jogos de verdade na
relação de si para si e a constituição de si mesmo como sujeito” (História da sexualidade 2 – O uso dos prazeres, 1984, p. 11).
[xii] “Parto
de um problema nos termos em que ele se coloca atualmente e tento fazer disso a
genealogia. Genealogia quer dizer que levo a análise a partir de uma questão
presente” (“O cuidado com a verdade”, 1984, p. 81; “Le souci de la vérité”,
DE II, p. 1493).
[xiii] “Se
me dizem: ‘a filosofia fala em geral’, respondo que quando um filósofo afirma
que ele não fala de nada em particular, mas da experiência em geral, ele fala
em realidade de algo muito particular, quer dizer da experiência
historicamente definida que é a sua, mas que ele transformou e que ele fez
valer como uma experiência geral” (“Prisons et asiles dans le mécanisme du
pouvoir”, 1974, DE I, p. 1390, texto no 136).
[xiv] A
Aufklärung é citada na
“Introdução” a O Normal e o Patológico,
em 1978; na longa entrevista, em 1978, com D. Trombadori (DE II, texto no 281,
passagem em que se interroga sobre a promessa de liberdade da Aufklärung, que, através do exercício
da razão, não se poderia tornar uma forma de dominação, p. 892); em 1979:
“Pour une morale de l’inconfort” (DE II, p. 783, texto no 266); em 1978 no
“Qu’est-ce que la Critique?” (1990); em 1980 no “Postface” a L’Impossible Prison, de M. Perrot (DE
II, p. 855-856, texto no 279); em 1983, na entrevista com G. Rauler,
“Structuralisme et poststructuralisme”, relaciona o texto de Kant Was ist Aufklärung com a questão do
presente (DE II., p. 1267, texto no 330); no Curso no Collège de France, em
janeiro de 1983, “Qu’est-ce que les Lumières?”, que tem na Aufklärung seu eixo principal (DE II,
p. 1498-1507, texto no 351); também em 1983, na conferência em Berkeley, What is Enlightenment?, a Aufklärung é o ponto central do estudo
(DE II, p. 1381-1397, texto no 339). As referências a Kant são bastante
frequentes; aparecem em 20 “textos menores” desse período.
[xv] “O
que me preocupa (frappe) em vosso
raciocínio é que ele se mantém na forma do até então presente. Ora, um
empreendimento revolucionário é precisamente dirigido não somente contra o
presente, mas contra a lei do até então presente” (“Par-delá le bien et le
mal”. Entrevista com licenciados, em 1971. DE I, p. 1104, texto no 98).
[xvi] “Minha
posição, diz Foucault em 1977, é que não temos que propor. Desde o momento
em que se ‘propõe’, se propõe um vocabulário, uma ideologia, que não pode
ter senão efeitos de dominação. O que há a apresentar são os instrumentos
e as ferramentas que se julga poderem ser úteis. Constituindo grupos para
tentar precisamente fazer essas análises, conduzir essas lutas, utilizando
esses instrumentos ou outros, é assim, finalmente, que as possibilidades se
abrem” (“Enfermement, psychiatrie, prison”. Entrevista com D. Cooper, J. P.
Faye, M-O. Faye, M. Zecca, 1977. DE II, p. 348, texto no 209).
[xviii] Em
1982, “Kant, porém, pergunta [...]: o que somos nós, nesse momento preciso da
história? A questão de Kant aparece como uma análise de quem somos nós e do
nosso presente” (“Le sujet et le
pouvoir”. DE II, p. 1050-1051, texto no 306; “O sujeito e o poder”
(DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 239).
[xix]Aula do dia 3 de
janeiro de 1983 (DE II, p. 1506,
texto no 351). “O Que é o Iluminismo?” (O
Dossier, p. 112).
[xx] “À
propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours” (DE II, p. 1437, texto no 344). “Sobre a
Genealogia da ética: uma visão do trabalho em andamento” (O Dossier, p. 51). “[...] uma ontologia
histórica relacionada à ética”.
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