"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 19 de dezembro de 2015

A dialética da "senhor e do escravo"

“Uma passagem célebre da Fenomenologia do espírito ilustra bem a dialética, assim como algumas noções que a ela se associam. Ela introduz, pela primeira vez, a noção concreta do trabalho como um tema valorizado da reflexão filosófica, que prepara o materialismo dialético de Karl Marx. Eis a substância desse texto.
A consciência individual é autoafirmativa e apetitiva: visa a se estender e entra em conflito com outras consciências individuais, igualmente preocupadas em afirmar sua superioridade e em estender sua dominação. Desse modo acontece, inevitavelmente, a ‘luta pelo reconhecimento’. Levada até o fim, essa luta só pode terminar na morte ou na submissão de um dos dois protagonistas. A submissão é ditada pelo temor da morte; ela não é, portanto, necessariamente a expressão de uma inferioridade objetiva daquele que se submete. É assim que se estabelece uma relação subjetiva de subordinação e de poder: o escravo reconhece o senhor. A superioridade deste repousa fundamentalmente sobre o temor que ele inspira ao outro, obrigado a trabalhar para o mestre, que permanece livre para fluir da existência. Mas essa situação é dialética: ela contém os elementos de sua própria reviravolta. Com efeito, o senhor, levando uma vida de prazer e jamais se chocando com a dura realidade, vai tornar-se cada vez mais dependente desses prazeres e dos serviços prestados por seu escravo. Em contrapartida, o escravo vai tomar consciência de seu próprio valor e de sua importância, não só para o senhor, mas também de um modo mais geral: seu trabalho transformo o mundo material, humaniza a natureza, tornando-a útil para o homem. O escravo se reconhece nos produtos de seu trabalho; ele adquire um ‘savoir-faire’ [saber fazer] objetivo, que lhe garante a capacidade de dominar a natureza e de não ser dependente dela. O escravo se acha, portanto, mais livre que seu senhor. Este ultimo tem muito mais necessidade do primeiro do que este depende daquele.
Em Hegel, essa liberdade, conquistada na e por meio da servidão do trabalho, não vai além da tomada de consciência interior individual pelo escravo de seu próprio valor, dentro de um condição que ele continua, entretanto, a assumir estoicamente, sem empreender modifica-la.
Com Marx, a mesma dialética será considerada do ponto de vista não mais individual, mas coletivo, e a inversão da relação de forças será chamada a se concretizar. O escravo é então identificado com a classe trabalhadora, oprimida pela burguesia (tese), e que adquire, graças ao trabalho, superioridade e legitimidade objetivas. Estas se concretizarão pela revolução, que levará os proletários ao poder (antítese da dominação burguesa), no caminho da síntese final, que deve ser a Sociedade sem classes.”

HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à pós-modernidade:
 uma história da filosofia moderna e contemporânea.

Aparecida,SP: Ideias & Letras, 2008. P. 201-202.

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