domingo, 18 de outubro de 2015
Tutaméia
João Guimarães Rosa
Aqui está, o último livro do escritor,
Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e reflexão.
Por mais que o procure encarar como mero texto literário, desligado de contingências
pessoais, apresenta-se com agressiva vitalidade, evocando inflexões de voz,
jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A leitura de qualquer página sua é um
conjuro. Como entender o título do livro? No Pequeno dicionário brasileiro da língua
portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por mestre Aurélio como
"ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro". Numa glosa da
coletânea o próprio contista confirma a identidade dos dois termos,
juntando-lhes outros equivalentes pitorescos, tais como "nonada, baga,
ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela,
nica". Atribuiria ele realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase
carinhosa e, talvez, até supersticiosa? Inclinome para esta última suposição.
Em conversa comigo (numa daquelas conversas esfuziantes, estonteantes,
enriquecedoras e provocadoras que tanta falta me hão de fazer pela vida afora),
deixando de lado o recato da despretensão, ele me segredou que dava a maior
importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não
obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário.
Entre estes havia inter-relações as
mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu
exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o
livro sem desequilibrar o conjunto. A essa confissão verbal acresce outra,
impressa no fim da lista dos equivalentes do título, como mais uma equação:
"meaomnia'". Essa etimologia, tão sugestiva quanto inexata, faz tutaméia
vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o
ficcionista pôs no livro muito, senão tudo, de si. Mas também em nenhum outro
livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em
permanente alerta para policiar a emoção. – Por que Terceiras estórias – perguntei-lhe
– se não houve as segundas? – Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de
outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor,
supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar
mais um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias. – E que diz o
autor? – O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa com uma risada de
menino grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada.
Mostrou-me depois o índice no começo do
volume, curioso de ver se eu lhe descobria o macete. – Será a ordem alfabética
em que os títulos estão arrumados – Olhe melhor: há dois que estão fora da
ordem. – Por quê? – Senão eles achavam tudo fácil. "Eles" eram
evidentemente os críticos. Rosa, para quem escrever tinha tanto de brincar quanto
de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando prazer em aumentá-la.
Dir-se-ia até que neste volume quis
adrede submetê-los a uma verdadeira corrida de obstáculos. Seria esse o motivo
principal da multiplicação dos prefácios, de que o livro traz não um, mas
quatro? Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária.
Mas no caso do leitor que não se
contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter
serventia. Estórias à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de
revelar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma
arte poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por
meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de
expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda
arte.
Assim "Aletria e hermenêutica"
é pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma
definição de "estória" no sentido especificamente guimaraes-rosiano,
constante de mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma
classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar germes de
conto nas "anedotas de abstração", isto é, nas quais a expressão
verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas estórias,
portanto, são "anedóticas" na medida em que certas anedotas refletem,
sem querer, "a coerência do mistério geral que nos envolve e cria" e
faz entrever "o supra senso das coisas".
"Hipotrélico" aparece como
outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações vocabulares, não
lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E é a discussão, às
avessas, do direito que tem o escritor de criar palavras, pois o autor finge
combater "o vezo de palavrizar", retomando por sua conta os
argumentos de que já se viu acossado como deturpador do vernáculo e levando-os
ao absurdo: põe maliciosamente a vista as inconsequências dos que professam a
partenogênese da língua e se pasmam ante os neologismos do analfabeto, mas se
opõem a que "uma palavra nasça do amor da gente", assim "como
uma borboleta sai do bolso da paisagem". A "glosação em
apostilas" que segue esta página reforça-lhe a aparência pilhérica, mas em
Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e o anverso da mesma
medalha. O primeiro "prefácio" bastou para nos fazer compreender que
em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar o invisível. "Nós
os temulentos" deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos
depara. Conta a odisseia que para um borracho representa a simples volta a
casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em
uma sucessão de prosopopeias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro
temulento que é o poeta, um agente de transfigurações do real. Finalmente
confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida,
envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas,
poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas.
É o próprio ficcionista que entrevemos
de início num restaurante chic de Paris a discutir com um alter ego, também
escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o alheamento a realidade:
"Você evita o espirrar e o mexer da realidade, então foge-não-foge."
Surpreendidos de se encontrarem face a face, os dois eus encaram-se
reciprocamente como personagens saídas da própria imaginativa, perturbados e ao
mesmo tempo encantados com a sua "sociedade" (sic!), tecendo uma
palestra rapsódica de ébrios em que o tema do engagement ressurge volta e meia como
preocupação central. O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um
livro juntos; este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com
que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal "da rude redenção
do povo".
Mas a resposta é acusação de alheamento
deve ser buscada também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar,
põe-se em dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada
fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o
inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido, afirmado,
exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência
mística, sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias
"aborígenes" a oscilar incessantemente entre azarado e feliz, até enredá-lo
numa decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida
influência de nossa vontade nos acontecimentos, as decorrências totalmente
imprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu primeiro
inconformismo de menino em discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos,
o uso racional da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa
época em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a
precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e supraconsciente da inspiração,
trazendo como exemplo a gênese de várias de suas obras, precisamente as de mais
valor, antes impostas do que projetadas de dentro para fora. Para arrematar a série
de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu
de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira
as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um
romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado
de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação implícita da
intencionalidade e do realismo: "Um livro a ser certo devia de se confeiçoar
da parte de Deus, depor paz para todos." Arrependido de tanto haver
revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de despistamento,
completou o quarto e último prefácio com um glossário de termos que nele nem
figuram, mas que representam outras tantas idiossincrasias suas, ortográficas e
fonéticas, a exigir emendas nos repositórios da língua. Absorvidos pelos prefácios,
ei-nos apenas no limiar dos quarenta contos merecedores de outra tentativa de
abordagem. Quantas vezes, mesmo nesta breve cabra-cega preliminar, terei
passado ao lado das intenções esquivas do contista, quantas vezes as suas negaças
me terão levado a interpretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não mais o
pode dizer; mas será que o diria? Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de
Guimarães Rosa, contém quarenta "estórias" curtas, de três a cinco páginas,
extensão imposta pela revista em que a maioria (ou todas) foram publicadas.
Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o
escritor a excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se
aproximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos
que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em
potencial comprimidos ao máximo.
Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada.
Pelo contrário, quarenta vezes há de embrenhar-se em novas veredas, entrever
perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de outros tantos silvados.
Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais epigramático, Guimarães Rosa
ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua fórmula, só entregando o seu legado
e recado em troca de atenção e adesão totais. A unidade dessas quarenta
narrativas está na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas
elas se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as
estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem
se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário.
Cenários ermos e rústicos, intocados
pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina
secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos.
Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização
urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores
de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias,
capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a
hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse
mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas
capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe
forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora
serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo,
para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição. Através dos anos e
não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados
de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas. Nunca se
rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela
humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com
eles a sua angustia existencial. A cada volta do caminho suas personagens
humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam
encontrar o sentido da aventura humana: "Viver é obrigação sempre
imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem,
ainda diferente, ausente." "A gente quer mas não consegue furtar no
peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo."
"Quem quer viver, faz mágica." A transliteração desse universo
opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto
determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias,
da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e
o sentencioso, o tautológico e o eloquente, a facilidade com que adapta o seu
cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente preferência
pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e
impressionar são aqui transformados em processos estilísticos.
Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo
papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em
flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo
insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar,
ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nomina, panema, pataratesco, quera,
safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo,
arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos frequentes, a palavra nova
representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada por
uma memória privilegiada ou esguichada pela inspiração do momento (associoso,
borralheirar, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinição,
inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas deles!,
reflor!, reminisção etc) Com frequência bem menor há, afinal, as criações de
inegável cunho individual, do tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático
de mel, metalurgir, orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico
se compraz a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo,
as que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães
Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de
anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer.
Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de
caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim do
volume, tentar uma classificação das narrativas. É provável que a ordem alfabética
de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamento e que a sucessão
delas obedeça a intenções ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância,
pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de
estados de alma sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas
cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos.
Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-se-me um sugerido
pelo que, por falta de melhor termo, denominaria de atonímia metafísica. Essa
figura estilística, de mais a mais frequente nas obras do nosso autor, surge em
palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos
percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria,
improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar (com alguém),
desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefotar-se etc,
ou em frases como "Tinha o para não ser célebre." Dentro do contexto,
tais expressões claramente indicam algo mais do que a simples negação do antônimo:
aludem a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas do
que não é. Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexistente
entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros
inventam um boi cuja ideia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente
("Os três homens e o boi"). Alguém, agarrado a um fragmento de frase
que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida ("Lá nas
campinas"). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela, visto
de perto, um marruá manso ("Hiato"). Noutras peças, o que não é passa
a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante
obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante aos demais a
enganosa imagem que dela formara "Reminisção"). A ideia da existência,
longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a safar-se de suas crises
("Rebimba o bom"). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela
outra margem do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama
("Ripuaria"). Alguém ("João Porém, o criador de perus")
cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas. Num terceiro
grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter havido,
a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo
livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso
cangaceiro ("Barra de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito
de pesquisas escapa com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do
hospedeiro bronco ("Como ataca a sucuri").
Enganado duas vezes, um apaixonado
prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva
com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo").
Noutros contos o desenlace não e um
"desenredo", mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos
produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis da causalidade:
daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto.
Por entender de través uma frase de
sermão, um lavrador ("Grande Gedeão") para de trabalhar; e melhora de
sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva;
mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma
escola. Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma
enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante"). Nessa ordem de
eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso"), cuja força
consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins,
apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais
tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa
continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula;
nem a grande epopeia cigana de que neste livro afloram três leves amostras
("Faraó e a Água do rio", "O outro ou o outro", "Zingaresca"),
provas da atração especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de
irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários é integração social, artistas
da palavra e do gesto. Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras
que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando
a vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira dentro
das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação. Seja-me permitido
citar as duas que mais me subjugaram pela sua condensação, dos romances em
embrião que fazem descortinar os horizontes mais amplos. "Antiperipleia"
e o relatório feito em termos ambíguos por um aleijado, ex-guia de cego, do
acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e
rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes enquanto tenta
fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio;
"Esses Lopes" é a história, também contada pela protagonista, de um
clã de brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha
indefesa a quem julgavam reduzir a amante e escrava. Duas obras-primas em
poucas páginas que bastavam para assegurar a seu autor uma posição excepcional.
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