"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

domingo, 11 de outubro de 2015

SAGARANA

Guimarães Rosa

DO AUTOR
Nascido no dia 27/jun/1908, na pequena cidade de Cordisburgo, a meio caminho entre Sete Lagoas e Curvelo, Guimarães Rosa era filho de um pequeno comerciante e passou sua primeira infância entre peões, passarinhos e limos, principalmente limos. Míope sem o saber, o pequenino afastava-se do convívio dos outros garotos e dedicava-se a atividades solitárias ou a ouvir os "causos" contados pelos fregueses ou pelos viajantes que frequentavam o pequeno armazém de seu pai. Vem daí o seu primeiro contata com o folclore e o rico imaginário do homem do sertão.
"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvirias".
Viveu em Cordisburgo até os dez anos de idade. Foi fazer o ginásio em Belo Horizonte, por essa época, já era capaz de ler em francês e holandês. Sua espantosa capacidade para aprender línguas levou-o a aprender japonês, ainda cursando o ginasial. Mas deixemos que ele mesmo fale um pouco mais de si. Em entrevista concedida a Gúnter Lorenz, crítico literário alemão, em 1965, dentre outras coisas Guimarães Rosa disse:
"Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha história, sobretudo minha biografia literária, não devida ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros Ao avesso; para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Enfim ás palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um "magister" da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e es curvos como o sofrimento dos homens. Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua extremidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar extremidade. A estas alturas, você já deve estar me considerando um louco ou um charlatão." (...) "Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim".
Esta introdução parece um conto de fadas, isto é, a vida de GR parece ficção, entretanto ele é verdadeiro. Um homem alto, bem humorado, sempre bem vestido e (dizem) vaidoso ao extremo. Seus s, suas estórias ai estão para comprovar e encantar leitores e estudiosos de várias partes do mundo.
Na juventude, antes de formar-se em Medicina, concorreu a vários concursos de contos em uma revista bastante popular na época (O Cruzeiro (e venceu todas as vezes em que concorreu). Esse tipo de literatura, entretanto, foi abandonado e nada tem a ver com a obra consagrada do autor.
Formado em Medicina, exerceu a profissão, em ltaúna, por dois anos, cativando a admiração de seus pacientes pela dedicação e pelo aceno de seu trabalho. Em suas longas cavalgadas para atender os doentes, aproveitava para conhecer e apreciar os elementos da natureza e o modo de vida e a fantasia dos homens do sertão, elementos que, depois, profusamente nas narrativas que escrevia
Participou como oficial médico na Revolução Constitucionalista de 32 e posteriormente foi oficial médico das Forças armadas de Minas Gerais, até ser aprovado em um concurso para o Itamarati, dedicando-se, dai, à carreira diplomática. Data dessa época sua participação em 2 concursos literários:
Concorreu ao prêmio de poesia do Rosa concurso da Academia Brasileira de Letras, com o de poemas "Magma" e ao prêmio Humberto de Campos, com o livro "contos", mais tarde refundido e publicado com o nome de "Sagarana".
"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografa resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor morte..." Diria mais tarde sobre esse lance de sua vida.
Em 1946, publicou o livro Sagarana, que lhe rendeu a admiração e o reconhecimento de grande pane da crítica, como se pode perceber no fragmento transcrito abaixo:
"Para aquele que tem a obrigação profissional da crítica literária, sentindo muitas vezes esse gosto momo da rotina que vem do contato com figuras já muito conhecidas ou com obras de estreia sem qualquer novidade, nenhuma outra sensação - porque ela vale como um despertar, como um estímulo, como motivo para quer se Mantenha tenha a fé nas faculdades coadoras de sua época intelectual poderá ser comparada a esta de comunicar ao público a presença de um livro inconfundível na literatura e de um autor de autêntica personalidade na vida literária. E isto sem qualquer dúvida ou temor de errar, antes com a certeza de que nós achamos completamente fora do terreno oscilante da mediania e do mais ou menos, colocados em face de um excepcional acontecimento. Tudo se processa, afias, bem rapidamente. Um estímulo, Como de resto o de qualquer livro, nunca pode ser esperado ou previsto. De repente chega-nos o volume, e é uma grande obra que amplia o tempo cultural de uma literatura, que lhe acrescenta alguma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo tempo que um nome de escritor, até ontem ignorado do público, penetra ruidosamente na vida literária para ocupar desde logo um dos seus primeiros lugares. O livro é Sagarana e o escritor é o Sr. J. Guimarães Rosa. * *
OBRA
Sagarana, 1946 - contos; "O Burrico Pedrês" "A volta do Marido Pródigo"; "Sarapalha"; "Duelo"; "Minha Gente"; "São Marcos"; "Corpo Fechado"; "Conversa de Bois" ; "A flora e vez de Augusto Matraca" ; Corpo de Ballc, 1956 - novelas; Manuelzão e Miguilim ("Campo Geral"' e "Uma Estória de Amor"); No Urubuquaquá, no Pinhém ("O Recado do Morro", "Cara de Bronze" e "Lélio e Lina"); Noites do Sertão ("Lão-Dalalão" e "Buriti"); Grande Sertão: veredas, 1956 - romance; Primeiras Estórias, l962 - contos; Tutaméia - Terceiras Estórias, 1967 - contos; Estas Estórias, 1969 - contos. (PÓSTUMA); Ave, Palavra, 1970 - contos. (PÓSTUMA).
A grande força da imaginação de Guimarães Rosa, alia-se ao seu extraordinário conhecimento linguístico, tanto da língua materna quanto de outras línguas, faz dele um autor ímpar no panorama da moderna literatura brasileira.
Guimarães Rosa foi um escritor com alma jornalística. Andava pelo sertão, viajava caiu vaqueiros, convivia com as pessoas humildas e simples do interior e anotava. Anotava os "causos", as expressões inusitadas, os provérbios, as lendas, os ditos e as interpretações. Nada lhe escapava. A observação da natureza, as aves, os animais, a flora, os rios, tudo foi sendo incorporado aos poucos para formar um grande patrimônio de conhecimento que ele tão prodigamente nos legou em páginas imortais.
Da coleta do material bruto no início do povo, de sua manipulação linguística c fabularão ás vezes irônica, ás vazes brincalhona, muitas vezes mística, temos o processo de criação que vai refletir a vida social, os costumes, os medos, as superstições, as crendices c o comportamento de seus personagens. Temos a comprovação concreta dessa metodologia em várias passagens recolhidas aqui e ali:
"Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para a Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota" (Corpo Fechado).
"Nonada. Tiros que o senhor ouviu forma briga de homem não." (Grande Sertão: veredas)
"A vida é um vago variado. O senhor escreva no clareio: sete páginas..." (Grande Sertão: veredas).
"O senhor enche urna caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? " (Grande Sertão: veredas)
"Se o senhor doutor está achando alguma boniteza nesses pássaros, eu cá é que não vou dizer que eles são feios..." (Minha Gente).
"Minas Gerais... Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão..."(Minha Gente).
"Sim, que, a parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado." (São Marcos) "As palavras têm canto e plumagem." (São Marcos).
UM CHAMADO JOÃO* CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE João era fabulista? Fabuloso? fábula?
Sertão mística disparando. No exílio da linguagem comum? Projetava na gravatinha a quinta face das coisas, inenarrável narrada? Um estranho chamado João para disfarçar, para forçar o que não ousamos compreender? Tinha pastos, buritis plantados no apartamento?
Vegetal ele era ou passarinho sob a robusta ossatura com pinta de boi risonho? Era um teatro e todos os artistas no mesmo papel, ciranda multivocal? João era tudo? Tudo escondido, florindo como flor é flor, mesmo não semeada? Mapa com acidentes deslizando para fora, falando? Guardava rios no bolso, cada qual com a cor de suas águas?
Como misturar, sem conflitar? E de cada gota redigia nome, cura, fim, e no destinado geral seu fado era saber para contar sem desnudar o que não deve ser desnudado e por isso se veste de céus novos? Mágico sem apetrechos, civilmente mágico, apelado de precipites prodígios acudindo a chamado geral? Embaixador do reino que há por trás dos reinos, dos poderes, das supostas fórmulas de abracadabra, sésamo? Reino cercado não de muros, chaves, códigos, mas o reino-reino? Por que João sorria? se lhe perguntavam que mistério é esse? E propondo desenhos figurava menos a resposta que outra questão ao perguntante? Tinha parte com... (não sei o nome) ou ele mesmo era a parte de gente servindo de ponte entre o sub e o sobre que se arcabuzeiam de antes do princípio, que se entrelaçam para melhor guerra, para maior festa? Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar.


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