sábado, 31 de outubro de 2015
O que é a ética?
“Por que ética? E o que é a ética? Não poderemos
nos contentar com uma representação qualquer ou indeterminada. Da mesma forma,
pressupondo uma pré-compreensão completamente indeterminada, desde o início
podemos nos perguntar: por que afinal devemos nos ocupar com a ética? Na
filosofia, mas também nos currícula das escolas, a ética parece ser um fenômeno
da moda.
Entre os jovens intelectuais,
antigamente havia interesse mais pelas chamadas teorias críticas da sociedade.
Ao contrário disto, na ética supõe-se uma reflexão sobre valores reduzida ao
individual e ao inter-humano. E teme-se que aqui, contudo, não seria possível
encontrar nada de obrigatório, a não ser remontando-se a tradições cristãs ou
de outras religiões. É o ético, ou então, ao contrário, as relações de poder,
que são determinantes na vida social? E estas não determinam, por sua vez, as
representações éticas de um tempo? E se isto é assim, ao se pretender lidar
diretamente com a ética e não a partir de uma perspectiva de crítica da
ideologia, não representaria isto um retorno a uma ingenuidade hoje
insustentável?
Por outro lado, não podemos
desconsiderar que, tanto no âmbito das relações humanas quanto no político,
constantemente julgamos de forma moral. No que diz respeito às relações
humanas, basta observar que um grande espaço nas discussões entre amigos, na
família ou no trabalho abrange aqueles sentimentos que pressupõem juízos
morais: rancor e indignação, sentimento de culpa e de vergonha. Também no
domínio político julga-se moralmente de forma contínua, e valeria a pena considerar
que aparência teria uma disputa política não conduzida pelo menos por
categorias morais. O lugar de destaque que os conceitos de democracia e de
direitos humanos assumiram nas discussões políticas atuais também é, mesmo que
não exclusivamente, de caráter moral.
A discussão sobre justiça social, seja
em âmbito nacional ou mundial, é também uma discussão moral. Quem rejeita a reivindicação de um certo conceito de justiça quase nem o pode fazer sem
contrapor-lhe um outro conceito de justiça. Em verdade as relações de poder de
fato são determinantes, mas é digno de nota que elas necessitem do revestimento
moral.
Por fim, existe uma série de discussões
políticas relativas aos direitos de grupos particulares ou marginalizados, as
quais devem ser vistas como questões puramente morais: a questão acerca de uma
lei de imigração limitada ou ilimitada, a questão do asilo, os direitos dos
estrangeiros, a questão sobre em que medida nos deve ser permitida ou proibida
a eutanásia ou o aborto; os direitos dos deficientes; a questão de se também
temos obrigações morais perante os animais, e quais. Acrescentam-se aqui as
questões da ecologia e da nossa responsabilidade moral para com as gerações que
nos sucederão. Uma nova dimensão moralmente desconcertante é a da tecnologia
genética.
O complexo de questões acima mencionado
diz respeito a estados de coisas que em parte são novos (por exemplo, a
tecnologia genética), e em parte alcançaram, através do avanço tecnológico, um
lugar de destaque até agora não existente (por exemplo, a responsabilidade para
com as gerações futuras, e algumas questões da eutanásia). Outras questões já
estavam desde a antiguidade presentes, mas encontram-se fortemente colocadas na
consciência geral — e podemos nos perguntar por quê: por exemplo, problemas das
minorias, aborto, animais. Não se encontra aqui pelo menos uma das razoes pelas
quais a ética novamente é tomada de forma importante? A maioria das éticas
antigas — por exemplo, as kantianas — tinham em vista apenas aquelas normas que
desempenhavam um papel na vida intersubjetiva de adultos contemporâneos e
situados em uma proximidade espaço-temporal; e de repente sentimo-nos
desorientados em confronto com os problemas do aborto, da pobreza do mundo, das
próximas gerações ou da tecnologia genética.”
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre
ética.
Petrópolis: Vozes, 1996. P. 11-13.
Exercícios para fixação
1. O autor refere-se ao grande espaço
reservado aos temas éticos nas discussões entre as pessoas. Faça uma lista
desses temas, escolha um deles e posicione-se.
2. O sentimento de indignação ou de
vergonha indica que participamos de uma comunidade moral. Dê um exemplo e
explique por quê?
3. Qual é a relação entre política e
ética? A partir dessa relação, destaque a questão da justiça como um dos temas
centrais da ética.
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domingo, 18 de outubro de 2015
Tutaméia
João Guimarães Rosa
Aqui está, o último livro do escritor,
Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e reflexão.
Por mais que o procure encarar como mero texto literário, desligado de contingências
pessoais, apresenta-se com agressiva vitalidade, evocando inflexões de voz,
jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A leitura de qualquer página sua é um
conjuro. Como entender o título do livro? No Pequeno dicionário brasileiro da língua
portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por mestre Aurélio como
"ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro". Numa glosa da
coletânea o próprio contista confirma a identidade dos dois termos,
juntando-lhes outros equivalentes pitorescos, tais como "nonada, baga,
ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela,
nica". Atribuiria ele realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase
carinhosa e, talvez, até supersticiosa? Inclinome para esta última suposição.
Em conversa comigo (numa daquelas conversas esfuziantes, estonteantes,
enriquecedoras e provocadoras que tanta falta me hão de fazer pela vida afora),
deixando de lado o recato da despretensão, ele me segredou que dava a maior
importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não
obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário.
Entre estes havia inter-relações as
mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu
exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o
livro sem desequilibrar o conjunto. A essa confissão verbal acresce outra,
impressa no fim da lista dos equivalentes do título, como mais uma equação:
"meaomnia'". Essa etimologia, tão sugestiva quanto inexata, faz tutaméia
vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o
ficcionista pôs no livro muito, senão tudo, de si. Mas também em nenhum outro
livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em
permanente alerta para policiar a emoção. – Por que Terceiras estórias – perguntei-lhe
– se não houve as segundas? – Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de
outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor,
supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar
mais um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias. – E que diz o
autor? – O autor não diz nada – respondeu Guimarães Rosa com uma risada de
menino grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada.
Mostrou-me depois o índice no começo do
volume, curioso de ver se eu lhe descobria o macete. – Será a ordem alfabética
em que os títulos estão arrumados – Olhe melhor: há dois que estão fora da
ordem. – Por quê? – Senão eles achavam tudo fácil. "Eles" eram
evidentemente os críticos. Rosa, para quem escrever tinha tanto de brincar quanto
de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando prazer em aumentá-la.
Dir-se-ia até que neste volume quis
adrede submetê-los a uma verdadeira corrida de obstáculos. Seria esse o motivo
principal da multiplicação dos prefácios, de que o livro traz não um, mas
quatro? Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária.
Mas no caso do leitor que não se
contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter
serventia. Estórias à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de
revelar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma
arte poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por
meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de
expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda
arte.
Assim "Aletria e hermenêutica"
é pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma
definição de "estória" no sentido especificamente guimaraes-rosiano,
constante de mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma
classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar germes de
conto nas "anedotas de abstração", isto é, nas quais a expressão
verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas estórias,
portanto, são "anedóticas" na medida em que certas anedotas refletem,
sem querer, "a coerência do mistério geral que nos envolve e cria" e
faz entrever "o supra senso das coisas".
"Hipotrélico" aparece como
outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações vocabulares, não
lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E é a discussão, às
avessas, do direito que tem o escritor de criar palavras, pois o autor finge
combater "o vezo de palavrizar", retomando por sua conta os
argumentos de que já se viu acossado como deturpador do vernáculo e levando-os
ao absurdo: põe maliciosamente a vista as inconsequências dos que professam a
partenogênese da língua e se pasmam ante os neologismos do analfabeto, mas se
opõem a que "uma palavra nasça do amor da gente", assim "como
uma borboleta sai do bolso da paisagem". A "glosação em
apostilas" que segue esta página reforça-lhe a aparência pilhérica, mas em
Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e o anverso da mesma
medalha. O primeiro "prefácio" bastou para nos fazer compreender que
em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar o invisível. "Nós
os temulentos" deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos
depara. Conta a odisseia que para um borracho representa a simples volta a
casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em
uma sucessão de prosopopeias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro
temulento que é o poeta, um agente de transfigurações do real. Finalmente
confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida,
envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas,
poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas.
É o próprio ficcionista que entrevemos
de início num restaurante chic de Paris a discutir com um alter ego, também
escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o alheamento a realidade:
"Você evita o espirrar e o mexer da realidade, então foge-não-foge."
Surpreendidos de se encontrarem face a face, os dois eus encaram-se
reciprocamente como personagens saídas da própria imaginativa, perturbados e ao
mesmo tempo encantados com a sua "sociedade" (sic!), tecendo uma
palestra rapsódica de ébrios em que o tema do engagement ressurge volta e meia como
preocupação central. O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um
livro juntos; este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com
que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal "da rude redenção
do povo".
Mas a resposta é acusação de alheamento
deve ser buscada também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar,
põe-se em dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada
fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o
inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido, afirmado,
exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência
mística, sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias
"aborígenes" a oscilar incessantemente entre azarado e feliz, até enredá-lo
numa decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida
influência de nossa vontade nos acontecimentos, as decorrências totalmente
imprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu primeiro
inconformismo de menino em discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos,
o uso racional da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa
época em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a
precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e supraconsciente da inspiração,
trazendo como exemplo a gênese de várias de suas obras, precisamente as de mais
valor, antes impostas do que projetadas de dentro para fora. Para arrematar a série
de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu
de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira
as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um
romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado
de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação implícita da
intencionalidade e do realismo: "Um livro a ser certo devia de se confeiçoar
da parte de Deus, depor paz para todos." Arrependido de tanto haver
revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de despistamento,
completou o quarto e último prefácio com um glossário de termos que nele nem
figuram, mas que representam outras tantas idiossincrasias suas, ortográficas e
fonéticas, a exigir emendas nos repositórios da língua. Absorvidos pelos prefácios,
ei-nos apenas no limiar dos quarenta contos merecedores de outra tentativa de
abordagem. Quantas vezes, mesmo nesta breve cabra-cega preliminar, terei
passado ao lado das intenções esquivas do contista, quantas vezes as suas negaças
me terão levado a interpretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não mais o
pode dizer; mas será que o diria? Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de
Guimarães Rosa, contém quarenta "estórias" curtas, de três a cinco páginas,
extensão imposta pela revista em que a maioria (ou todas) foram publicadas.
Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o
escritor a excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se
aproximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos
que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em
potencial comprimidos ao máximo.
Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada.
Pelo contrário, quarenta vezes há de embrenhar-se em novas veredas, entrever
perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de outros tantos silvados.
Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais epigramático, Guimarães Rosa
ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua fórmula, só entregando o seu legado
e recado em troca de atenção e adesão totais. A unidade dessas quarenta
narrativas está na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas
elas se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as
estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem
se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário.
Cenários ermos e rústicos, intocados
pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina
secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos.
Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização
urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores
de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias,
capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a
hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse
mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas
capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe
forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora
serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo,
para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição. Através dos anos e
não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados
de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas. Nunca se
rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela
humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com
eles a sua angustia existencial. A cada volta do caminho suas personagens
humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam
encontrar o sentido da aventura humana: "Viver é obrigação sempre
imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem,
ainda diferente, ausente." "A gente quer mas não consegue furtar no
peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo."
"Quem quer viver, faz mágica." A transliteração desse universo
opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto
determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias,
da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e
o sentencioso, o tautológico e o eloquente, a facilidade com que adapta o seu
cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente preferência
pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e
impressionar são aqui transformados em processos estilísticos.
Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo
papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em
flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo
insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar,
ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nomina, panema, pataratesco, quera,
safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo,
arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos frequentes, a palavra nova
representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada por
uma memória privilegiada ou esguichada pela inspiração do momento (associoso,
borralheirar, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinição,
inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas deles!,
reflor!, reminisção etc) Com frequência bem menor há, afinal, as criações de
inegável cunho individual, do tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático
de mel, metalurgir, orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico
se compraz a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo,
as que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães
Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de
anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer.
Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de
caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim do
volume, tentar uma classificação das narrativas. É provável que a ordem alfabética
de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamento e que a sucessão
delas obedeça a intenções ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância,
pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de
estados de alma sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas
cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos.
Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-se-me um sugerido
pelo que, por falta de melhor termo, denominaria de atonímia metafísica. Essa
figura estilística, de mais a mais frequente nas obras do nosso autor, surge em
palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos
percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria,
improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar (com alguém),
desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefotar-se etc,
ou em frases como "Tinha o para não ser célebre." Dentro do contexto,
tais expressões claramente indicam algo mais do que a simples negação do antônimo:
aludem a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas do
que não é. Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexistente
entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros
inventam um boi cuja ideia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente
("Os três homens e o boi"). Alguém, agarrado a um fragmento de frase
que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida ("Lá nas
campinas"). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela, visto
de perto, um marruá manso ("Hiato"). Noutras peças, o que não é passa
a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante
obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante aos demais a
enganosa imagem que dela formara "Reminisção"). A ideia da existência,
longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a safar-se de suas crises
("Rebimba o bom"). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela
outra margem do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama
("Ripuaria"). Alguém ("João Porém, o criador de perus")
cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas. Num terceiro
grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter havido,
a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo
livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso
cangaceiro ("Barra de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito
de pesquisas escapa com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do
hospedeiro bronco ("Como ataca a sucuri").
Enganado duas vezes, um apaixonado
prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva
com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo").
Noutros contos o desenlace não e um
"desenredo", mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos
produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis da causalidade:
daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto.
Por entender de través uma frase de
sermão, um lavrador ("Grande Gedeão") para de trabalhar; e melhora de
sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva;
mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma
escola. Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma
enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante"). Nessa ordem de
eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso"), cuja força
consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins,
apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais
tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa
continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula;
nem a grande epopeia cigana de que neste livro afloram três leves amostras
("Faraó e a Água do rio", "O outro ou o outro", "Zingaresca"),
provas da atração especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de
irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários é integração social, artistas
da palavra e do gesto. Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras
que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando
a vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira dentro
das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação. Seja-me permitido
citar as duas que mais me subjugaram pela sua condensação, dos romances em
embrião que fazem descortinar os horizontes mais amplos. "Antiperipleia"
e o relatório feito em termos ambíguos por um aleijado, ex-guia de cego, do
acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e
rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes enquanto tenta
fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio;
"Esses Lopes" é a história, também contada pela protagonista, de um
clã de brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha
indefesa a quem julgavam reduzir a amante e escrava. Duas obras-primas em
poucas páginas que bastavam para assegurar a seu autor uma posição excepcional.
O quinze
Rachel
de Queiroz
O primeiro e mais popular romance de Rachel de
Queiroz é “O Quinze”, uma obra do Modernismo de 1930. O título se refere a
grande seca de 1915, vivida pela escritora em sua infância. O romance se dá em
dois planos, um enfocando o vaqueiro Chico Bento e sua família, o outro a relação
afetiva de Vicente, rude proprietário e criador de gado, e Conceição, sua prima
culta e professora.
Vicente e
Conceição
Conceição é apresentada
como uma moça que gosta de ler vários livros, inclusive de tendências
feministas e socialistas o que estranha a sua avó, Mãe Nácia representante das
velhas tradições. No período de férias, Conceição passava na fazenda da família,
no Logradouro, perto do Quixadá. Apesar de ter 22 anos, não dizia pensar em
casar, mas sempre se "engraçava" ao seu primo Vicente. Ele era o
proprietário que cuidava do gado, era rude e até mesmo selvagem.
Com o advento
da seca, a família de Mãe Nácia decide ir para cidade e deixar Vicente cuidando
de tudo, resistindo. Trabalhava incessantemente para manter os animais vivos.
Conceição, trabalhava agora no campo de concentração onde ficavam alojados os
retirantes, e descobre que seu primo estava "de caso" com "uma
caboclinha qualquer". Enquanto ela se revolta, Mãe Nácia à consola dizendo:
"Minha filha, a vida é assim mesmo... Desde
hoje que o mundo é mundo... Eu até acho os homens de hoje melhores."
Vicente se
encontra com Conceição e sem perceber confessa as temerosidades dela. Ela começa
a trata-lo de modo indiferente. Vicente se ressente disso e não consegue
entender a razão.
As irmãs de
Vicente armam um namoro entre ele e uma amiga, a Mariinha Garcia. Ele porém se
espanta ao "saber" que estava namorando, dizendo que apenas era solícito
para com ela e não tinha a menor intenção de comprometimento.
Conceição
percebe a diferença de vida entre ela e seu primo e a quase impossibilidade de
comunicação. A seca termina e eles voltam para o Logradouro.
Chico Bento e
sua família
Sem dúvida a
parte mais importante do livro. Apresenta a marcha trágica e penosa do vaqueiro
Chico Bento com sua mulher e seus 5 filhos, representando os retirantes. Ele é forçado
a abandonar a fazenda onde trabalhara. Junta algum dinheiro, compra mantimentos
e uma burra para atravessar o sertão. Tinham o intuito de trabalhar no Norte,
extraindo borracha.
No percurso, em
momento de grande fome, Josias, o filho mais novo, come mandioca crua,
envenenando-se. Agonizou até a morte. O seu fim está bem descrito nessa
passagem:
"Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à
beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai.
Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome,
estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para
cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz."
Uma cena
marcante na vida do vaqueiro foi a de matar uma cabra e depois descobrir que
tinha dono. Este o chamou de ladrão, e levou o resto da cabra para sua casa,
dando-lhes apenas as tripas para saciarem. Léguas após, Chico Bento dá falta do
seu filho mais velho Pedro. Chegando ao Aracape, lugar onde supunha que ele
pudesse ser encontrado, avista um compadre que era o delegado. Recebem alguns mantimentos,
mas não é possível encontrar o filho. Ficam sabendo que o menino tinha fugido
com comboieiros de cachaça. Notem:
"Talvez fosse até para a felicidade do menino.
Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?"
Ao chegarem no
campo de concentração, são reconhecidos por Conceição, sua comadre. Ela arranja
um emprego para Chico Bento e passa a viver com um de seus filhos. Conseguem
também uma passagem de trem e viajam para São Paulo, desistindo de trabalhar
com a borracha.
domingo, 11 de outubro de 2015
SAGARANA
Guimarães Rosa
DO AUTOR
Nascido no dia 27/jun/1908, na pequena cidade de
Cordisburgo, a meio caminho entre Sete Lagoas e Curvelo, Guimarães Rosa era filho de um
pequeno comerciante e passou sua primeira infância entre peões, passarinhos e limos, principalmente limos. Míope sem o saber, o
pequenino afastava-se do convívio dos outros garotos e dedicava-se a atividades
solitárias
ou a ouvir os "causos" contados pelos fregueses ou pelos viajantes
que frequentavam o pequeno armazém de seu pai. Vem daí o seu primeiro contata com o
folclore e o rico imaginário do homem do sertão.
"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas
grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o
tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais
queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui
rancoroso e revolucionário permanente, então já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia. Gostava de
estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de
algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta.
Deitar no chão e
imaginar estórias,
poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as
melhores coisas vistas e ouvirias".
Viveu em Cordisburgo até
os dez anos de idade. Foi fazer o ginásio em Belo Horizonte,
por essa época,
já era
capaz de ler em francês e holandês. Sua espantosa capacidade para aprender línguas levou-o a aprender
japonês,
ainda cursando o ginasial. Mas deixemos que ele mesmo fale um pouco mais de si.
Em entrevista concedida a Gúnter Lorenz, crítico literário alemão, em 1965, dentre outras
coisas Guimarães
Rosa disse:
"Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais
dados numéricos.
Minha história,
sobretudo minha biografia literária, não devida ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E
meus livros Ao avesso; para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um
novo pedaço do
infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez.
Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo,
repito o que já vivi antes. E estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Enfim ás palavras, gostaria de
ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um
"magister" da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de
sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um
crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranquilos e es curvos como o sofrimento dos homens.
Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua extremidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar extremidade.
A estas alturas, você já deve estar me considerando um louco ou um charlatão." (...) "Às
vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim".
Esta introdução parece um conto de fadas, isto é, a vida de GR parece ficção, entretanto ele é verdadeiro. Um homem
alto, bem humorado, sempre bem vestido e (dizem) vaidoso ao extremo. Seus s,
suas estórias
ai estão
para comprovar e encantar leitores e estudiosos de várias partes do mundo.
Na juventude, antes de formar-se em Medicina,
concorreu a vários
concursos de contos em uma revista bastante popular na época (O Cruzeiro (e
venceu todas as vezes em que concorreu). Esse tipo de literatura, entretanto,
foi abandonado e nada tem a ver com a obra consagrada do autor.
Formado em Medicina, exerceu a profissão, em ltaúna, por dois anos,
cativando a admiração de seus pacientes pela dedicação e pelo aceno de seu
trabalho. Em suas longas cavalgadas para atender os doentes, aproveitava para
conhecer e apreciar os elementos da natureza e o modo de vida e a fantasia dos
homens do sertão, elementos que, depois, profusamente nas narrativas
que escrevia
Participou como oficial médico na Revolução Constitucionalista de
32 e posteriormente foi oficial médico das Forças armadas de Minas Gerais, até ser aprovado em um
concurso para o Itamarati, dedicando-se, dai, à
carreira diplomática. Data dessa época sua participação em 2 concursos literários:
Concorreu ao prêmio de poesia do Rosa concurso da Academia Brasileira
de Letras, com o de poemas "Magma" e ao prêmio Humberto de Campos,
com o livro "contos", mais tarde refundido e publicado com o nome de
"Sagarana".
"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e
sua biografa resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado.
Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo.
Como médico
conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor morte..." Diria mais
tarde sobre esse lance de sua vida.
Em 1946, publicou o livro Sagarana, que lhe rendeu a
admiração e
o reconhecimento de grande pane da crítica, como se pode perceber no fragmento
transcrito abaixo:
"Para aquele que tem a obrigação profissional da crítica
literária,
sentindo muitas vezes esse gosto momo da rotina que vem do contato com figuras
já muito
conhecidas ou com obras de estreia sem qualquer novidade, nenhuma outra sensação - porque ela vale como
um despertar, como um estímulo, como motivo para quer se Mantenha tenha a fé nas faculdades coadoras
de sua época
intelectual poderá ser comparada a esta de comunicar ao público a presença de um livro inconfundível na literatura e de um
autor de autêntica
personalidade na vida literária. E isto sem qualquer dúvida ou temor de errar,
antes com a certeza de que nós achamos completamente fora do terreno oscilante
da mediania e do mais ou menos, colocados em face de um excepcional
acontecimento. Tudo se processa, afias, bem rapidamente. Um estímulo, Como de resto o de
qualquer livro, nunca pode ser esperado ou previsto. De repente chega-nos o
volume, e é uma
grande obra que amplia o tempo cultural de uma literatura, que lhe acrescenta
alguma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo tempo que um nome de escritor, até ontem ignorado do público, penetra
ruidosamente na vida literária para ocupar desde logo um dos seus primeiros
lugares. O livro é Sagarana e o escritor é
o Sr. J. Guimarães Rosa. * *
OBRA
Sagarana, 1946 - contos; "O Burrico Pedrês" "A volta do
Marido Pródigo";
"Sarapalha"; "Duelo"; "Minha Gente"; "São Marcos";
"Corpo Fechado"; "Conversa de Bois" ; "A flora e vez
de Augusto Matraca" ; Corpo de Ballc, 1956 - novelas; Manuelzão e Miguilim ("Campo
Geral"' e "Uma Estória de Amor"); No Urubuquaquá, no Pinhém ("O Recado do
Morro", "Cara de Bronze" e "Lélio e Lina"); Noites do Sertão ("Lão-Dalalão" e
"Buriti"); Grande Sertão: veredas, 1956 - romance; Primeiras Estórias, l962 - contos;
Tutaméia -
Terceiras Estórias,
1967 - contos; Estas Estórias, 1969 - contos. (PÓSTUMA); Ave, Palavra, 1970 - contos. (PÓSTUMA).
A grande força da imaginação de Guimarães Rosa, alia-se ao seu extraordinário conhecimento linguístico,
tanto da língua
materna quanto de outras línguas, faz dele um autor ímpar no panorama da
moderna literatura brasileira.
Guimarães Rosa foi um escritor com alma jornalística. Andava pelo sertão, viajava caiu
vaqueiros, convivia com as pessoas humildas e simples do interior e anotava.
Anotava os "causos", as expressões inusitadas, os provérbios, as lendas, os ditos e as interpretações. Nada lhe escapava. A
observação da
natureza, as aves, os animais, a flora, os rios, tudo foi sendo incorporado aos
poucos para formar um grande patrimônio de conhecimento que ele tão prodigamente nos legou
em páginas
imortais.
Da coleta do material bruto no início do povo, de sua
manipulação linguística
c fabularão ás vezes irônica, ás vazes brincalhona,
muitas vezes mística, temos o processo de criação que vai refletir a
vida social, os costumes, os medos, as superstições, as crendices c o comportamento de seus
personagens. Temos a comprovação concreta dessa metodologia em várias passagens recolhidas
aqui e ali:
"Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para
a Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota" (Corpo
Fechado).
"Nonada. Tiros que o senhor ouviu forma briga de
homem não."
(Grande Sertão:
veredas)
"A vida é um vago variado. O senhor escreva no clareio: sete páginas..." (Grande
Sertão:
veredas).
"O senhor enche urna caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? " (Grande Sertão: veredas)
"Se o senhor doutor está achando alguma boniteza
nesses pássaros,
eu cá é que
não
vou dizer que eles são feios..." (Minha Gente).
"Minas Gerais... Minas principia de dentro para
fora e do céu
para o chão..."(Minha
Gente).
"Sim, que, a parte o sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo pouco visto e menos
ainda ouvido, raramente usado." (São Marcos) "As palavras têm canto e plumagem."
(São
Marcos).
UM CHAMADO JOÃO* CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE João era fabulista? Fabuloso?
fábula?
Sertão mística disparando. No exílio da linguagem comum? Projetava na gravatinha a
quinta face das coisas, inenarrável narrada? Um estranho chamado João para disfarçar, para forçar o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados no apartamento?
Vegetal ele era ou passarinho sob a robusta ossatura
com pinta de boi risonho? Era um teatro e todos os artistas no mesmo papel,
ciranda multivocal? João era tudo? Tudo escondido, florindo como flor é flor, mesmo não semeada? Mapa com
acidentes deslizando para fora, falando? Guardava rios no bolso, cada qual com
a cor de suas águas?
Como misturar, sem conflitar? E de cada gota redigia
nome, cura, fim, e no destinado geral seu fado era saber para contar sem
desnudar o que não deve ser desnudado e por isso se veste de céus novos? Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico,
apelado de precipites prodígios acudindo a chamado geral? Embaixador do reino que
há por
trás
dos reinos, dos poderes, das supostas fórmulas de abracadabra, sésamo? Reino cercado não de muros, chaves, códigos, mas o reino-reino? Por que João sorria? se lhe
perguntavam que mistério é esse? E propondo desenhos figurava menos a resposta
que outra questão ao perguntante? Tinha parte com... (não sei o nome) ou ele
mesmo era a parte de gente servindo de ponte entre o sub e o sobre que se
arcabuzeiam de antes do princípio, que se entrelaçam para melhor guerra, para maior festa? Ficamos sem
saber o que era João e se João existiu de se pegar.
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