"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

terça-feira, 23 de março de 2010

Críticas profissionais sobre o filme Avatar

Vejam a postagem de duas críticas sobre o filme, essa primeira dividida em duas partes é de Jorge Coli, professor do departamento de Artes da UNICAMP, e colunista da Folha de São Paulo. As críticas foram publicadas respectivamente na coluna "Ponto de Fuga" do caderno MAIS da Folha de S. Paulo

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O bom selvagem 1

Jorge Coli

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“Vamos almoçar em Canudos!" e "Vamos jantar em casa!". As duas frases, bem parecidas, são pronunciadas em situações idênticas. A primeira é uma exclamação do coronel Moreira César, registrada por Euclydes da Cunha em "Os Sertões".

César, retratado nesse livro como exemplo da estupidez militar histérica, lançou esse grito antes da batalha contra os jagunços de Canudos em que morreria. A segunda é rosnada pelo coronel Miles Quaritch, não menos estúpido, não menos histérico e não menos militar, antes do ataque contra Pandora, em "Avatar", filme de James Cameron. Quaritch também morre na inesperada derrota.

Moreira César e Miles Quaritch têm outro ponto em comum: são personagens de duas formidáveis criações épicas criações épicas, o livro e o filme.
Cameron decerto não leu Euclydes da Cunha. Mas as duas cenas são mais do que apenas coincidentes.

Fazem parte de lembranças coletivas, em eco. Remetem à resistência daqueles que são mais frágeis só em aparência diante de exércitos muito poderosos.
É uma conjuntura que viaja em idas e vindas, da história para as artes: os EUA tiveram fracassos militares semelhantes, dos quais o Vietnã é exemplar e Apocalypse Now", seu grande épico. As gabolices retumbantes de Moreira César e Miles Quaritch atualizam a versão, primordial e realista, de Leônidas nas Termópilas: "Almocemos como homens que jantarão nos Infernos".
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Cipós

Leônidas e seus espartanos: um punhado de resistentes contra o grande exército persa.

Daí o realismo da frase. César e Quaritch, fortes e fanfarrões, são inconscientes e antipáticos. Ao contrário, os fracos, vítimas potenciais, despertam sempre solidariedade.

As enormes desproporções militares pressupõem quase sempre diferenças de cultura: foi assim em Canudos e no Vietnã, é assim entre os terráqueos e os na'vi de Pandora. Cameron insere em sua história um projeto antropológico, chefiado pela dra. Grace Augustine, uma irresistível Sigourney Weaver.
Há quem destrua, há quem tente compreender.

"Avatar" traz consigo o velho fascínio, que pertence à antropologia, mas é bem anterior a ela: nosso desejo pelo paraíso que está no outro.

Quantos antropólogos, ao estudarem, não procuraram integrar seus próprios objetos? Entre tantos e tantos, o admirável Curt Nimuendaju, abandonando seu sobrenome alemão por um guarani e morrendo entre os tucunas, na Amazônia.
Nimuendaju era fascinado pela busca indígena e mítica do paraíso, ou terra sem males. Seu nome, ao que parece, pode ser traduzido por "aquele que encontrou seu lugar".

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Ferro velho

James Cameron tem fascínio pela fusão entre homem e máquina. Ela o levou aos dois "Exterminador do Futuro" [em 1984 e 1991].

A atração já estava em "Xenogenesis", seu primeiríssimo curta-metragem, que pode ser visto no YouTube. Ali nascia o gigantesco soldado robô (em "Avatar" ironicamente apresentado como um Golias de aço sem cabeça).


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Vasos comunicantes

Cameron também é atraído pelas metamorfoses genéticas, pelos mistérios biológicos: assim, seu "Aliens - O Resgate".

Em "Avatar" defrontam-se o homem racional e militar, cúmplice articulado da máquina, e o alienígena suave, que sabe conectar-se e sintonizar-se com a natureza. Ou, ainda, o capitalista que calcula lucros e o selvagem que intui e fusiona com seu mundo.

Guerra entre o mecânico e o orgânico, entre a insatisfação insaciável e a plenitude bem-aventurada. Um maniqueísmo que conserva sua verdade no fato de que o primeiro termo se esqueceu da possibilidade do segundo.

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O bom selvagem 2

Jorge Coli

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"Avatar", de James Cameron, começa na prosa, com a rotina de uma nave espacial. Os passageiros acordam: nada do suspense que existe na cena semelhante de "Planeta dos Macacos" (dir. de Franklin J. Schaffner, 1968), nem do tom ritual em "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (Stanley Kubrick, 1968). Ato corriqueiro do futuro, mais ou menos como hoje afivelar os cintos numa poltrona de avião.

Mas James Cameron é um lírico. Aos poucos seu lirismo toma conta de tudo, lirismo tocante e afetuoso. Os extraterrestres, personagens digitalizados, transmitem suas emoções: nada mais humano e radiante do que o paraplégico, transformado em ser azul de três metros de altura, ao descobrir que pode correr, saltar, libertado da cadeira de rodas, sentindo a terra entre os artelhos.

Esse lirismo tem passado velho e ilustre. Lembremos: "Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas".

A metáfora de Alencar não é transposição, é fusão: os cabelos e as penas da graúna, o talhe da palmeira. Graúna e palmeira deixam de ser recursos estilísticos apenas: "estão dentro" de Iracema. De metáfora, transformam-se em metacomunhão.

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Cocar

Isto tudo para inserir "Avatar" na tradição indianista, de Iracema ou Hiawatha, Alencar ou Longfellow, "O Último dos Moicanos" ou "Atala".

Não é preciso esforço: o filme brota dessa tradição como que naturalmente. Atualiza-a, mas mantém a ideia de uma cultura selvagem melhor e muito mais poética do que a civilização ocidental.

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Polos

A história do cinema, de "Rambo" a "King Kong" (o de 1933), atravessa "Avatar". Há também um tom de ópera. Jake Sully, em sua versão azul, amarrado a um tronco, faz pensar em Peri no palco, ao som de Carlos Gomes, diante dos aimorés. As conclamações guerreiras são como o primeiro ato da "Norma" [de Bellini].

Estas associações se impõem porque "Avatar" é uma ópera visual: as imagens, que seduzem e envolvem, extremam os sentimentos do espectador. Possuem a mesma função que a música assume na ópera.

Felizmente as imagens têm esse poder, porque a trilha sonora de "Avatar" é uma sopa tecno-world brega, reforçada por corais de canto pseudo-africanos atravessados por flautinhas neo-"Titanic". O impressionante é que a força musical das imagens exalta a trilha sonora banal. Como na ópera, em modo invertido, quando a música transfigura o libreto rasteiro.

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Wotan

Wagner vibraria diante dos recursos técnicos de "Avatar". É o apogeu do espetáculo como ilusionismo absoluto. Ah, se suas valquírias pudessem cavalgar corcéis alados como se vê ali!

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Pecados

"Avatar" é também um western, no qual o Sétimo de cavalaria não está do lado da civilização. É formado por um batalhão de bicharocos invulneráveis. Trata ainda de colonização, de culturas selvagens arrasadas: não é de hoje que Hollywood endossa a má consciência da história norte-americana. Alguns críticos já assinalaram que a destruição da grande árvore remete às torres gêmeas. Desta vez, porém, é o capitalismo neoliberal e o Exército americano, pactuados, que desencadeiam a destruição.

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