A gira (língua, gíria) da Tabatinga é uma língua afro-brasileira, de origem predominantemente banto. Em extinção, é falada em parte do município brasileiro de Bom Despacho.
Dona Fiota: A letra e a palavra
Texto de: José Ribamar Bessa Freire
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Dona Fiota. Ela é dona Fiota e pronto. Ninguém a conhece pelo nome de Maria Joaquina da Silva. Mas também quem é que chama Tiradentes de Joaquim José da Silva? Basta uma única conversa para perceber que dona Fiota é uma mulher poderosa, um personagem da história do nosso país. Tive o privilégio de ouvi-la em março de 2006, em Brasília, durante o seminário sobre as línguas faladas no Brasil, organizado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e pelo IPHAN. Com seu charme e sua inteligência, ela cativou a todos.
Dona Fiota contou, naquele seminário, que seu pai era um baiano que vivia andando pelo mundo, no tempo do final da escravidão, que ele passou pelo centro-oeste de Minas Gerais, que foi passando e viu sua mãe no cativeiro trabalhando, fiando fio de algodão, que acenou para ela e perguntou se não arrumava uma ocupação para ele, que acabou conseguindo um serviço na roça de mandioca, que foi ficando e namorando, ficando e namorando, até que os dois se casaram, tiveram filhos, netos, bisnetos. Os descendentes do andarilho baiano com a ex-escrava se organizaram depois de abolida a escravidão: Quando rebentou a liberdade, minha mãe saiu lá de Engenho do Ribeiro caçando um lugar. Chegou aqui. Tudo era mato. Na subida, havia um barro branquinho. Ai foi minha mãe que deu o nome de Tabatinga. Toda vida foi Tabatinga. Desde o tempo da escravidão. Só agora é que o nome mudou pra Ana Rosa. Quero tirar esse nome de Ana Rosa”.
A história da comunidade Tabatinga - hoje uma área quilombola, situada no bairro Ana Rosa, periferia da cidade de Bom Despacho (MG) - foi contada por Dona Fiota aos participantes do seminário do IPHAN, mas teve de ser traduzida, porque ela falou, não em português, mas numa língua afro-brasileira, de origem banto, chamada Gira da Tabatinga, ainda hoje usada por um grupo de moradores. Foi a primeira vez que o plenário da Câmara Federal ouviu o som de uma língua minoritária de base africana, reconhecendo sua riqueza, sua função histórica e sua legitimidade.
A fala da senzala.
A Gira da Tabatinga era falada nas antigas senzalas das fazendas do interior de Minas Gerais. Com ela, os escravos podiam se comunicar livremente sem o patrão entender o que diziam. A língua libertava. Dona Fiota conta: “A gente não podia falar o nome do trem. Tem assango? Não, não tem assango. Tem cambelera? Não, cambelera também não. Tem caxô? Nada de caxô. Então, minha mãe falava: ‘Catingueiro caxô. Caxô o quê? No Curimã’. Ela tava avisando que o patrão havia chegado”.
Numa entrevista a Lúcio Emílio, Dona Fiota dá detalhes sobre a formação da Gira da Tabatinga, produto do sincretismo de várias línguas africanas misturadas ao português: “Aprendi essa língua com a minha mãe. Ela falava todo dia para mim até eu aprender. Isso traz toda uma história pra gente, tanto das partes alegres, como das tristes”. Recentemente, os moradores perceberam que aquela língua que os havia libertado, estava ameaçada de extinção, porque não é mais usada por crianças e jovens, diz dona Fiota: - “Aqui no bairro é muito difícil quem fala a língua”.
Foi aí que a comunidade decidiu fortalecer na sala de aula a língua denominada Gira da Tabatinga, aproveitando a lei sancionada em 2003 que torna obrigatório o ensino de História e Culturas afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio. Duas pesquisadoras – Celeuta Batista Alves e Tânia Maria T. Nakamura – acompanharam a luta pela revitalização da língua, que no passado foi um poderoso instrumento de resistência dos escravos e hoje é uma marca da identidade de seus falantes. A comunidade conseguiu a promessa de que a Secretaria Municipal de Educação remuneraria uma professora da Gíria da Tabatinga. A questão era: - quem daria aulas? Os moradores não duvidaram: - Dona Fiota. Afinal, ela era o Aurélio, o Antônio Houaiss daquela língua quilombola. Acontece que após um mês de trabalho, quando foi receber, o funcionário lhe disse:- “Ah, a professora é a senhora? Então, não vou pagar. Como justifico o pagamento a uma professora que é analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta de bate-pronto, que só os sábios podem dar: - Eu não tenho a letra. Eu tenho a palavra.
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A dona da palavra.
Com isso, derrubou a postura quase racista que discrimina os que vivem no mundo da oralidade. Ensinou que existe saber sem escrita; que na situação em que ela, dona Fiota, se encontra, não precisa da letra, porque usa a palavra para transmitir seus saberes, trocar experiências e desenvolver suas práticas sociais. Foi nessa língua de forte tradição oral que ela criou e educou seus filhos. É nela que hoje pensa, trabalha, narra, canta, reza, ama, sonha, sofre, chora, reclama, ri e se diverte. Dona Fiota deixou claro que não é carente de escrita, como dizem alguns letrados. Ela é independente da escrita.
Cerca de um milhão e meio de brasileiros para quem o português não é a língua materna estão, hoje, na situação de dona Fiota. Falam uma das 210 línguas existentes dentro do território nacional, 190 das quais são línguas indígenas, ágrafas, sem tradição escrita, mas que são depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas etnociências, da técnica e das manifestações artísticas.
- Esses cidadãos não são menos brasileiros que os outros – defende o lingüista Gilvan Muller, que além dos direitos das minorias, chama a atenção para a diversidade cultural e lingüística, tão importante para o país e para a humanidade. Por isso, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), atendendo encaminhamento do então presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Carlos Abicalil, organizou o seminário em 2006 para discutir como proteger essas línguas e o rico patrimônio intangível que elas representam.
Desse seminário participaram técnicos, especialistas e falantes de diversas línguas, entre as quais o Guarani, o Nheengatu, a Língua de Sinais (Libras) e até uma variedade do alemão falada no sul do Brasil chamada Hunsrückisch. Na ocasião, foi criado um Grupo de Trabalho Interinstitucional, formado por cinco ministérios, uma ONG e uma entidade internacional, que produziu um relatório sobre como registrar essas línguas e proteger a diversidade lingüística do país.
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