quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Tempo da camisolinha
Mário de Andrade, no conto
"Tempo da Camisolinha ", da obra Contos Novos, assume um foco
narrativo em primeira pessoa, com narrador participante, que, simultaneamente, é o protagonista da narrativa. A narrativa, por sua vez, é posterior aos fatos: o narrador adulto conta sua experiência infantil.
Apesar de os fatos estarem distantes no tempo,
estão próximos emocionalmente. Para
contá-los, o narrador envolve-se tanto, que assume a
linguagem da criança e expressa suas emoções e interrupções por meio de sinais de
pontuação subjetivos, como reticências e exclamações:
"(...) davam nela, machucavam muito ela,
isto é ... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem um pouco, sem
estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber que agora que eu tinha a boa sorte,
estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das
minhas estrelas-do-mar! (...)"
"(...) eu bem não queria pensar, mas pensava sem querer, deslumbrado, mas a
boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte pra aquele
malvado de operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte! Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha
sublime estrelona-do-mar..."
A apresentação do conflito não é a tradicional, já que, inicialmente, o
narrador não parece ter a preocupação de situar o leitor no tempo e no espaço; não se preocupa em conduzir o texto para que o
leitor o assimile de forma segura.
"A feiúra dos cabelos cortados me
fez mal.": tal colocação não conduz o leitor ao assunto diretamente. Posteriormente,
saberemos que os "cabelos cortados" foram os dele. O narrador parte
de suas próprias experiências; o corte dos cabelos
trouxe-lhe uma "noção prematura de sordidez dos nossos atos"
ou "da vida". A criança não queria seus cabelos cortados; isso lhe trouxe sofrimento,
mas a justificativa recebida foi que deveria ficar homem. Isso, em vez de animá-lo, apavorava-o, pois uma criança de três anos não queria ser homem; queria ser apenas criança.
É o início, assim, de uma das abordagens contidas no
texto: o pré-estabelecido, o convencional, as regras
fundamentais, que devem ser sempre seguidas por alguém que deseja fazer, coerentemente, parte da estrutura social. É "sórdido", como nos coloca o narrador, um
menino ter cabelos "dum negro quente, acastanhados nos reflexos", principalmente
se "caíam pelos ombros em cachos gordos, com ritmos
pesados de molas de espiral". A reflexão que nos fica é se o que é sórdido é a imposição, ou a delicadeza dos
cachos... Tal fato se torna tão marcante, que, já homem, os cachos tornaram-se a lembrança de um "engano grave", que o fizeram destruir o
quadro que ainda continha essa lembrança.
No corte dos cabelos, não são apenas eles que são destruídos, mas o "olhar manso, um rosto sem
marcas, franco, promessa de alma sem maldade". O que fica é o homem que acha "besta" a camisolinha conservada
pela mãe para que economizasse.
O adulto, que agora é, tenta-se justificar pelo que ele foi ("Guardo esta
fotografia porque si ela não me perdoa do que tenho
sido ao menos explica"). A criança, forçada a virar homem aos três anos, passa a ter um
"quê repulsivo de anão".
É nítida a comparação que faz entre ele e o
irmão, Totó. O irmão mantém o ar sem malícia e infantil; parece não ter sofrido a repressão vivida pela personagem protagonista.
Ao caracterizá-lo como "criança integral", reforça as perdas sofridas pelo
narrador; nesse momento, a ideia dos cachos retorna à mente do leitor: o problema reforça-se como moral, não como físico; com os cabelos, perdeu-se a pureza.
O personagem narrador - a "monstruosidade
insubordinada", revelada pelos "olhos que espreitam" - contrapõe-se ao irmão, "a própria imagem da infância".
Num momento de "flash-back", o
narrador reflete sobre o valor dos signos do passado ("não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia"): é a forma de buscar-se e encontrar-se nas reminiscências. É como se fosse capaz de perceber que a foto era
a comprovação da repressão e seus resultados: o que
fazer diante disso? ... A sensação da incapacidade de reagir...
Quando o leitor entra em contato com tudo isso,
sente que os cachos cortados são ponto de partida do
enredo. O fluxo de consciência vai tomando maior espaço à medida que incomoda o narrador. "Voltemos
ao caso que é melhor": prefere interromper as reflexões a deparar-se, possivelmente, com o que não quer ver...
Nessa repressão tão sofrida, o pai é elemento desencadeador de
todo o processo: "meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis". A antítese marca a introdução do pai no enredo - suave
e irrevogável; nesse caso, a suavidade não se liga à delicadeza, mas ao fato de
não haver discussão nas decisões por ele tomadas. A maior revolta do menino é não ter nenhuma participação nisso:
"Deixassem que eu sentisse por mim, me
incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa,
primeiro convite às revoltas íntimas (...)".
A reação do narrador é de "monstruosidade insubordinada", voltando-se
contra o cabeleireiro; a dificuldade de lembrar é grande, já que a resistência a tudo isso se mantém até hoje ("Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis(...)").
A seleção de vocabulário é pesada porque a dor também é: "cadáveres de meus cabelos",
"um não-conformismo navalhante"... e a reação do menino é de pranto. Nota-se que o
que dói mais é a troca proposta pelos
adultos: presentes, gozações, espelhos.
Ninguém tenta entender a dor do
garoto.
Na relação indivíduo/mundo, a reação do indivíduo é a revolta: nasce o homem – como queriam os
"outros" – mas é alguém "cheio de desilusões, de revoltas, fácil para todas as
ruindades", com lembranças infantis desagradáveis, cujo único elemento restante foram
"as camisolinhas", tão detestáveis quanto todo o resto.
A figura paterna não afeta apenas o menino, mas também a mãe: depois de um parto desastroso, movia-se
"premiada pelas obrigações da casa e dos
filhos". A ideia de "obrigação" intensifica-se ao longo das ações dela ("menos tratava da casa que se iludia, consolada
por cumprir a obrigação de tratar da casa."). A atitude do pai
diante do sofrimento materno é exposta de forma irônica: "Diante da iminência de um desastre maior,
papai fizera um esforço espantoso, o seu ser que só imaginava a existência no trabalho sem
recreio, todo assombrado com os progressos financeiros que fazia e a subida de
classe."
Observa-se o antagonismo de interesses entre
esses elementos do mesmo ciclo familiar: a criança, preocupada apenas com a
própria dor (tal egocentrismo reflete-se, inclusive,
nas reminiscências do narrador, que não consegue lembrar-se, exatamente, do que ocorria com sua mãe - "(...) não sei direito..." -;
a mãe, preocupada com suas obrigações para com a família; o pai, preocupado com
os "progressos financeiros e a subida de classe". O que vemos,
portanto, é a família conservadora burguesa.
Para melhorar o estado de saúde de sua mãe, vão para a praia. A mudança de espaço não mudará esse quadro familiar.
Observa-se isso, por exemplo, no quadro de Nossa Senhora do Carmo (trazido da
cidade para a praia), utilizado para ameaçar e 2amedrontar o menino
("Meu filho, não mostra isso, que feio! repare: sua madrinha
está
te olhando na parede!"). Diante disso, o
menino não se submete, pois desafia a "madrinha
santa", quando a mãe não está olhando ("Tó! que eu dizia, olhe! Olhe
bem! Tó! olhe bastante mesmo!").
Nessa mudança de espaço, as poucas mudanças de atitudes são apenas aparentes: a mãe "sentia um prazer
perdoável de representar naquelas férias o papel largado de convalescente"; o pai
"deixara menos pai, um ótimo camarada com muita
fome e condescendência". O que se nota é que pai e mãe precisam de motivos,
"desculpas", para se comportarem de modo diferente, enquanto que o
filho mantém sua personalidade rebelde, avessa ao formal.
Os operários trabalhadores do
canal reforçam a hierarquia que a criança já observava na família, já que tratavam melhor a ele, "filhinho de ‘seu dotô’, do que aos próprios filhos": como
diz o próprio narrador, agiam
"proletariamente"... Tudo isso se segue de um fato novo que modifica
o ritmo do enredo: o garoto é presenteado com três estrelas-do-mar por um operário, que lhe diz que as
mesmas dão boa sorte.
A posse das estrelas-do-mar tornou-se algo
fundamental para a criança: constituíam-se num segredo. Não sendo necessário dividi-las ou partilhá-las com alguém, tornam-se algo só seu, capaz de dar a boa sorte prometida e protegê-lo de qualquer infortúnio: "Comer? pra que
comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença para brincar no barro, e si Nossa Senhora, minha madrinha,
quisesse se vingar daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam,
davam nela (...)"
Porém, a posse das estrelas é momentânea; a felicidade é momentânea.
Ao ver, na praia, um operário triste, queixando-se da sua má sorte, a criança sente-se na obrigação de ceder-lhe sua estrela-do-mar (de início, a pequena, mas, depois, sabia que devia ceder a maior: "(...)
aquele homem com tantos filhinhos pequenos e aquela mulher paralítica na cama!... e no entanto eu era feliz, feliz e com três estrelinhas-domar pra me darem sorte...").
Se, no início do conto, o embate da
criança era com o mundo, agora, é consigo mesma, quando descobre que até dentro de si as coisas não são harmoniosas: ao mesmo tempo que deseja as estrelas, que quer
as três - que, para ele, representam a suprema felicidade
-, incomoda-se com o sofrimento do operário. Dolorosamente, acaba deixando
sua vontade de lado e entrega-lhe a estrela: "Tome! Eu soluçava gritado, tome a minha... tome a minha estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa sorte!...".
Tal atitude não deixa - ao contrário do que se poderia esperar de uma narrativa moralista
tradicional - o garoto satisfeito consigo mesmo, já que foi tão altruísta. O que ocorre, na verdade, é um imenso sofrimento,
arrependimento ("eu sofria arrependido"), que ele não consegue conter: "Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho.".
À sua maneira, a narrativa torna-se cíclica: o sofrimento vivido com a perda dos cachos castanhos
retorna na perda da estrela-do-mar... é o homem que se forma através de perdas sucessivas, de sofrimentos contínuos, "no infinito dos sofrimentos humanos".
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