quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Primeiras Estórias - Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa (Cordisburgo,
1908/Rio de Janeiro, 1967);
Gênero literário: estória (conto breve);
Época: Modernismo brasileiro (terceiro tempo);
Contexto histórico-cultural:
Brasil - anos JK, o "presidente
bossa-nova"; euforia desenvolvimentista; industrialização acelerada do país = Plano de Metas =
"50 anos em 5"; fundação de Brasília; instalação da indústria automobilística; Concretismo =
poesia verbivocovisual: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Paulo Paes, Pedro
Xisto, José Lino Grunewald; Bossa nova: João Gilberto, Johnny Alf, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos
Lyra, Ronaldo Bôscoli, Luis Bonfá, Sérgio Ricardo, Juca Chaves, Jorge Ben (jor),
Maysa, Agostinho dos Santos e alguns mais; cinema novo: Nelson Pereira dos
Santos, Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha; Teatro: fim da geração TBC e início das gerações Arena e Oficina;
Futebol: seleção brasileira bicampeã do mundo (1958 e 1962); juventude transviada: geração Coca-Cola; atuação permanente da UNE.
Mundo - vacina Sabin (pólio, 1955); Sputnik I (1957, URSS inicia a
corrida espacial); XX Congresso do PC da URSS (1958: a desestalinização); Revolução Cubana (1958);
Existencialismo: Jean-Paul Sartre; Novelle Vague: cinema de Louis Malle, François Truffaut, Jean-Luc Godard; explosão do rock-and-roll: Elvis Presley, Bill Halley, Little Richard,
Chuck Berry, Paul Anka.
ENREDOS
I - "As margens da
alegria". Um menino
descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do
peru e derrubada de uma árvore).
II - "Famigerado". O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular:
ouviu a palavra "famigerado" de um moço do governo e vai
procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber
se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.
III - "Sorôco, sua mãe, sua filha". Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi-las ao manicômio de Barbacena. Durante
o trajeto até a estação, levadas por Sorôco, elas começam surpreendentemente a
cantar. Quando o trem parte, Sorôco volta para casa
cantando a mesma canção, e os amigos da cidadezinha, solidariamente,
cantam junto.
IV - "A menina e lá". Nhinhinha possuía dotes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que
fossem, sempre se realizavam. Isolados na roça, seus parentes
guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As
reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca. Nhinhinha
"quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com efeites brilhantes ninguém percebe que o que ela queria era morrer...
V – "Os irmãos Dagobé". O valentão Damastor Dagobé, depois de muito
ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé: Doricão, Dismundo e Derval. A expectativa da
revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do
enterro de Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como
justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.
VI - "A terceira
margem do rio". Um homem
abandona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo,
todos, menos o filho primogênito, desistem de
apelar para o seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vínculo de amor, esforça-se para compreender o
gesto paterno: por isso, ali permanece por muitos anos. Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide
substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o
filho se apavora e foge, para viver o resto de seus dias ruminando seu
"falimento" e sua covardia.
VII - "Pirlimpsiquice". Um grupo de colegiais ensaia um
drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais
possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam
uma comédia, que é entusiasticamente bem
recebida pela plateia.
VIII - "Nenhum, nenhuma". Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de um
homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva
cuidava. O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor
observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que eles se suportavam, pois
tinham transformado seu casamento num desastre confortável.
IX - "Fatalidade". Zé Centeralfe procura o
delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão Socó vivia cantando sua esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e
poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a
mínima hesitação, mata-o, justificando
o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do
universo.
X - "Sequência". Uma vaca fugitiva retorna a sua
fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro
persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a
vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.
XI - "O espelho". Um sujeito se coloca diante de um
espelho, procurando reeducar seu olhar. Apagando as imagens do seu rosto
externo. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela
a imagem de sua essência.
XII - "Nada e a nossa
condição". O fazendeiro Tio Man'Antônio, com a morte da
esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as
filhas e genros. A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os
empregados, estipulando em testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato ocorre, os
empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam a
casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.
XIII - "O cavalo que
bebia cerveja". Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara
alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino,
para um interrogatório. Notando que o empregado ficava cada vez
mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então abrir a sua casa para
Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco empalhado. Passado
um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Josepe, desfigurado
pela guerra, jazia no chão. Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao
patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro
quando o italiano morre.
XIV - "Um moço muito branco". Os habitantes de Serro Frio, numa
noite de novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos,
aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu ar
angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente positiva. Depois de fatos
igualmente miraculosos, o moço desaparece do mesmo
modo que chegara.
XV - "Luas-de-mel". Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza
recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e
Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um
enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. É nesse clima de tensão que se celebra o
casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel, que acontece em dose dupla:
dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor fora
reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa
se esvazia com a chegada do irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.
XVI - "Partida do audaz
navegante". Quatro crianças, três irmãs e um primo, brincam dentro
de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha, brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras.
Inventa uma estória do tipo Simbad, o marujo, que ganha novos
elementos quando todos vão brincar no quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha
transforma um excremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para
navegar riacho abaixo.
XVII - "A benfazeja". Mula-Marmela era mulher de Mumbungo,
sujeito perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas. Esse vampiro tinha um filho, Retrupé, cujo prazer só diferia do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais
frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitara em matá-lo e depois cegar
Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum
tempo, resolve assassiná-lo: percebe que esta seria a única maneira de refrear o instinto de lobisomem do rapaz.
XVIII - "Darandina". Um sujeito bem-vestido rouba uma
caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o
perseguem, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente
os esforços das autoridades, que procuram convencer o
rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa,
revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar,
o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita essa sanidade
repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentindo o risco,
o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo
bastante para a multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros.
XIX - "Substância". O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita, que fora
abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga. Na
fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar
polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e
competência. Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento.
XX - "Tarantão, meu patrão". O fazendeiro João-de-Barros-Dinis-Robertes
tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua
velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu sobrinho-neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural
do velho. Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho
fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do "exército",
transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu
apreço pela família e pelos novos
amigos, colecionados ao longo da última cavalgada.
XXI - "Os cimos". O menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano
se aproximar da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela beleza da ave, o Menino ganha energia
para resistir e para transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam
superar a doença. Quando o Tio o procura para comunicar a
melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.
FOCO NARRATIVO
As indicações feitas a seguir são pontuadas com os algarismos que indicam a ordem de publicação de cada estória no livro. Assim,
dez delas têm o foco relato centrado na terceira pessoa:
I-"As margens da alegria";
II-"Famigerado"; III-"Sorôco, sua mãe, sua filha"; IV-"A menina de lá"; V-"Os irmãos Dagobé"; VIII-"Nenhum, nenhuma"; X-"Sequência"; XIV-"Um moço muito branco";
XIX-"Substância" e XXI-"Os cismos". As
onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa; VI-"A terceira margem do
rio"; VII-"Pirlimpsiquice"; IX-"Fatalidade";
XI-"O espelho"; XII-"Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja";
XV-"Luas de mel"; XVI-"Partida do audaz navegante";
XVII-"A benfazeja"; XVIII-"Darandina" e XX-"Tarantão, meu patrão". Dessas onze
estórias, apenas duas apresentam o narrador como
protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o
relato é feito por um espectador privilegiado, que
presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com laços de parentesco ou e
amizade com o protagonista.
Quanto ao emprego dos tempos verbais,
nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz
através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do
indicativo.
ESPAÇO
A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas
têm como cenário pequenos lugarejos,
arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com
poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos horizontes, grandes
rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto - "O espelho" e "Darandina"
-, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros
urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de
governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas,
parques de diversões, prédios de repartições públicas e outros serviços tipicamente urbanos.
PERSONAGENS
Embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, as
personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos,
bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.
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