"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Coesão e coerência em Marília de Dirceu

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Sabemos que todas as frases componentes do parágrafo redacional apresentam-se interdependentes, quer pela ordem hierárquica, quer pela conexão de idéias ou, então, pelas palavras ou expressões de transição dos parágrafos (elementos de coesão). Neste caso, para que um texto tenha boa interpretabilidade, é importante e necessário que ocorra um encadeamento de parágrafos de sorte a coordenar as idéias, assegurando a continuidade de sentido.
Analisemos melhor a questão da coesão e coerência [no formidável exemplo a seguir] na belíssima composição do árcade Tomás Antônio Gonzaga, notável inconfidente poeta em sua
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MARÍLIA DE DIRCEU
PARTE I
Lira I
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado;
de tosco trato, d’expressões grosseiro,
dos frios gelos, e dos sóis queimado.
tenho próprio casal, e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite,
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos inda não está cortado;
os pastores, que habitam este monte,
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste
nem canto letra, que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil Pastora,
depois que teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte, e prado;
porém, gentil Pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do Sol em vão se atreve;
papoula ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
para glória de amor igual tesouro!
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Leve-me a sementeira muito embora
o rio, sobre os campos levantado;
acabe, acabe a peste matadora,
sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso
nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
para viver feliz, Marília, basta
que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Irás a divertir-te na floresta,
sustentada, Marília, no meu braço;
aqui descansarei a quente sesta,
dormindo um leve sono em teu regaço:
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas,
toucarei teus cabelos de boninas,
nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Depois de nos ferir a mão da morte,
ou seja neste monte, ou noutra serra,
nossos corpos terão, terão a sorte
de consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
lerão estas palavras os pastores:
“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
siga os exemplos, que nos deram estes.”
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
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Considerando-se que o texto resulta do entrelaçamento de parágrafos, é importante que haja coesão entre eles para que seja assegurada ao texto a tessitura lógica. O engastamento das idéias principais de cada parágrafo é que estabelece a articulação do texto.
O exemplo do poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga é um modelo de texto coesão. Há, do intróito à peroração, perfeita unidade; o assunto é sempre o mesmo; costura-o uma só e mesma linha que não se rompe em nenhum instante.
Todas as estâncias do poema perseguem um único objetivo, têm a mesma pretensão: conquistar o amor de Marília. Este é o núcleo em torno do qual gravitam as estrofes. A poesia é, assim, um modelo de argumentação bem ordenada e coesa que reflete a formação jurídica do autor.
O poeta — nessa época quarentão — aspira ao amor de uma menina-moça; para tanto, tece vários argumentos:
 1ª estrofe: exaltação de seu poder material: é homem de posses, tem propriedades, frisando, em primeiro lugar, que ele tem residência fixa e conhecida. Trabalha por conta própria, não é assalariado; enfim, não é sem-terra nem sem-teto.
2ª estrofe: exaltação de tributos pessoais: à boa aparência, somam-se força física, habilidade física e qualidades intelectuais.
Nas duas primeiras estrofes, o poeta apresenta um retrato de si mesmo. O texto remete-nos aos chamados argumentos éticos, do grego ethos, em que o destinador (no caso, o poeta) joga com sua imagem para persuadir o destinatário (no caso, Marília).
3ª estrofe: é uma estância de transição, pois, a seguir, parte para outro argumento extremamente sensível à vaidade feminina.
4ª estrofe: galanteios a Marília: homem experimentado na ars amandi, apela o poeta para a vaidade da menina de quinze anos e tece loas à beleza da namorada; procura, assim, compensar a disparidade cronológica entre os dois.
5ª estrofe: continua a argumentação da estrofe anterior. Até o momento, o poeta procura induzir Marília a, com ele, convolar núpcias. É a fase da manipulação em que se lançam mãos de alguns expedientes para provocar uma tomada de decisão; no caso, o expediente é a sedução.
6ª e 7ª estrofes: o poeta mostra a recompensa em vida e além-túmulo. A sanção será positiva.
Adaptado do livro:
Curso de Português Jurídico / Regina Toledo Damião, Antonio Henriques. — 10. ed. — 2. reimpr. — São Paulo: Atlas, 2008.
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