quinta-feira, 23 de maio de 2019
Tripalium X poiesis, de MS Cortella
Tripalium versus poiesis
A ideia de
trabalho como castigo precisa ser substituída pelo conceito de realizar uma
obra.
Por que muitas vezes a ideia de trabalho é associada a
castigo, fardo, provação? Do ponto de vista etimológico, a palavra “trabalho”
(assim como em francês, espanhol e italiano) tem origem no vocábulo latino tripalium, que era um instrumento de
tortura, ou seja, três paus entrecruzados para serem colocados no pescoço de
alguém e nele produzir desconforto. A origem do Ocidente é o mundo greco-romano.
Se pegarmos, por exemplo, o período do século II a.C. até o século V, teremos a
formação da sociedade clássica greco-romana com as heranças que o mundo grego
havia gerado. Essa sociedade cresceu em sua exuberância a partir do trabalho
escravo. Em sociedades assim, montadas com base no sistema escravocrata, a
própria ideia de trabalho remete à escravidão. Portanto, trabalho é coisa
menor, indecente, imoral ou de gente que está sendo punida.
Tivemos, depois, o mundo medieval em que a relação foi
senhor e servo. Substitui-se, num determinado momento, a ideia de trabalho pela
de servidão. Não há mais o escravo, mas há o servo, que precisa trabalhar um
pouco para ele e o restante para o senhor dele. Persiste o esquema de dependência.
O mundo capitalista europeu substituiu o trabalho escravo na Europa pelo
trabalho escravo fora da Europa. Continuamos, portanto, com a mentalidade
escravocrata. O mundo ocidental no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo,
foi todo construído sob a lógica da exploração do outro.
Nessas sociedades só nos faltava uma concepção religiosa
na qual o trabalho aparecesse como castigo, e isso o judaísmo nos ofereceu. O
mundo semita trouxe essa ideia à tona, porque a religiosidade semítica expressa
no mundo hebraico vai trazer a ideia do trabalho como castigo. Afinal de
contas, qual foi o grande crime de Adão e Eva? Eles desobedeceram à divindade.
A mulher recebeu uma condenação: “Vais pagar com as dores do parto pelo teu
erro”. E o homem recebeu outra condenação: “Vais trabalhar”. A primeira coisa
que Adão e Eva percebem quando traem a divindade, segundo o relato religioso
hebraico, é que estão nus. E isso não é um empecilho moral, porque aquela
sociedade não tinha problema com aquele tipo de nudez. O problema de
perceber-se nu é que você se dá conta de que tem corpo. E, ao perceber que tem
corpo, você tem de sustentar o corpo, alimentá-lo, cuidá-lo, abrigá-lo etc. Para
tal, vai ter de trabalhar. Então, do ponto de vista da religiosidade originária
no Ocidente, a ideia do trabalho continua como castigo.
Se
isso está no campo da religião, no campo da Filosofia a noção mais forte em
relação à definição de humano é dada por Aristóteles, que, no século V a.C.,
diz: “O homem é um animal racional”. Ou seja, o que define a humanidade de
alguém – e, portanto, a sua dignidade – é a capacidade de dedicar-se ao pensamento
e não às obras manuais. A tal ponto que, no mundo escravocrata da filosofia e
da ciência gregas, não se faziam trabalhos manuais. Platão, um dos maiores
pensadores da história, desprezava o trabalho manual. De tal modo que ele
achava que, quando se estabelecessem os infernos, aqueles que deveriam ficar
junto com os escravos lá eram os pintores, os escultores, todos aqueles que
fossem da elite, mas que desenvolvessem alguma atividade com as mãos. O mundo
da Antiguidade, que é a base da nossa sociedade ocidental, coloca o trabalho
como um castigo do ponto de vista moral-religioso ou uma concepção de castigo a
partir da vontade dos deuses na cultura grega.
O
mundo medieval que terá Deus no centro, especialmente na Europa – o
teocentrismo avançado –, vai colocar a ideia de que bom é ser o senhor; o servo
está sempre na posição de submissão. O mundo capitalista vai introduzir outra
relação, diferente daquela de senhor e escravo ou servo e suserano. Esta relação,
bem trabalhada pelo pensador alemão Karl Marx, será entre patrão e empregado. A
escravatura não vai acontecer nesse mundo europeu, mas sim na América e na
África. O Brasil até hoje não se recuperou da formação escravagista. Nós ainda
consideramos o trabalho manual como tarefa de inferiores. Quer ver um exemplo?
Você diz para o seu filho ou sua filha: “Você não está estudando? Sabe o que
vai ser na vida? Você não vai ser ninguém, vai ser faxineiro”. O trabalho
manual como castigo, o trabalho que estafa, vai aparecer fortemente no mundo
ocidental como uma decorrência moral dos que não têm misericórdia.
O
mundo protestante luterano e calvinista no século XVI vai trazer uma outra
inflexão. Vai colocar o trabalho, o que nasce junto com o capitalismo, como a
continuidade da obra divina. Nesse sentido, o trabalho para acumular e guardar
será extremamente valorizado. Não é casual que essa ética, tão bem estudada por
Max Weber, em Ética protestante e o
espírito do capitalismo (uma obra do século XIX, mas de uma atualidade
brutal no século XXI) vai diferenciar inclusive os modos de organização da sociedade
no Ocidente: aquelas com uma ética mais protestante e aquelas com uma ética
católica, apoiada na lógica de que só a pobreza salva.
O
trabalho como castigo persiste. Tanto que a maior parte das pessoas diz:
“Quando eu parar de trabalhar, eu vou fazer isso, isso e isso”. Sendo que isso
é uma ilusão, porque você pode dizer: “Quando eu não tiver dependência em
relação ao trabalho, eu vou fazer isso”. Mas parar de trabalhar, você não vai parar
nunca. Nem pode. Porque você nunca deixará de fazer a sua obra. Seja a sua obra
aquela que você faz para continuar existindo, seja para ter o seu
reconhecimento. Eu me vejo naquilo que
faço, não naquilo que penso. Eu me vejo aqui, no livro que escrevo, na
comida que eu preparo, na roupa que eu teço.
Etimologicamente, a palavra “trabalho” em latim é labor. A ideia de tripalium aparecerá dentro do latim vulgar como sendo, de fato,
forma de castigo. Mas a gente tem de substituir isso pela ideia de obra, que os
gregos chamavam de poiesis, que
significa minha obra, aquilo que faço, que construo, em que me vejo. A minha criação, na qual crio a mim
mesmo na medida em que crio no mundo.
Vejo o meu filho como minha obra, vejo um jardim como
minha obra. Tenho de ver o projeto que faço como minha obra. Do contrário,
ocorre o que Marx chamou de alienação: todas as vezes que eu olho o que fiz
como não sendo eu ou não me pertencendo, eu me alieno. Fico alheio. Portanto,
eu não tenho reconhecimento. Esse é um dos traumas mais fortes que se tem
atualmente.
Todas
as vezes que aquilo que você faz não permite que você se reconheça, seu
trabalho se torna estranho a você. As pessoas costumam dizer “não estou me
encontrando naquilo que eu faço”, porque o trabalho exige reconhecimento –
conhecer de novo.
Hoje,
quando penso em um trabalho de qualidade de vida numa empresa, estou pensando
em um trabalho que não seja alienado. Trabalhar cansa, mas não necessariamente
precisa gerar estresse. Isso tem a ver com resultado, trabalho tem sempre a ver
com resultado.
Por
que um bombeiro, que não ganha muito e trabalha de uma maneira contínua em algo
que a maioria de nós não gostaria de fazer, volta para casa cansado, mas de
cabeça erguida? Por causa do sentido que ele vê no que faz. Por causa da obra
honesta, a serviço do outro, independentemente do status desse outro, da origem social, da etnia, da escolaridade
etc.
Aí,
não é suplício.
CORTELLA,
Mario Sergio. Qual é a tua obra?:
inquietações propositivas sobre gestão,
liderança e ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
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