segunda-feira, 27 de maio de 2019
Baleia, de Graciliano Ramos
Baleia
A
cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em
vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras
supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos
beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por
isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e
amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia,
sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato,
impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a
cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda
de cascavel.
Então
Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a,
limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não
sofrer muito.
Sinhá
Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que
adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta: - Vão bulir
com a Baleia?
Tinham
visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes
a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela
era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo,
ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.
Quiseram
mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de
varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos, prendeu a cabeça do
mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os
pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com
energia.
Ela
também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de
Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou,
ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da
vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os
meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado
os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga: - Capeta
excomungado.
Na
luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade.
Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia
de ramagens.
Pouco
a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da
cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.
Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava
sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido
não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era
indispensável.
Nesse
momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá
Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto
era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um
pedaço da cabeça.
Fabiano
percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão
invisível contra animais invisíveis: - Eco! eco!
Em
seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da
cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no
pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada,
enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore,
agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta
manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral,
deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal
estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos.
Ao chegar as catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga
alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a
latir desesperadamente.
Ouvindo
o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram
na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E
Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da
esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um
buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar,
mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos
pulos.
Defronte
do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou
como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo.
Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se
aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava
de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e
quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas, era um
bicho diferente dos outros.
Caiu
antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e
estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda.
Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no
chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto as
pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma
sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as
distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder
Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se
quase imperceptíveis.
Como
o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa
nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se
de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e
aproximava-se.
Sentiu
o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha, fraco e havia
nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado
muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a
ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade. Começou a
arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e
não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente
os preás tinham fugido.
Esqueceu-os
e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos
olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas
pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez
um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras
pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha
nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a
existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia
palmas.
O
objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os
dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum
tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu
os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol
desaparecera.
Os
chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro
espalhou-se pela vizinhança.
Baleia
assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era
levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir
os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não
se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a
esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de
responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar
as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras,
rondar. as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por
baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma
noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo,
nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem
Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas
quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares
revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha
despovoado.
Baleia
respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente
e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que
recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio
desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente
estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinhá
Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha
o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor
afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos
preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A
tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para
trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se
arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia
encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá
Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia
queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de
Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela
num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes.
Graciliano
Ramos.
Capítulo IX, Vidas
Secas.
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