terça-feira, 7 de maio de 2019
O empréstimo, de Machado de Assis
O
empréstimo
Vou
divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o
vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar
algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por
falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber,
há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes,
ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito
antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte
creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.
E,
para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em
si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não
digo que não; mas por que não acrescentou ele, que muitas vezes uma só hora é a
representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma
grande ambição, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um
báculo pastoral. Aos cinquenta anos, vamos achá-lo simples apontador de
alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode
algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a
mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?
Tinham
batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à Rua do Rosário. Os
escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso
na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram
os papéis, arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam
de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram.
Vaz Nunes ficou só.
Este
honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto:
podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele
adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos
e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o
testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava
óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por
cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto.
Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha
cinquenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros
serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.
—
Quem é? Perguntou ele de repente, olhando para a porta da rua.
Estava
à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde
reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu,
cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não
trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali
senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante,
Vaz Nunes estremeceu e esperou.
—
Não se lembra de mim?
—
Não me lembro...
—
Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em
casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma
saúde...Veja se se lembra do Custódio.
Custódio
endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta
anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas,
curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da
pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao
complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e
general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um
exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a
situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da
riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do
supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros,
um voluptuoso, e, até certo ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou
a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou
pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro
Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité,
redarguiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe
dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que
ele principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo
que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em
alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não
prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas,
adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo,
que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe
estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.
Agora,
por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de
réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses,
oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma
grande ideia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os
planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de
importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os
documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio,
estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe
pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro
horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, amimado pelo
anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco
contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam
incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de
sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham
agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças,
quando aconteceu subir a Rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome
de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do
tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo, que
este era o salvador da situação.
—
Venho pedir-lhe uma escritura...
Vaz
Nunes, armado para outro começo, não respondeu; espiou por cima dos óculos e
esperou.
—
Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande
favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...
—
Se estiver nas minhas mãos...
—
O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a
incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já
encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo
montado, é uma indústria nova. Somos três sócios; a minha parte são cinco
contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses — ou a três, com juro
módico...
—
Cinco contos?
—
Sim, senhor.
—
Mas, sr. Custódio, não posso, não disponho de tão grande quantia. Os negócios
andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é
que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?
—
Ora, se o senhor quisesse...
—
Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada
aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que
é impossível.
A
alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em
vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços.
Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs
que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do
eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu
enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de
produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o
tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o
tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando
entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e
implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O
tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.
—
Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...
—
Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como
desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, muito menos, não
teria dúvida; mas...
Estendeu
a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar
empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da
queda, que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum
céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio
tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao
adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões
retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo
e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e
que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas,
uma ideia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz
Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já
agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis
atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos
mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de
emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do
presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem
remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele
ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.
—
Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos...
Quanto?
—
Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito
modesta.
—
Quinhentos mil-réis?
—
Não; não posso.
—
Nem quinhentos mil-réis?
—
Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho
algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho
certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?
—
Não, senhor.
—
Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da
Justiça, tenho relações com ele, e...
Custódio
interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou
uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro;
nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica.
Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos,
não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os
duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para
uma necessidade urgente — “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à
franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da
grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo,
um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar
de posição. Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece, mas aceitava
duzentos...
—
Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos
mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas
forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...
—
Não imagina os apuros em que estou!
—
Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos.
Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um
proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta
os estragos, os consertos, as penas-d'água, as décimas, o seguro, os calotes,
etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...
—
Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.
—
Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados,
despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.
—
Nem cem mil-réis!
—
Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é a verdade. Nem cem mil-réis. Que horas
são?
Levantou-se,
e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia
acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não
tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para
a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava
uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro.
O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com
os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte
novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem
cinquenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; — não de desdém,
não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse
cinquenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo;
tudo mentira.
Custódio
tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a
gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à
ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia
umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da
parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado,
transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as
cinco; deram, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida.
Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de
casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a
carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos, invejou
a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria
mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito
esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não
levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que
fossem...
—
Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.
Era
o fatal instante. Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos, para
jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas.
Custódio sentiu toda a força deste lugar-comum, e, súbito, como um tiro,
perguntou ao tabelião se não lhe podia dar ao menos dez mil-réis.
—
Quer ver?
—
E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas
notas de cinco mil-réis.
—
Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor;
dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
Custódio
aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante,
como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão
ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve — um até breve cheio
de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório;
o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os
ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes.
Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens
traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das
calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande
ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora
batia modestamente as asas de frango rasteiro.
_______
Machado
de Assis
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