segunda-feira, 27 de maio de 2019
Baleia, de Graciliano Ramos
Baleia
A
cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em
vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras
supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos
beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por
isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e
amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia,
sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato,
impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a
cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda
de cascavel.
Então
Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a,
limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não
sofrer muito.
Sinhá
Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que
adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta: - Vão bulir
com a Baleia?
Tinham
visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes
a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela
era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo,
ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.
Quiseram
mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de
varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos, prendeu a cabeça do
mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os
pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com
energia.
Ela
também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de
Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou,
ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da
vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os
meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado
os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga: - Capeta
excomungado.
Na
luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade.
Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia
de ramagens.
Pouco
a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da
cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.
Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava
sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido
não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era
indispensável.
Nesse
momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá
Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto
era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um
pedaço da cabeça.
Fabiano
percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão
invisível contra animais invisíveis: - Eco! eco!
Em
seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da
cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no
pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada,
enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore,
agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta
manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral,
deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal
estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos.
Ao chegar as catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga
alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a
latir desesperadamente.
Ouvindo
o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram
na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E
Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da
esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um
buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar,
mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos
pulos.
Defronte
do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou
como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo.
Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se
aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava
de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e
quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas, era um
bicho diferente dos outros.
Caiu
antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e
estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda.
Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no
chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto as
pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma
sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as
distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder
Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se
quase imperceptíveis.
Como
o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa
nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se
de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e
aproximava-se.
Sentiu
o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha, fraco e havia
nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado
muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a
ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade. Começou a
arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e
não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente
os preás tinham fugido.
Esqueceu-os
e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos
olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas
pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez
um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras
pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha
nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a
existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia
palmas.
O
objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os
dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum
tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu
os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol
desaparecera.
Os
chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro
espalhou-se pela vizinhança.
Baleia
assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era
levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir
os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não
se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a
esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de
responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar
as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras,
rondar. as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por
baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma
noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo,
nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem
Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas
quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares
revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha
despovoado.
Baleia
respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente
e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que
recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio
desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente
estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinhá
Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha
o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor
afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos
preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A
tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para
trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se
arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia
encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá
Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia
queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de
Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela
num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes.
Graciliano
Ramos.
Capítulo IX, Vidas
Secas.
sábado, 25 de maio de 2019
O semeador e a educação moderna
O semeador da Galileia superando métodos da educação moderna
Há duas maneiras de se fazer uma fogueira: com as
sementes ou com um punhado de lenha. Qual maneira você escolheria? Fazer
fogueira com uma semente parece um absurdo, loucura. Todos, certamente,
escolheríamos a lenha. Entretanto, o mestre de Nazaré pensava a longo prazo,
por isso sempre escolhia as sementes. Ele as plantava, esperava que as árvores
crescessem, dessem milhares de outras sementes e, aí sim, fornecessem a lenha
para a fogueira.
Se escolhesse a lenha, acenderia a fogueira apenas
uma vez, mas como preferia as sementes, a fogueira que acendia nunca mais se
apagava. Um dia ele comparou a si mesmo a um semeador que semeia no coração dos
homens. Um semeador do amor, da paz, da segurança, da liberdade, do prazer de
viver, da dependência recíproca.
Quem não consegue enxergar o poder contido em uma
semente nunca mudará o mundo que o envolve, nunca influenciará o ambiente
social e profissional que o cerca. Uma mudança de cultura só será legítima e
consistente se ocorrer por intermédio das singelas e ocultas sementes plantadas
na mente dos homens e não por intermédio da imposição de pensamentos.
Gostamos das labaredas instantâneas do fogo, das ideias-relâmpagos
dos livros de autoajuda, mas não temos paciência e, às vezes, habilidade para
semear. Um semeador nunca é um imediatista, presta mais atenção nas raízes do
que nas folhagens. Vive a paciência como uma arte. Os pais, os educadores, os
psicólogos, os profissionais de recursos humanos só conseguirão realizar um
belo e digno trabalho se aprenderem a ser mais do que provedores de regras e de
informações, mas simples semeadores.
Os homens que mais contribuíram com a ciência e com
o desenvolvimento social foram aqueles que menos se preocuparam com os
resultados imediatos. Uns preferem as labaredas dos aplausos e do sucesso
instantâneo, outros preferem o trabalho anônimo e insidioso das sementes. O que
preferimos? De nossa escolha dependerá a nossa colheita.
Cristo sabia que logo iria morrer, mas, ainda
assim, não era apressado, agia como um inteligente semeador. Não queria
transformar seus discípulos em heróis e nem exigia deles o que não podiam lhe
dar; por isso, permitiu-lhes que o abandonassem no momento em que foi preso. As
sementes que ele plantava dentro dos galileus incultos que o seguiam um dia germinariam.
Tinha esperança de que elas criariam raízes no cerne do espírito e da mente
deles e mudariam para sempre suas histórias.
Essas sementes, uma vez desenvolvidas, tornariam
aqueles homens capazes de mudar a face do mundo. É incrível, mas este fato ocorreu.
Eles incendiaram o mundo com os pensamentos e propósitos do carpinteiro da Galileia.
Que sabedoria se escondia no cerne da inteligência de Cristo!
Nietzsche disse há um século uma famosa e
ousadíssima frase: “Deus está morto”. Ele expressava o pensamento dos
intelectuais da época, que acreditavam que a ciência resolveria todas as
misérias humanas e, por fim, destruiria a fé. Provavelmente este intrépido
filósofo achasse que um dia a procura por Deus seria apenas lembrada como
objeto de museus e dos livros de história.
Os filósofos ateus morreram e hoje são esquecidos
ou pouco lembrados, mas aquele afetivo e simples carpinteiro continua cada vez
mais vivo dentro dos homens. Nada conseguiu apagar a fogueira acendida pelo
semeador da Galileia... Depois que Gutenberg inventou as técnicas modernas de
imprensa, o livro que o retrata, a Bíblia, se tornou invariavelmente o maior
best-seller de todos os tempos. Todos os dias, milhões de pessoas leem algo
sobre ele.
O mestre de Nazaré parecia ter uma simplicidade
frágil, mas a história demonstra que ele sempre triunfou sobre aqueles que
quiseram sepultá-lo. Aliás, o maior favor que alguém pode fazer a uma semente é
sepultá-la. Jesus foi uma fagulha que nasceu entre os animais, cresceu numa
região desprezada, foi silenciado pela cruz, mas incendiou a história humana.
O mestre deu um banho de inteligência na educação
moderna. Ele provocou uma revolução no pensamento humano jamais sonhada por uma
teoria educacional ou psicológica.
Há uma chama que se perpetua dentro daqueles que
aprenderam a amá-lo e conhecê-lo. Nos primeiros séculos, muitos dos seus
seguidores foram impiedosamente destruídos por causa desta chama. Os romanos
fizeram dos primeiros cristãos pastos para as feras e um espetáculo de dor nas
batalhas ocorridas no Coliseu e, principalmente, no circo máximo. Alguns foram
queimados vivos, outros mortos ao fio da espada. Todavia, as lágrimas, a dor e
o sangue destes homens não destruíram o ânimo dos amantes do semeador da Galileia;
pelo contrário, tornaram-se adubos para cultivar novas safras de sementes.
A
liberdade gerada pela democracia política em contraste com o cárcere
intelectual
Apesar de o mestre de Nazaré ter provocado uma
revolução no pensamento humano e inaugurado uma nova forma de viver, as funções
mais importantes da inteligência que ele expressou não têm sido incorporadas
nas sociedades modernas. Vivemos na era da alta tecnologia, tudo é muito veloz
e sofisticado. Parece que tudo o que ele ensinou e viveu é tão antigo que está
fora de moda. Porém seus pensamentos são atuais e suas aspirações ainda são,
como veremos, chocantes.
Perdemos o contato com as coisas simples, perdemos
o prazer de investir em sabedoria. Um dos maiores riscos do uso da alta
tecnologia, principalmente dos computadores, é engessar a capacidade de pensar.
Lembremos que aqueles que são viciados nas calculadoras muitas vezes se
esquecem de como fazer as operações matemáticas mais simples.
Tenho escrito sobre a tecnofobia ou fobia de novas
técnicas. O medo de usar novas técnicas pode refletir um sentimento de
incapacidade de incorporar novos aprendizados. Todavia, apesar de apoiar o uso
de novas técnicas e discorrer sobre a tecnofobia, a “internetdependência” e a
tecnodependência podem engessar a criatividade e a arte de pensar.
Os EUA são a sociedade mais rica do globo. Além
disso, são o estandarte da democracia. Entretanto, a farmacodependência, a
discriminação racial e a violência nas escolas são sinais de que a riqueza
material, o acesso à alta tecnologia e à democracia política são insuficientes
para expandir a qualidade de vida psíquica e social do homem.
A tecnopedagogia, ou seja, a tecnologia
educacional, não tem conseguido produzir homens que amam a tolerância, a
solidariedade, que vençam a paranoia de ser o número um, que têm prazer na
cooperação social e se preocupam com o bem-estar dos consócios de sua
sociedade.
A democracia política produz a liberdade de
expressão, mas ela não é por si mesma geradora da liberdade de pensamento. A
liberdade de expressão sem a liberdade do pensamento provoca inúmeras
distorções, uma das quais é a discriminação. Por incrível que pareça, as
pessoas não compreendem que dois seres humanos que possuem os mesmos mecanismos
de construção da inteligência não podem jamais ser discriminados pela fina camada
de cor da pele, por diferenças culturais, nacionalidade, sexo e idade.
Jesus vivia numa época na qual a discriminação
fazia parte da rotina social. Os que tinham a cidadania romana se consideravam
acima dos mortais. De outro lado, a cúpula judaica, por carregar uma cultura
milenar, se considerava acima da plebe. Abaixo da plebe havia os publicanos ou
coletores de impostos que eram uma raça odiada pelo colaboracionismo com Roma,
os leprosos que eram banidos da sociedade e as prostitutas que eram apenas
dignas de morte.
Contudo, apareceu um homem que colocou de pernas
para o ar aquela sociedade tão bem definida. Sem pedir licença e sem se
preocupar com as consequências do seu comportamento, entrou naquela sociedade e
revolucionou as relações humanas. Ele dialogava afavelmente com as prostitutas,
jantava na casa de leprosos e era amigo dos publicanos. E, para espanto dos
fariseus, Jesus ainda teve a coragem de dizer que publicanos e meretrizes os
precederiam no reino de Deus.
Cristo escandalizou os detentores da moral de sua
época. O regime político sob o qual ele vivia era totalitário. Tibério,
imperador romano, era o senhor do mundo. Porém, apesar de viver num regime
antidemocrático, sem nenhuma liberdade de expressão, ele não pediu licença para
falar. Por onde ele andava, trazia alegria, mas não poucas vezes também
problemas, pois amava expressar o que pensava, era um pregador da liberdade.
Mas, por se preocupar mais com os outros do que consigo mesmo, sua liberdade
era produzida com responsabilidade.
Milhões de jovens estão estudando nas sociedades
modernas. Eles vivem num ambiente democrático, que lhes propicia a liberdade de
expressão. Contudo, são livres por fora, mas não no território dos pensamentos.
Por isso, são presas fáceis da discriminação, da violência social, da auto
violência, da paranoia da estética e das doenças psíquicas. Muitos desses
jovens superdimensionam o valor de alguns artistas, políticos e intelectuais e
gravitam em torno das suas ideias e comportamentos e não sabem que, ao superdimensioná-los,
estão diminuindo a si mesmos, reduzindo o seu próprio valor.
Aprender a construir uma liberdade com consciência
crítica, a proteger a emoção e a desenvolver a capacidade de ver o mundo também
com os olhos dos outros são funções importantíssimas da inteligência, mas têm
sido pouco desenvolvidas no mundo democrático.
Vivemos uma crise educacional sem precedentes.
Estamos resolvendo nossos problemas externos, mas não os internos. Somos uma
espécie única entre dezenas de milhões de espécies na natureza. Por pensar e
ter consciência do fim da vida, colocamos grades nas janelas para nos defender,
cintos de segurança para nos proteger, contratamos o pedreiro para corrigir as
goteiras do telhado, o encanador para solucionar o vazamento da torneira, todavia
não sabemos como construir a mais importante proteção, a proteção emocional. À
mínima ofensa, contrariedade e perda, detonamos o gatilho instintivo da
agressividade.
A história de sangue e violação dos direitos
humanos depõe contra a nossa espécie. Nas situações de conflitos usamos mais os
instintos do que a arte de pensar. Nessas situações, a violência sempre foi uma
ferramenta mais utilizada do que o diálogo.
Os homens podiam ser violentos com Cristo, mas ele
era dócil com todos. Quando os homens vieram prendê-lo, ele se adiantou e
perguntou a quem procuravam. Ele não admitia não apenas a violência física, mas
até mesmo a violência emocional. Disse: “Qualquer um que irar contra seu irmão
está sujeito ao julgamento”. Até a ira não expressa não era admitida. Os que
andavam com ele tinham de aprender não apenas a viver em paz dentro de si
mesmos, mas até mesmo a se tornar pacificadores. No sermão do monte das
Oliveiras, bradou eloquentemente: “Bem-aventurados os pacificadores, porque
serão chamados filhos de Deus”.
Nas sociedades modernas, os bem-aventurados são
aqueles que têm status social, dinheiro, cultura acadêmica. Todavia, para
aquele mestre incomum, os bem-aventurados são aqueles que exalam a paz onde
quer que estejam, que atuam como bombeiros da emoção, que são capazes de
abrandar a ira, o ódio, a inveja, o ciúme e, ainda por cima, estimular o
diálogo entre as pessoas com as quais convivem. No seu pensamento, se formos
incapazes de realizar tal tarefa, não somos felizes nem privilegiados.
Nas sociedades modernas, as pessoas amam o
individualismo e se preocupam pouco com o bem-estar dos outros. A troca de
experiências de vida se tornou uma mercadoria escassa. Falam cada vez mais do
mundo exterior e cada vez menos de si mesmos. Infelizmente, as pessoas só
conseguem falar de si mesmas quando vão a um psiquiatra ou psicoterapeuta.
Lembro-me de uma paciente que, no auge dos seus cinquenta
anos, disse-me que quando adolescente procurou sua mãe para conversar sobre um
conflito que estava atravessando. A mãe, atarefada, disse que não tinha tempo
naquele momento. O gesto dessa mãe mudou a história de vida dessa filha. Por
não conseguir decifrar a angústia de sua filha, ela, com um simples gesto,
sepultou a comunicação entre elas. A filha nunca mais a procurou para conversar
sobre suas dores e dúvidas.
O mestre de Nazaré era o maior de todos os
educadores. Ele era o mestre da comunicação. Não que falasse muito, mas criava
uma atmosfera prazerosa e sem barreiras. Conseguia ouvir o que as palavras não
diziam. Conseguia perscrutar os pensamentos clandestinos. As pessoas se
surpreendiam pela maneira como ele se adiantava e proferia os pensamentos que
estavam represados dentro delas. Se só conseguimos ouvir o que as palavras
acusam, não temos sensibilidade, somos mecanicistas.
Jesus não cativava as pessoas apenas pelos seus
milagres, mas muito mais pela sua sensibilidade, pela maneira segura, afável e
penetrante de ser. Não queria que as pessoas o seguissem pelos seus atos
sobrenaturais, nem procurava simpatizantes que o aplaudissem, mas como
garimpeiro do coração procurava homens que o seguissem com liberdade e
consciência. Procurava homens que compreendessem sua mensagem, que vivessem uma
vida borbulhante dentro de si mesmos, para depois mudarem o mundo que os circundava.
Uma
experiência educacional
Ultimamente, devido às minhas pesquisas sobre a
inteligência de Cristo, tenho dado conferências em diversos congressos
educacionais sobre um tema ousado e incomum: “A Inteligência do Mestre dos
Mestres Analisada pela Psicologia e Aplicada na Educação”.
Os educadores, antes de ouvirem a minha abordagem,
têm ficado intrigados com o tema proposto. Uma nuvem de pensamentos
perturbadores circula nos bastidores de suas mentes. Afinal de contas, nunca
tinham ouvido ninguém falar sobre esse assunto. Ficam chocados e, ao mesmo
tempo, curiosos para saber como será abordada a personalidade de Cristo e que
tipo de aplicação poderá ser feita na psicologia e na educação. Alguns indagam:
como é possível estudar um tema tão complexo e polêmico? O que um psiquiatra e
pesquisador da psicologia tem a dizer a este respeito? Será que ele fará um
discurso religioso? Será que é possível extrair sabedoria de uma pessoa que só
é abordada teologicamente?
Antes de iniciar essas palestras, sabia que os educadores
constituíam uma plateia de pessoas heterogêneas, tanto em cultura, quanto em
religião e habilidades intelectuais. Sabia também que suas mentes estavam em
suspense e saturadas de preconceitos. Como tenho aprendido a ser ousado e fiel
à minha consciência, eu não me importava com os conflitos iniciais. Após
começar a discursar sobre a inteligência de Cristo, os professores começavam
pouco a pouco a se encantar. Começavam a relaxar e a se recostar cada vez mais
em suas poltronas: o silêncio era total, a concentração era enorme e a
participação deles se tornava uma poesia do pensamento.
Após o término dessas palestras, muitos educadores
se levantavam e aplaudiam entusiasticamente, não a mim, mas ao personagem sobre
quem eu havia discorrido. Relatavam a uma só voz que nunca compreenderam Cristo
dessa forma. Nunca pensaram que ele fosse tão sábio e inteligente e que o que
ele viveu poderia ser não apenas aplicado na psicologia e na educação, mas
também em suas próprias vidas.
Nunca imaginaram que seria possível discorrer sobre
ele sem tocar em uma religião, deixando uma abertura para que cada um seguisse
o seu próprio caminho.
Não poucos relataram que ao compreender a
humanidade elevada de Cristo suas vidas ganharam um outro sentido e a arte de
ensinar ganhou um novo alento. Contudo, não me entusiasmo muito, pois demorará
anos para que a sua personalidade seja estudada e aplicada no currículo escolar
e para que os alunos e os professores discorram sobre ele sem temores. De
qualquer forma, uma semente foi plantada e talvez, no futuro, germine.
As salas de aula têm se tornado um ambiente
estressante, às vezes uma praça de guerra, um campo de batalha. Educar sempre
foi uma arte prazerosa, mas atualmente tem sido um canteiro de ansiedade.
Se Platão vivesse nos dias de hoje, ele se
assustaria com o comportamento dos jovens. Este afável e inteligente filósofo
discorreu que o aprendizado gerava um raro deleite. Todavia, o prazer de
aprender, de incorporar o conhecimento está cambaleante. É mais fácil dar tudo
pronto aos alunos do que estimulá-los a pensar. Por isso, infelizmente, temos
assistido a um fenômeno educacional paradoxal: “Aprendemos cada vez mais a
conhecer o pequeníssimo átomo e o imenso espaço, mas não aprendemos a conhecer
a nós mesmos, a ser caminhantes nas trajetórias do nosso próprio ser”.
Alguns dos discípulos do mestre de Nazaré tinham um
comportamento pior do que muitos alunos rebeldes da atualidade, mas ele os
amava independentemente dos seus erros. O semeador da Galileia estava
preocupado com o desafio de transformá-los. Ele era tão cativante que despertou
a sede do saber naqueles jovens, em cujas mentes não havia mais do que peixes,
aventura no mar, impostos e preocupação com a sobrevivência.
Algo aconteceu no cerne da alma e do espírito deles
e de milhares de pessoas. A multidão, cativada, levantava de madrugada e
procurava por aquele homem extremamente atraente. Por que os homens se sentiam
atraídos por ele? Porque viram nele algo além de um carpinteiro, algo mais do
que um corpo surrado pela vida. Enxergaram nele aquilo que os olhos não
conseguem penetrar.
O mestre os colocou numa escola sem muros, ao ar
livre. E, por estranho que pareça, nunca dizia onde ele estaria no dia
seguinte, onde seria o próximo encontro, se na praia, no mar, no deserto, no
monte das Oliveiras, no pórtico de Salomão ou no templo. O que indica que ele
não pressionava as pessoas a segui-lo, mas desejava que elas o procurassem
espontaneamente: “Quem tem sede venha a mim e beba”.
Os seus seguidores entraram numa academia de sábios,
numa escola de vencedores. As primeiras lições dadas àqueles que almejavam ser
vencedores eram: aprender a perder, reconhecer seus limites, não querer que o
mundo gravitasse em torno de si, romper o egoísmo e amar ao próximo como a si
mesmo.
Almejava que eles se conhecessem intimamente e
fossem transformados intrinsecamente. Os textos das suas biografias são claros,
ele ambicionava mudar a sua natureza humana, e não melhorá-la ou reformá-la.
CURY,
Augusto Jorge. O mestre da sensibilidade, vol. 2:
Análise da
inteligência de Cristo — São Paulo:
Ed.
Academia de Inteligência, 2000.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
Tripalium X poiesis, de MS Cortella
Tripalium versus poiesis
A ideia de
trabalho como castigo precisa ser substituída pelo conceito de realizar uma
obra.
Por que muitas vezes a ideia de trabalho é associada a
castigo, fardo, provação? Do ponto de vista etimológico, a palavra “trabalho”
(assim como em francês, espanhol e italiano) tem origem no vocábulo latino tripalium, que era um instrumento de
tortura, ou seja, três paus entrecruzados para serem colocados no pescoço de
alguém e nele produzir desconforto. A origem do Ocidente é o mundo greco-romano.
Se pegarmos, por exemplo, o período do século II a.C. até o século V, teremos a
formação da sociedade clássica greco-romana com as heranças que o mundo grego
havia gerado. Essa sociedade cresceu em sua exuberância a partir do trabalho
escravo. Em sociedades assim, montadas com base no sistema escravocrata, a
própria ideia de trabalho remete à escravidão. Portanto, trabalho é coisa
menor, indecente, imoral ou de gente que está sendo punida.
Tivemos, depois, o mundo medieval em que a relação foi
senhor e servo. Substitui-se, num determinado momento, a ideia de trabalho pela
de servidão. Não há mais o escravo, mas há o servo, que precisa trabalhar um
pouco para ele e o restante para o senhor dele. Persiste o esquema de dependência.
O mundo capitalista europeu substituiu o trabalho escravo na Europa pelo
trabalho escravo fora da Europa. Continuamos, portanto, com a mentalidade
escravocrata. O mundo ocidental no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo,
foi todo construído sob a lógica da exploração do outro.
Nessas sociedades só nos faltava uma concepção religiosa
na qual o trabalho aparecesse como castigo, e isso o judaísmo nos ofereceu. O
mundo semita trouxe essa ideia à tona, porque a religiosidade semítica expressa
no mundo hebraico vai trazer a ideia do trabalho como castigo. Afinal de
contas, qual foi o grande crime de Adão e Eva? Eles desobedeceram à divindade.
A mulher recebeu uma condenação: “Vais pagar com as dores do parto pelo teu
erro”. E o homem recebeu outra condenação: “Vais trabalhar”. A primeira coisa
que Adão e Eva percebem quando traem a divindade, segundo o relato religioso
hebraico, é que estão nus. E isso não é um empecilho moral, porque aquela
sociedade não tinha problema com aquele tipo de nudez. O problema de
perceber-se nu é que você se dá conta de que tem corpo. E, ao perceber que tem
corpo, você tem de sustentar o corpo, alimentá-lo, cuidá-lo, abrigá-lo etc. Para
tal, vai ter de trabalhar. Então, do ponto de vista da religiosidade originária
no Ocidente, a ideia do trabalho continua como castigo.
Se
isso está no campo da religião, no campo da Filosofia a noção mais forte em
relação à definição de humano é dada por Aristóteles, que, no século V a.C.,
diz: “O homem é um animal racional”. Ou seja, o que define a humanidade de
alguém – e, portanto, a sua dignidade – é a capacidade de dedicar-se ao pensamento
e não às obras manuais. A tal ponto que, no mundo escravocrata da filosofia e
da ciência gregas, não se faziam trabalhos manuais. Platão, um dos maiores
pensadores da história, desprezava o trabalho manual. De tal modo que ele
achava que, quando se estabelecessem os infernos, aqueles que deveriam ficar
junto com os escravos lá eram os pintores, os escultores, todos aqueles que
fossem da elite, mas que desenvolvessem alguma atividade com as mãos. O mundo
da Antiguidade, que é a base da nossa sociedade ocidental, coloca o trabalho
como um castigo do ponto de vista moral-religioso ou uma concepção de castigo a
partir da vontade dos deuses na cultura grega.
O
mundo medieval que terá Deus no centro, especialmente na Europa – o
teocentrismo avançado –, vai colocar a ideia de que bom é ser o senhor; o servo
está sempre na posição de submissão. O mundo capitalista vai introduzir outra
relação, diferente daquela de senhor e escravo ou servo e suserano. Esta relação,
bem trabalhada pelo pensador alemão Karl Marx, será entre patrão e empregado. A
escravatura não vai acontecer nesse mundo europeu, mas sim na América e na
África. O Brasil até hoje não se recuperou da formação escravagista. Nós ainda
consideramos o trabalho manual como tarefa de inferiores. Quer ver um exemplo?
Você diz para o seu filho ou sua filha: “Você não está estudando? Sabe o que
vai ser na vida? Você não vai ser ninguém, vai ser faxineiro”. O trabalho
manual como castigo, o trabalho que estafa, vai aparecer fortemente no mundo
ocidental como uma decorrência moral dos que não têm misericórdia.
O
mundo protestante luterano e calvinista no século XVI vai trazer uma outra
inflexão. Vai colocar o trabalho, o que nasce junto com o capitalismo, como a
continuidade da obra divina. Nesse sentido, o trabalho para acumular e guardar
será extremamente valorizado. Não é casual que essa ética, tão bem estudada por
Max Weber, em Ética protestante e o
espírito do capitalismo (uma obra do século XIX, mas de uma atualidade
brutal no século XXI) vai diferenciar inclusive os modos de organização da sociedade
no Ocidente: aquelas com uma ética mais protestante e aquelas com uma ética
católica, apoiada na lógica de que só a pobreza salva.
O
trabalho como castigo persiste. Tanto que a maior parte das pessoas diz:
“Quando eu parar de trabalhar, eu vou fazer isso, isso e isso”. Sendo que isso
é uma ilusão, porque você pode dizer: “Quando eu não tiver dependência em
relação ao trabalho, eu vou fazer isso”. Mas parar de trabalhar, você não vai parar
nunca. Nem pode. Porque você nunca deixará de fazer a sua obra. Seja a sua obra
aquela que você faz para continuar existindo, seja para ter o seu
reconhecimento. Eu me vejo naquilo que
faço, não naquilo que penso. Eu me vejo aqui, no livro que escrevo, na
comida que eu preparo, na roupa que eu teço.
Etimologicamente, a palavra “trabalho” em latim é labor. A ideia de tripalium aparecerá dentro do latim vulgar como sendo, de fato,
forma de castigo. Mas a gente tem de substituir isso pela ideia de obra, que os
gregos chamavam de poiesis, que
significa minha obra, aquilo que faço, que construo, em que me vejo. A minha criação, na qual crio a mim
mesmo na medida em que crio no mundo.
Vejo o meu filho como minha obra, vejo um jardim como
minha obra. Tenho de ver o projeto que faço como minha obra. Do contrário,
ocorre o que Marx chamou de alienação: todas as vezes que eu olho o que fiz
como não sendo eu ou não me pertencendo, eu me alieno. Fico alheio. Portanto,
eu não tenho reconhecimento. Esse é um dos traumas mais fortes que se tem
atualmente.
Todas
as vezes que aquilo que você faz não permite que você se reconheça, seu
trabalho se torna estranho a você. As pessoas costumam dizer “não estou me
encontrando naquilo que eu faço”, porque o trabalho exige reconhecimento –
conhecer de novo.
Hoje,
quando penso em um trabalho de qualidade de vida numa empresa, estou pensando
em um trabalho que não seja alienado. Trabalhar cansa, mas não necessariamente
precisa gerar estresse. Isso tem a ver com resultado, trabalho tem sempre a ver
com resultado.
Por
que um bombeiro, que não ganha muito e trabalha de uma maneira contínua em algo
que a maioria de nós não gostaria de fazer, volta para casa cansado, mas de
cabeça erguida? Por causa do sentido que ele vê no que faz. Por causa da obra
honesta, a serviço do outro, independentemente do status desse outro, da origem social, da etnia, da escolaridade
etc.
Aí,
não é suplício.
CORTELLA,
Mario Sergio. Qual é a tua obra?:
inquietações propositivas sobre gestão,
liderança e ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
quinta-feira, 9 de maio de 2019
Gestão escolar e formação de gestores
EM
ABERTO: Gestão escolar e formação de gestores. Brasília, vol. 17, n. 72,
abr./jun. 2000.
Perspectivas da Gestão Escolar e
Implicações quanto à Formação de seus Gestores
Heloísa
Lück
Doutora em Educação pela Columbia University, New
York; coordenadora nacional da Rede Nacional de
Referência em Gestão Educacional do Conselho
Nacional de Secretários de Educação (Renageste/Consed);
diretora do Centro de Desenvolvimento Humano
Aplicado (Cedhap/Curitiba
Este artigo tem por objetivo analisar questões
fundamentais e os novos desafios afetos à gestão escolar, em face das novas
demandas que a escola enfrenta, no contexto de uma sociedade que se democratiza
e se transforma. Muitos destes desafios já se acham reconhecidos
conceitualmente embora, em muitos casos, sejam trabalhados apenas genericamente
pela comunidade educacional. Sua notoriedade ocorreu principalmente por terem
sido propostos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Tal é o
caso da democratização da educação, já anteriormente estabelecida pela
Constituição de 1988.
No entanto, como sua prática é ainda um livro
aberto a experiências consistentes, à construção do conhecimento e à
aprendizagem, e dada a sua centralidade para o desenvolvimento de educação de
qualidade, trataremos, especialmente, dessas questões.
Tendo em vista a complexidade dos processos
sociais, suas expressões estão sujeitas a múltiplos significados e
interpretações, cabendo, portanto, explorar tantos quantos forem possíveis, de
modo a alargar e aprofundar o entendimento das mesmas. Não o devemos fazer,
pois, para estabelecer um caráter de comparação excludente ou/e de disputa
entre outros significados já expressos, mas para configurar novos
desdobramentos sobre as questões. O leitor irá observar em vários artigos
apresentados neste Em Aberto
conceitos como gestão democrática e autonomia da escola, que são aqui também tratados.
O objetivo é o de abrir o leque do entendimento sobre essas práticas, ao mesmo
tempo que reforçando a análise de certas abordagens. Um novo ângulo, uma ótica
diferente, uma variação conceitual ajudam, por certo, a fundamentar melhor a
compreensão sobre a realidade e os processos que a constroem.
São objeto deste artigo a mudança de concepção de
escola e implicações quanto à gestão, as limitações do modelo estático de
escola e de sua direção; a transição de um modelo estático para um paradigma
dinâmico; a descentralização, a democratização da gestão escolar e a construção
da autonomia da escola, e a formação de gestores escolares.
Mudança de concepção de escola e
implicações quanto à sua gestão
Já é lugar comum a
afirmação de que vivemos uma época de mudança. Porém, a mudança mais
significativa que se pode registrar é a do modo como vemos a realidade e de
como dela participamos, estabelecendo sua construção. No geral, em toda a
sociedade, observa-se o desenvolvimento da consciência de que o autoritarismo,
a centralização, a fragmentação, o conservadorismo e a ótica do dividir para
conquistar, do perde-ganha, estão ultrapassados, por conduzirem ao desperdício,
ao imobilismo, ao ativismo inconsequente, à desresponsabilização por atos e
seus resultados e, em última instância, à estagnação social e ao fracasso de
suas instituições.
Essa mudança de paradigma é marcada por uma forte
tendência à adoção de concepções e práticas interativas, participativas e
democráticas, caracterizadas por movimentos dinâmicos e globais, com os quais,
para determinar as características de produtos e serviços, interagem
dirigentes, funcionários e “clientes” ou “usuários”, estabelecendo alianças,
redes e parcerias, na busca de soluções de problemas e alargamento de
horizontes.
Em meio a essa mudança, não apenas a escola
desenvolve essa consciência, como a própria sociedade cobra que o faça.
Assim é que a escola se encontra, hoje, no centro
de atenções da sociedade. Isto porque se reconhece que a educação, na sociedade
globalizada e economia centrada no conhecimento, constitui grande valor
estratégico para o desenvolvimento de qualquer sociedade, assim como condição
importante para a qualidade de vida das pessoas.
Embora esse enfoque não seja plenamente adotado e,
quando levado em consideração, seja orientado, ainda, por um velho e já
enfraquecido paradigma orientador da cobrança, em vez de participação, ele tem
grande impacto sobre o que acontece na escola, que é hoje, mais do que nunca,
bombardeada por demandas sociais das mais diversas ordens. Observa-se, também,
o interesse de grupos e organizações, no sentido de colaborarem com a escola,
constituindo-se essa área, um campo fértil para a realização de parcerias em
prol da educação, para o desenvolvimento da sociedade, e por conseguinte, um
grande desafio para os gestores escolares, por exigirem deles novas atenções,
conhecimentos e habilidades.
São demandadas mudanças urgentes na escola, a fim
de que garanta formação competente de seus alunos, de modo que sejam capazes de
enfrentar criativamente, com empreendedorismo e espírito crítico, os problemas
cada vez mais complexos da sociedade, conforme indicado na apresentação deste Em Aberto. A educação, no contexto
escolar, se complexifica e exige esforços redobrados e maior organização do
trabalho educacional, assim como participação da comunidade na realização desse
empreendimento, a fim de que possa ser efetiva, já que não basta ao estabelecimento
de ensino apenas preparar o aluno para níveis mais elevados de escolaridade,
uma vez que o que ele precisa é de aprender para compreender a vida, a si mesmo
e a sociedade, como condições para ações competentes na prática da cidadania. E
o ambiente escolar como um todo deve oferecer-lhe esta experiência.
Educação, portanto, dada sua complexidade e
crescente ampliação, já não é vista como responsabilidade exclusiva da escola.
A própria sociedade, embora muitas vezes não tenha
bem claro de que tipo de educação seus jovens necessitam, já não está mais
indiferente ao que ocorre nos estabelecimentos de ensino. Não apenas exige que
a escola seja competente e demonstre ao público essa competência, com bons
resultados de aprendizagem pelos seus alunos e bom uso de seus recursos, como
também começa a se dispor a contribuir para a realização desse processo, assim
como a decidir sobre os mesmos. São inúmeros os exemplos de parcerias já
existentes no contexto nacional entre organizações não-governamentais e empresas,
com a escola, assim como o bom funcionamento de Associações de Pais e Mestres.
Todo esse movimento, alterando o sentido e
concepção de educação, de escola e da relação escola/sociedade, tem envolvido
um esforço especial de gestão, isto é, de organização da escola, assim como de
articulação de seu talento, competência e energia humana, de recursos e
processos, com vistas à promoção de experiências de formação de seus alunos,
capazes de transformá-los em cidadãos participativos da sociedade. Trata-se de uma
experiência nova, sem parâmetros anteriores para a qual devemos desenvolver
sensibilidade, compreensão e habilidades especiais, novos e abertos. Isso
porque tudo que dava certo antes está fadado ao fracasso na nova conjuntura
(Drucker, 1992).
As limitações do modelo estático
de escola e de sua direção
Até bem pouco tempo, o modelo de direção da escola,
que se observava como hegemônico, era o de diretor tutelado dos órgãos
centrais, sem voz própria, em seu estabelecimento do ensino, para determinar os
seus destinos e, em consequência, desresponsabilizado dos resultados de suas
ações e respectivos resultados. Seu papel, nesse contexto, era o de guardião e
gerente de operações estabelecidas em órgãos centrais. Seu trabalho
constituía-se, sobretudo, repassar informações, controlar, supervisionar,
.dirigir.o fazer escolar, de acordo com as normas propostas pelo sistema de
ensino ou pela mantenedora. Era considerado bom diretor quem cumpria essas
obrigações plenamente, de modo a garantir que a escola não fugisse ao
estabelecido em âmbito central ou em hierarquia superior.
Cabe lembrar que esse procedimento era possível,
uma vez que a clientela escolar era mais homogênea, ante a elitização da
educação, em vista do que, quem não se adequasse ao sistema, era dele banido. A
expulsão explícita ou sutil de alunos da escola foi uma prática aceita como
natural. O entendimento que sustentava essa homogeneidade era o de que o
participante da escola deve estar disposto a aceitar os modelos de organização
estabelecidos e a agir de acordo com eles.
Portanto, tensões, contradições e conflitos eram
eliminados ou abafados.
Os elevadíssimos índices de evasão escolar que
marcaram a escola brasileira podem ser também explicados por um esforço no
sentido de manter a homogeneidade da clientela escolar.
Essa situação está associada ao entendimento
limitado de que a escola é responsabilidade do governo, visto este como uma
entidade superior e externa à sociedade, uma supra-entidade, ao mesmo tempo
autoritária e paternalista. A leitura, ao pé da letra da determinação
constitucional de que educação é dever
do Estado, é comumente associada a este entendimento. Segundo ela, portanto,
educação é apenas direito da
sociedade. Essa dissociação entre direitos de uns e deveres de outros, ao
perpassar a sociedade como um todo, produz na educação, diretores que não
lideram, professores que não ensinam, alunos que não aprendem, todos esperando
que o “outro” faça alguma coisa, para resolver os problemas ou dificuldades,
inclusive os ocupantes de posições no sistema de ensino.
Segundo essa concepção, adotou-se uma fundamentação
teórica de caráter mais normativo, determinada pelo princípio de certo-errado,
completo-incompleto, perfeito-imperfeito. Adotou-se o método de administração
científica, orientado pelos princípios da racionalidade limitada, da
linearidade, da influência estabelecida de fora para dentro, do emprego
mecanicista de pessoas e recursos para realizar os objetivos organizacionais,
da fragmentação e redução dos processos educacionais a tarefas exercidas sem
vida e sem espírito. nem mesmo, muitas vezes, o pedagógico, como é o caso de “corrigir
provas”, “dar nota”, dentre outros. Também associada a esta concepção é o
entendimento de que o importante é fazer o máximo (preocupação com a dimensão
quantitativa) e não o de fazer o melhor e o diferente (preocupação
qualitativa). Com esse enfoque, administrar corresponderia a comandar e
controlar, mediante uma visão objetiva de quem atua sobre a unidade e nela
intervém de maneira distanciada, até mesmo para manter essa objetividade e a
própria autoridade, centrada na figura do diretor.
Cabral Neto e Almeida, em artigo neste Em Aberto também analisam esta questão.
Estes são alguns pressupostos que
emergem desse enfoque sobre a realidade:
·
A
realidade é regular, estável e permanente, sendo dada em caráter absoluto, em
vista do que os sistemas de ensino e as organizações escolares não se
diferenciam significativamente entre si, cabendo a todos a mesma forma de
atuação em suas comunidades.
·
O
ambiente de trabalho e comportamento humano são previsíveis, podendo ser, em consequência,
controláveis por normas e regulamentos, que garantiriam uniformidade de ação.
Incerteza, ambiguidade, tensão, conflito e crise são encarados como disfunções
e como problemas a serem evitados e reprimidos, e não como oportunidades de
crescimento e transformação.
·
Os
sucessos, uma vez alcançados, acumulam-se aos anteriores e mantêm-se por si
mesmos, não demandando esforços especiais de manutenção e desenvolvimento.
·
A
responsabilidade maior do dirigente é a obtenção e a garantia de recursos
necessários para o bom funcionamento da unidade, sendo a precariedade de
recursos considerada como o maior impedimento à realização do seu trabalho.
·
A
melhor maneira de administrar é a de fragmentar o trabalho em funções e tarefas
que, para serem bem executadas, devem ser atribuídas a diferentes pessoas, que
se especializam nelas.
·
A
objetividade garante bons resultados, sendo a técnica o elemento fundamental
para a melhoria do trabalho.
·
Estratégias
e modelos de administração que deram certo não devem ser mudados, como forma de
garantir a continuidade do sucesso.
·
Os
profissionais e usuários das organizações. como é o caso do professor e dos
alunos. são considerados como participantes cativos das mesmas, em vista do que
aceitariam facilmente as normas impostas, bastando para isso serem cooptados.
·
A
contrapartida a essa cooptação é o protecionismo a esses participantes,
mediante ações paternalistas e condescendentes.
Mediante a orientação por tais pressupostos,
resultou uma hierarquização e verticalização dos sistemas de ensino e das
escolas, uma desconsideração aos processos sociais neles vigentes, a
burocratização dos processos, a fragmentação de ações e sua individualização e,
como consequência, a desresponsabilização de pessoas em qualquer nível de ação,
pelos resultados finais. A eles está associada a administração por comando e
controle, centrada na autoridade e distanciada da implementação de ações,
construindo-se, dessa forma, uma cultura de determinismo e dependência.
Dada, no entanto, a crescente complexidade das
organizações e dos processos sociais nelas ocorrentes, caracterizada pela diversificação
e pluralidade de interesses que envolvem, e a dinâmica das interações no embate
desses interesses, não se pode conceber sejam elas geridas pelo enfoque
limitado da administração científica, pelo qual, tanto a organização, como as
pessoas atuando em seu interior, eram consideradas como componentes de uma
máquina a ser manejada e controlada de fora para dentro. Também segundo esse
enfoque, os problemas recorrentes seriam sobretudo encarados como carência de
insumos, em desconsideração à falta de orientação de seu processo e dinamização
da energia social necessária para promovê-lo.
A transição de um modelo estático
para um paradigma dinâmico
Os sistemas educacionais, como um todo, e os
estabelecimentos de ensino, como unidades sociais especiais, são organismos
vivos e dinâmicos, fazendo parte de um contexto socioeconômico cultural marcado
não só pela pluralidade, como pela controvérsia que vêm, também, a se
manifestar na escola; portanto, com tais características devem ser também as
escolas entendidas. Ao serem vistas como organizações vivas, caracterizadas por
uma rede de relações entre todos os elementos que nelas atuam ou interferem
direta ou indiretamente, a sua direção demanda um novo enfoque de organização e
é a esta necessidade que a gestão escolar procura responder. Ela abrange,
portanto, a dinâmica das interações, em decorrência do que o trabalho, como
prática social, passa a ser o enfoque orientador da ação de gestão realizada na
organização de ensino.
É possível afirmar que, tendo em vista o momento de
transição entre esses dois enfoques, a escola se defronta muitas vezes, ainda,
com um sistema contraditório em que as forças de tutela ainda se fazem
presentes, ao mesmo tempo em que os espaços de abertura são criados, e a escola
é instigada a assumir ações para as quais ainda não desenvolveu a competência
necessária.
Portanto, a escola e seus dirigentes se defrontam
com a necessidade de desenvolver novos conhecimentos, habilidades e atitudes
para o que não dispõem mais de modelos e sim de concepções.
Um novo paradigma emerge e se desenvolve sobre a
educação, a escola e sua gestão. como, aliás, em todas as áreas de atuação
humana: não existe nada mais forte do que uma idéia cujo tempo chegou, em vista
do que se trata de um movimento consistente e sem retorno. E a idéia que
perpassa todos os segmentos da sociedade é a que demanda espaços de
participação (Lück, 1999) associados aos quais estão, inevitavelmente, os
esforços de responsabilidade.
Há de se dar conta, no contexto da escola, da
multiculturalidade de nossa sociedade, da importância e riqueza dessa
diversidade, associados à emergência do poder local e reivindicação de esforços
de participação.
Em decorrência da situação exposta, muda a
fundamentação teórico-metodológica necessária para a orientação e compreensão
do trabalho da direção da escola, que passa a ser entendido como um processo de
equipe, associado a uma ampla demanda social por participação.
Esse paradigma é marcado, sobretudo, por uma
mudança de consciência a respeito da realidade e da relação das pessoas na
mesma. se assim não fosse, seria apenas uma mudança de modelos. Essa mudança de
consciência está associada à substituição do enfoque de administração, pelo de
gestão. Cabe ressaltar que não se trata de simples mudança terminológica e sim
de uma fundamental alteração de atitude e orientação conceitual. Portanto, sua
prática é promotora de transformações de relações de poder, de práticas e da
organização escolar em si, e não de inovações, como costumava acontecer com a
administração científica.
Esse novo paradigma é fundamentado pelos seguintes pressupostos:
·
A
realidade é global, sendo que tudo está relacionado a tudo, direta ou indiretamente,
estabelecendo uma rede de fatos, circunstâncias e situações, intimamente
interligadas.
·
A
realidade é dinâmica, sendo construída socialmente, pela forma como as pessoas
pensam, agem e interagem.
·
O
ambiente social e comportamento humano são dinâmicos e por isso imprevisíveis,
podendo ser coordenados e orientados e não plenamente controlados. O controle
cerceia, a orientação impulsiona.
·
Incerteza,
ambiguidade, contradições, tensão, conflito e crise são vistos como elementos
naturais de qualquer processo social e como condições e oportunidades de
crescimento e transformação.
·
A
busca de realização e sucesso corresponde a um processo e não a uma meta. Não
tem limites e gera novos sucessos e realizações que devem, no entanto, ser
continuamente buscados pela ação empreendedora.
·
A
responsabilidade maior do dirigente é a articulação sinérgica do talento,
competência e energia humana, pela mobilização contínua para promover uma
cultura organizacional orientada para resultados e desenvolvimento.
·
Boas
experiências realizadas em outros contextos servem apenas como referência e não
como modelos, não podendo ser transferidas, tendo em vista a peculiaridade de
cada ambiente organizacional.
·
As
organizações têm vida, desenvolvendo e realizando seus objetivos, apenas
mediante a participação conjunta de seus profissionais e usuários, de modo
sinérgico.
·
A
melhor maneira de realizar a gestão de uma organização é a de estabelecer a
sinergia, mediante a formação de equipe atuante, levando em consideração o seu
ambiente cultural.
·
O
talento e energia humanos associados são os melhores e mais poderosos recursos
para mover uma organização e transformá-la.
A partir de tais pressupostos, emerge o
entendimento de que professores, equipe técnico-pedagógica, funcionários,
alunos, pais, comunidade, todos, não apenas fazem parte do ambiente cultural,
mas o formam e constroem, pelo seu modo de agir, em vista do que, de sua
interação dependem a identidade da escola na comunidade, o seu papel na mesma e
os seus resultados. A mudança de consciência implica o reconhecimento desse
fator pelos participantes do processo escolar, de sua compreensão ao seu papel
em relação ao todo, uma vez que, como lembra Peter Senge (1993, p. 29), .quando
os membros de uma organização concentram-se apenas em sua função, eles não se
sentem responsáveis pelos resultados. E essa percepção setorizada tem sido a
responsável pelo fracionamento e dissociação das ações escolares e consequente
diluição do seu trabalho e dos seus efeitos. Todos estão lembrados dos esforços
despendidos por inúmeros sistemas de ensino, no sentido de definir e delimitar
papéis e funções de profissionais da escola, em vez de descrever suas
responsabilidades por resultados.
Segundo este novo paradigma, entende-se que os
problemas são globais e complexos, em vista do que ações locais e tópicas, em
desconsideração ao conjunto de que fazem parte, são ações inconsequentes, no
sentido de transformar a escola e mover sua prática social voltada para o
desenvolvimento. Em decorrência, a qualidade da educação não poderia mais ser
promovida pelo enfoque administrativo, pelo qual se garantiriam recursos e se
promoveriam ações concentradas em determinados focos prioritários e isolados,
na expectativa de que viessem a repercutir no conjunto.
Portanto, tal entendimento implicaria a realização
de ações conjuntas, para as quais todos os participantes do contexto escolar
deveriam concorrer (Lück, 1996).
Em acordo com esses pressupostos, um diretor de
escola é um gestor da dinâmica social, um mobilizador e orquestrador de atores,
um articulador da diversidade para dar-lhe unidade e consistência, na
construção do ambiente educacional e promoção segura da formação de seus
alunos. Para tanto, em seu trabalho, presta atenção a cada evento,
circunstância e ato, como parte de um conjunto de eventos, circunstâncias e
atos, considerando-os globalmente, de modo interativo e dinâmico. Tal atitude
garante a possibilidade de que pense grande e aja no pequeno. (Klink, 1993),
isto é, que em suas ações localizadas tenha em mente o conjunto todo da escola
e seu papel educacional, não apenas imediato, mas de repercussão no futuro, em
acordo com visão estratégica e com amplas políticas educacionais. Implica ter
uma visão da escola inserida em sua comunidade, a médio e longo prazo, com
horizontes largos.
É no contexto desse entendimento, que emerge o
conceito de gestão escolar, que ultrapassa o de administração escolar, por
abranger uma série de concepções não abarcadas por este outro, podendo-se citar
a democratização do processo de construção social da escola e realização de seu
trabalho, mediante a organização de seu projeto político-pedagógico, o
compartilhamento do poder realizado pela tomada de decisões de forma coletiva,
a compreensão da questão dinâmica e conflitiva e contraditória das relações
interpessoais da organização, o entendimento dessa organização como uma
entidade viva e dinâmica, demandando uma atuação especial de liderança e
articulação, a compreensão de que a mudança de processos educacionais envolve
mudanças nas relações sociais praticadas na escola e nos sistemas de ensino.
É a partir dessas questões que conceitos como
descentralização, democratização e autonomia da escola se tornam não apenas
importantes, mas imprescindíveis. Cabe, portanto, estudá-los e compreendê-los.
No artigo de Cabral Neto e Almeida, neste Em
Aberto, a questão da descentralização é analisada no contexto de reforma do
Estado, assim como em sua aplicação no Rio Grande do Norte. O que se apresenta
a seguir é, portanto, um outro desdobramento sobre a questão.
A descentralização, a
democratização da gestão escolar e a construção da sua autonomia da escola
Como paradigma, é uma visão de mundo que permeia
todas as dimensões da ação humana, não se circunscreve a esta ou àquela área, a
este ou àquele nível de operação. A realidade atua como um conjunto de peças de
dominó colocadas em pé, lado alado: ao se empurrar uma, todas as demais irão
caindo subsequentemente.
Essa situação ilustra a compreensão da realidade
como um sistema, daí por que todos os conceitos seriam inter-relacionados.
Mais do que isso ocorre, uma vez que um conceito
está, de fato, inserido no outro.
Muito embora as concepções de descentralização,
democratização da gestão escolar e autonomia da escola sejam parte de um mesmo
corolário, encontramos certos sistemas que buscam o desenvolvimento da
democratização da gestão escolar, sem pensar na autonomia do estabelecimento de
ensino e sem descentralizar poder para a mesma. Ou que pensam em construir sua
autonomia, sem agir no sentido de criar mecanismos sólidos de sua
democratização, em vista do que, paradoxalmente, se pode criar a autonomia do
autoritarismo local. Por outro lado, ainda, observa-se o esforço de alguns
sistemas de ensino, no sentido de desenvolver nas escolas os conceitos de
democratização e autonomia, de modo centralizado, o que implica uma contradição
paradigmática muito comum, que faz com que os esforços se anulem. Isso porque é
comum a prática de se incentivar a promoção de mudanças de cima para baixo, na
hierarquia funcional, de modo que a mudança pretendida é proposta para a
escola, não sendo absorvida e praticada por quem a propõe. Em vista disso, sendo
implantada linearmente e contrariamente ao seu espírito e propósitos
estabelecidos (Lück, 1985).
Em consequência, é possível identificar certa
diversidade de orientações e expressões que manifestam graus de intensidade
diferentes em relação ao seguimento dos paradigmas. Isso porque o grau de
maturidade de diferentes grupos e segmentos varia.
É em função disso que podemos afirmar que vivemos
em uma condição de transição entre um paradigma e outro, de que resultam
algumas tensões e contradições próprias do processo.
O processo de descentralização
Por que hoje há tendência à descentralização?
Conforme Ana Luiza Machado (1999, p. 86), é porque o mundo passa por mudanças
muito rápidas. Na verdade, a globalização coloca cada dia um dado novo, cada
dia, uma coisa nova. Há necessidade de adaptação e de constante revisão do que
está acontecendo. Então, isso gera a necessidade de que o poder decisório
esteja exatamente onde a coisa acontece. Porque, até que ele chegue aonde é
necessário, já houve a mudança, as coisas estão diferentes, e aí aquela decisão
já não tem mais sentido.
O movimento de descentralização em educação é
internacional (Bullock, Thomas, 1997; Fiske, 1996a, 1996b) e está relacionado
com o entendimento de que apenas localmente é possível promover a gestão da
escola e do processo educacional pelo qual é responsável, tendo em vista que,
sendo a escola uma organização social e o processo educacional que promove,
altamente dinâmico, qualquer esforço centralizado e distante estaria fadado ao
fracasso, como de fato, tem-se verificado. Também, é sobretudo como
reconhecimento da força dos movimentos democráticos, como condição de
transformação e desenvolvimento social.
É preciso reconhecer que a descentralização tem
sido praticada tendo como pano de fundo não apenas essa perspectiva de
democratização da sociedade, mas também a de promover melhor gestão de
processos e recursos e, ainda, como condição de aliviar os organismos centrais
que se tornam sobrecarregados com o crescimento exponencial do sistema
educativo e a complexidade das situações geradas, que inviabilizam o controle
central (Barroso, 1997).
Quando se observa que alguns sistemas de ensino
descentralizam, centralizando, isto é, dando um espaço com uma mão, ao mesmo
tempo que tirando outro espaço, com outra, pode-se concluir que o princípio que
adotam não é o da democratização, mas o de maior racionalidade no emprego de
recursos e o de busca de maior rapidez na solução dos problemas. Nesse caso,
não se pretende o estabelecimento de mudanças significativas nas relações entre
sistema e escola, escola e comunidade, dirigentes e professores, professores e
alunos. mudanças estas que deveriam estar voltadas para o compartilhamento de
decisões (Fiske, 1996a). Nesse caso, pretende-se, tão-somente, estabelecer
maior controle sobre a escola, ao mesmo tempo sobrecarregando-a com mais
trabalho e maior responsabilidade.
Coordenadores estaduais da Rede Nacional de
Referência em Gestão Educacional, do Conselho Nacional de Secretários de
Educação (Renageste/Consed), reunidos em Brasília, em setembro de 1997,
identificaram que, para ser plena, a democratização da escola deveria passar
pela democratização da educação, isto é, do sistema de ensino como um todo,
envolvendo os níveis superiores de gestão, que deveriam, também, sofrer o
processo de gestão democrática, mediante a participação da comunidade e de
representantes das escolas na determinação das decisões que são tomadas nesse
âmbito. Somente mediante uma tal prática é que seria possível realizar a
verdadeira descentralização proposta. Em pesquisa realizada no Paraná, sobre a
implantação de políticas educacionais e implicações quanto a sua gestão (Lück,
Schneckenberg, Durli, 1999) foi identificado o anseio de diferentes grupos de
interesse, na determinação dessas políticas, e a sua frustração por falta desse
espaço. Essa prática implica redefinição dos papéis do Estado, em associação
com os da escola e da comunidade, em relação a esta instituição e seu trabalho
educacional, mediante o estabelecimento do princípio de corresponsabilidade
pelo mesmo. Essa redefinição seria acompanhada de um movimento de
desburocratização, uma vez que a existência ou fortalecimento da burocracia estão
associados à centralização.
De qualquer modo, esse processo, como todo
movimento social, é sujeito a contradições. A contradição evidenciada na
educação brasileira não invalida, portanto, o movimento, apenas registra um
aspecto natural do mesmo. Conforme indicado por Bullock e Thomas (1997), em seu
estudo sobre descentralização, esta se processa simultaneamente com um
movimento de centralização, isto é, enquanto se descentralizam certas coisas,
centralizam-se outras. É importante registrar que o que comumente se
descentralizam são recursos e espaços para a tomada de decisão, mas que, como a
cultura escolar não está criada e estabelecida para fazê-lo, adequadamente,
centralizam-se ações no sentido de criar mecanismos de influência sobre a
escola para fazê-lo e prestar contas do processo. Barroso (1997, p. 11) afirmou
que “O Estado devolve (para as escolas) as táticas, mas conserva as
estratégias, ao mesmo tempo que substitui um controle direto, centrado no
respeito das normas e dos regulamentos, por um controle remoto, baseado nos
resultados”.
A descentralização da educação é, por certo, um
processo extremamente complexo e, quando se considera o caso do Brasil, a
questão se complexifica ainda mais, por tratar-se de um País continente, com
diversidades regionais muito grandes, com distâncias imensas que caracterizam,
também, grande dificuldade de comunicação, apesar de vivermos na era da
comunicação mundial em tempo real. Em vista disso, só se pode pensá-la em
termos graduais e processuais, mediante conquistas sucessivas. Cabe aqui
aplicar os princípios da participação propostos por Pedro Demo (1988), no
sentido de que participação é conquista.
Desse modo, a descentralização educacional não é um
processo homogêneo e praticado com uma única direção. Ela responde à lógica da
organização federativa. (Parente, Lück, 1999, p. 7). Como se trata de um
processo que se refere à transferência de competências para outros níveis de
governo e de gestão, do poder de decisão sobre os seus próprios processos
sociais e os recursos necessários para sua efetivação, implica existência ou
construção de competência para tanto, daí porque a impossibilidade da
homogeneidade apontada. O nível de maturidade associada à competência dos
grupos sociais é fator substancial na determinação da amplitude do processo.
É em decorrência de tal situação que, em muitos
casos, pratica-se muito mais a desconcentração, do que propriamente a
descentralização, isto é, realiza-se a delegação regulamentada da autoridade,
tutelada ainda pelo poder central, mediante o estabelecimento de diretrizes e
normas centrais, controle na prestação de contas e a subordinação
administrativa das unidades escolares aos poderes centrais, em vez de delegação
de poderes de auto-gestão e autodeterminação na gestão dos processos
necessários para a realização das políticas educacionais. Segundo Florestal e
Cooper (1997, p. 32), “desconcentração é ato de conferir autoridade a um agente
situado em um nível inferior na mesma hierarquia e localizado mais próximo dos
usuários do serviço, com o entendimento de que esses agentes mantêm-se sob o
controle hierárquico do governo central”.
Nesse caso, não ocorrem a reorganização e
redefinição funcional do aparelho de Estado, conforme indicado por Barroso
(1997), nem a delegação de poderes de autogestão e autodeterminação, na gestão
dos processos necessários para realização das políticas educacionais estas,
determinadas no centro, mesmo assim, ouvindo a sociedade e com participação de
seus vários segmentos.
A desconcentração, pois, parece ser mais o caso
praticado no Brasil, em nome da descentralização, estando, no entanto, esse
movimento se conduzindo para uma descentralização mais plena.
Conforme, ainda, apontado por Parente e Lück (1999,
p. 13), o que vem ocorrendo na prática educacional brasileira (...) é o
deslocamento do processo decisório, do centro do sistema, para os níveis
executivos mais próximos aos seus usuários, ou seja, a descentralização do
governo federal para as instâncias sub nacionais, onde a União deixa de
executar diretamente programas educacionais e estabelece e reforça suas
relações com os Estados e os municípios, chegando até ao âmbito da unidade
escolar. Da mesma forma, os sistemas estaduais vêm adotando política similar,
ou seja, transferem recursos e responsabilidades com a oferta de serviços
educacionais, tanto para o município, quanto diretamente para a escola.
A municipalização do ensino e a escolarização da
merenda são práticas bem-sucedidas, nesse sentido.
A descentralização é, pois, um processo que se
delineia, à medida que vai sendo praticado, constituindo, portanto, uma ação
dinâmica de implantação de política social, visando estabelecer, conforme
indicado por Malpica (1994), mudanças nas relações entre o sistema central,
pela redistribuição de poder, passando, em consequência, as ações centrais, de
comando e controle, para coordenação e orientação (descentralização política);
pela abertura à autodeterminação no estabelecimento de processos e mecanismos
de gestão do cotidiano escolar, de seus recursos e de suas relações com a
comunidade (gestão administrativa e financeira). Ainda, conforme apontado por
Parente e Lück (1999), conduz a escola à construção de sua identidade
institucional, constituída pela formação da capacidade organizacional para
elaborar seu projeto educacional (descentralização pedagógica), mediante a
gestão compartilhada e a gestão direta de recursos necessários à manutenção do
ensino. Portanto, construindo sua autonomia.
A autonomia da escola
Em associação à descentralização, a autonomia da
escola é dos conceitos mais mencionados nos programas de gestão promovidos
pelos sistemas estaduais de ensino, como também em programas do Ministério de
Educação, uma vez que neles está presente, como condição para realizar o
princípio constitucional de democratização da gestão escolar. Isto porque a
autonomia de gestão da escola, a existência de recursos sob controle local,
junto com a liderança pelo diretor e participação da comunidade, são
considerados os quatro pilares sobre os quais se assentam a eficácia escolar.
O conceito de autonomia da escola está relacionado
com tendências mundiais de globalização e mudança de paradigma que têm
repercussões significativas nas concepções de gestão educacional e nas ações
dela decorrentes. Descentralização do poder, democratização do ensino,
instituição de parcerias, flexibilização de experiências, mobilização social
pela educação, sistema de cooperativas, interdisciplinaridade na solução de
problemas são estes alguns dos conceitos relacionados com essa mudança.
Entende-se, nesse conjunto de concepções, como fundamental, a mobilização de
massa crítica para se promover a transformação e sedimentação de novos
referenciais de gestão educacional para que a escola e os sistemas educacionais
atendam às novas necessidades de formação social a que a escola deve responder,
conforme anteriormente apontado.
A autonomia é uma necessidade, quando a sociedade
pressiona as instituições para que realizem mudanças urgentes e consistentes,
para que respondam com eficácia e rapidamente às necessidades locais e da
sociedade globalizada, em vista do que, aqueles responsáveis pelas ações devem
tomar decisões rápidas, de modo que as mudanças ocorram no momento certo, a fim
de não se perder o momentum de
transformação e da realização de objetivos. E esse momentum é sobretudo dependente de comprometimento coletivo.
É necessário, no entanto, que se reflita sobre o
conceito de autonomia escolar e se explore o seu significado e suas
repercussões, uma vez que concepções conflitantes estão sendo expressas,
gerando desentendimento e confusão sobre a questão, que, na prática, promovem
desarticulação de ações e de propósitos. As duas situações abaixo registradas apontam
esse fato.
De um lado, observa-se que, em muitos programas de
sistemas educacionais, a autonomia é entendida como o resultado de
transferência financeira.
Conforme se pronunciou um dirigente educacional,
dando notoriedade a essa proposta: “A autonomia é financeira, ou não existe”.
Porém, transferência de recursos por si não garante autonomia, uma vez que
esta, como processo complexo, depende de uma série de características, e está
relacionada com outras áreas como se verá mais adiante. Por outro lado, para
muitos diretores, a autonomia é a capacidade de agir independentemente do
sistema. A expressão desse entendimento foi observada pela autora em ocasiões
diversas em que diretores escolares negavam a autoridade de seu secretário de
Educação sobre várias questões, como por exemplo, de solicitar a prestação de
contas de resultados de certas ações ou do direito de convocá-los para uma
reunião na Secretaria de Educação iriam consultar as bases para decidir se
deveriam ou não comparecer. Por parte dos sistemas educacionais, os mesmos
órgãos que preconizam a autonomia da escola, decretando a eleição do diretor da
escola, concedendo as verbas para a autogestão escolar, cerceiam a prática
dessa autonomia com normas e regulamentos frequentes sobre operações e não
sobre os princípios da qualidade do ensino e seus resultados. O hábito da
interferência no cotidiano da escola e do controle sobre a mesma continua
vigendo.
Em muitos casos, a interferência operacional do
sistema sobre a escola é tanta que inviabiliza a sua orientação para
implementar seu próprio projeto político-pedagógico, o qual é abandonado, na
expectativa das determinações superiores. Por vezes, até mesmo, chegam à
escola, de diferentes áreas de ação da Secretaria de Educação, comunicações e
demandas conflitantes que confundem e desestimulam a realização de seu projeto
de desenvolvimento, promovendo, dessa forma, a imobilização da escola. Tais
situações indicam a falta de entendimento do que é autonomia e das implicações
para sua realização como uma política do sistema.
O que é a autonomia? Qual o seu âmbito e
abrangência? Corresponderia ao total e absoluto desligamento de um poder
central?
Vamos examinar essa questão. Por certo, trata-se a
autonomia de um conceito complexo, com múltiplas nuances e significados, tantos
quantos esforços existem para expressá-la na realidade escolar. Algumas vezes,
porém, ela é muito mais uma prática de discurso do que uma expressão concreta
em ações objetivas: em outras, representa o discurso utilizado para justificar
práticas individualistas e dissociadas do contexto. Mas é fundamental que se
desenvolva um entendimento comum sobre o mesmo, uma vez que, a partir dele, são
organizados programas de ação que influenciam, explicam e legitimam ações de
repercussão social muito grande.
O verbete autonomia,
conforme propõe o Dicionário Básico da
Língua Portuguesa (Ferreira, 1995), é “a capacidade de resolver seus
próprios problemas”. Tal conceito apresenta uma série de implicações, sendo a
mais forte, a de que quem resolve seus próprios problemas não necessita de
outrem para ajudar-lhe a fazê-lo. Corresponde, portanto, esse significado, a
uma autonomia plena e total desligamento de outros setores. Nesse caso, a
escola não necessitaria do governo, nem da comunidade para realizar seu
trabalho: seria autossuficiente. Ora, tal condição é inadequada, em todos os
seus aspectos. A escola é uma organização social, instituída pela sociedade e
organizada para prestar-lhe um serviço que deve ser, portanto, coordenado e
orientado por organismos sociais que detêm esse estatuto, ao mesmo tempo em que
se articula com sua comunidade local, de modo a desempenhar sua missão
adequadamente.
Possivelmente em decorrência desse entendimento é
que se receia, na escola, que a sua autonomia venha a resultar em seu abandono
pelo governo central.
Poder-se-ia afirmar, portanto, que a escola se
situa entre dois contextos de articulação: um central e outro local, sendo interdependente
em relação a ambos. Tanto em relação à sua instituição, como ao funcionamento e
aos resultados de seu trabalho, a escola, mesmo a de caráter privado, deve à
sociedade ampla, representada pelo governo, e a local, representada pela
comunidade, prestar contas de sua responsabilidade (definida aliás,
socialmente), como deles receber orientações e, no caso da escola pública,
recursos compatíveis com suas necessidades de bom funcionamento.
Portanto, a escola existe e vive em condição de
interdependência com os organismos centrais e locais, necessitando articular-se
com os mesmos para garantir sua própria identidade social. No entre jogo desses
âmbitos é que a escola constrói a sua autonomia, sendo esta caracterizada,
portanto, pela fluidez, em acordo com as tendências e forças do momento.
Como um conceito que explica situações complexas e
de múltiplas facetas, autonomia não pode ser explicada simplesmente pelo senso
comum do dicionário. Precisa ser articulado de modo especial, para explicar um
processo que se pretende construir na escola. Conceituar e explicar os
múltiplos e complexos desdobramentos de seu significado implica, pois, delinear
o que se pretende promover e se promove na escola, que identidade essa
instituição constrói e pretende construir, que tipo de relação existe entre a
mesma, sua comunidade e os órgãos centrais. Os desdobramentos políticos e
sociológicos do conceito são, portanto, múltiplos. Estabelece-se, neste
documento, que autonomia, no contexto da educação, consiste na ampliação do
espaço de decisão, voltada para o fortalecimento da escola como organização
social comprometida reciprocamente com a sociedade, tendo como objetivo a
melhoria da qualidade do ensino. Autonomia é a característica de um processo de
gestão participativa que se expressa, quando se assume com competência a
responsabilidade social de promover a formação de jovens adequada às demandas
de uma sociedade democrática em desenvolvimento, mediante aprendizagens
significativas.
Trata-se de um conceito que se realiza dinamicamente,
num continuum fluido, conforme as
manifestações de participação local, no entrechoque com a determinação externa.
O mesmo abrange a mudança de um princípio de uniformidade, ditada por regras e
regulamentos, para o princípio de unidade, orientada por princípios e
diretrizes.
A autonomia não se resume, portanto, à questão
financeira, nem é mais significativa nessa dimensão, e sim na política, isto é,
no que se refere à capacidade de tomar decisões compartilhadas e comprometidas
e usar o talento e a competência coletivamente organizada e articulada, para a
resolução dos problemas e desafios educacionais, assumindo a responsabilidade
pelos resultados dessas ações, vale dizer, apropriando-se de seu significado e
de sua autoria. Portanto, a descentralização é um meio e não um fim, na
construção da autonomia, assim como esta é, também, um meio para a formação
democrática dos alunos.
Sustenta esse posicionamento a compreensão de que
todos os problemas relacionados com a educação são problemas da coletividade,
não são problemas exclusivamente de governo. Em consequência, as soluções para
os mesmos devem ser buscadas em conjunto, levando em conta a reflexão coletiva
sobre a realidade e a necessidade de negociação e o convencimento local para
sua efetivação, o que só pode ser praticado, mediante o espaço de autonomia.
Cabe lembrar aqui, que tomada de decisão, antes e
acima de tudo, corresponde ao estabelecimento de um firme e resoluto
compromisso de ação, sem o qual o que se necessita e espera-se, não se converte
em realidade; não é, portanto, uma formalização de intenções ou de expectativas
(Lück, 1999). Vale dizer que, associada a essa tomada de decisão, devem estar
presentes o empreendedorismo e a pro atividade, uma vez que na sua ausência
nada se realiza.
Para a prática da autonomia escolar, alguns
mecanismos são explicitados: existência de estrutura de gestão colegiada, que
garante a gestão compartilhada; a eleição de diretores e a ação em torno de um
projeto político-pedagógico.
Quanto à estrutura de gestão colegiada, o próprio
Ministério da Educação (MEC) orientou a organização dessas estruturas, com o
objetivo de sistematizar e ordenar a formação desses mecanismos de gestão,
denominando-os genericamente como Unidade Executora, cuja responsabilidade
precípua seria a de receber, executar e gerir recursos financeiros da unidade
escolar:
A Unidade Executora é uma denominação genérica, adotada
para referir-se às diversas nomenclaturas, encontradas em todo território
nacional para designar entidade de direito privado, sem fins lucrativos,
vinculados à escola, tendo como objetivo a gestão dos recursos financeiros,
transferidos para a manutenção e desenvolvimento do ensino. Não importa qual a
denominação que a unidade escolar e a comunidade escolham para a Unidade
Executora, seja ela Associação, Caixa Escolar, Círculo de Pais e outras. O
princípio básico é a busca da promoção da autonomia da escola e participação da
comunidade, em todas as suas dimensões: pedagógica, administrativa e financeira
(Brasil, 1997).
Mediante a existência dessa unidade, a escola
estaria apta a receber, diretamente do MEC, recursos financeiros para suas
necessidades cotidianas. Também muitos Estados repassam recursos diretamente
para suas escolas. O Estado de Tocantins criou o Programa Escola Autônoma, pelo
qual a Secretaria de Educação repassa mensalmente, via convênio com as
associações de apoio às escolas públicas, com as cooperativas educacionais e
com as entidades filantrópicas e religiosas, recursos financeiros para a
aquisição de materiais, equipamentos e para a manutenção do ensino, de forma
geral. O critério para o valor dos repasses tem como base o número de alunos
matriculados e que frequentam cada unidade escolar (Gestão em Rede, 1999).
Observa-se, nessas iniciativas, a acentuação à dimensão financeira para
promover a autonomia, e não a mudança das relações recíprocas, de modo a
construir a mutualidade de compromissos. O artigo de Parente e Lück, neste Em Aberto analisa a distribuição dessas
estruturas de gestão colegiada no contexto nacional.
A respeito dos mecanismos de eleição de diretor, o
movimento de descentralização e construção da autonomia da escola passou, no
Brasil, pela adoção de mecanismos diferenciados de provimento do cargo de
diretor da escola, em contrapartida à prática tradicional de indicação por
políticos, filtrada e referendada pelos órgãos centrais. Assim é que a escolha
do diretor escolar, pela via da eleição direta e com a participação da
comunidade, vem se constituindo e ampliando-se como mecanismo de seleção
diretamente ligado à democratização da educação e da escola pública, visando
assegurar, também, a participação das famílias no processo de gestão da
educação de seus filhos (Parente, Lück, 1999, p. 37).
Essa eleição teve início no Estado do Paraná, em
1984, sendo praticada em 17 Estados brasileiros. Não há, no entanto, resultados
gerais e consistentes que demonstrem a efetividade desse mecanismo na prática
efetiva de gestão democrática, tendo sido até mesmo identificada a
intensificação do autoritarismo da gestão escolar por diretores eleitos, em
certos casos. Cabe lembrar que não é a eleição em si que democratiza, mas sim o
que ela representaria como parte de um processo participativo global, do qual
ela seria apenas um momento significativo. Ao se promover a eleição de
dirigentes, estar-se-ia delineando uma proposta de escola, de estilo de gestão
e firmando compromissos coletivos para levá-los a efeito. Esse entendimento, no
entanto, não se tem manifestado no conjunto das escolas, como em geral não se
manifesta em nossa prática de escolha de nossos dirigentes e legisladores: os
elegemos e nos dês compromissamos de qualquer participação, mesmo a de
acompanhamento das ações necessárias que tomem para pôr em prática essa
política. Conforme analisado por Paro (1996, p. 130), a aspiração de que com a
introdução da eleição, as relações na escola se dariam de forma harmoniosa e de
que as práticas clientelistas desapareceriam, mostrou-se ingênua e irrealista,
posto que a eleição de diretores, como todo instrumento de democracia, não
garante o desaparecimento de conflitos. Constitui apenas uma forma de permitir
que eles venham à tona e estejam ao alcance da ação de pessoas e grupos para
resolvê-los. Trata-se, portanto, de uma área de atuação sobre a qual muito
temos a aprender: como eleger o melhor e mais competente profissional
disponível para o cargo, como superar os interesses individuais e de grupos
isolados, na busca do bem social e da qualidade da educação, como manter o
compromisso coletivo e a mobilização social em torno da escola, para além da
ocasião das eleições.
A decisão pelo judiciário, de apontar a
inconstitucionalidade da realização de eleição para o provimento do cargo de
diretores de escola, tem promovido uma retração na expansão dessa prática
(Paro, 1996) e fortalecido uma tendência de, sem perder de vista os esforços
pela democratização da escola e de sua gestão, promover critérios de seleção de
diretores que passem pela demonstração de competências para o exercício desse
trabalho (critérios técnicos). Este é o caso de sete Estados brasileiros, onde
são realizados concursos, provas, exames de competência profissional,
associados ou não, à participação em cursos de capacitação. A adoção desses
critérios, que não são incompatíveis com a eleição, estaria de acordo com a
necessidade de a escola, para se tornar efetivamente autônoma, ser dirigida com
essa medida, o movimento de mobilização em torno da escola, que se desenvolve,
ainda que de forma incipiente.
Muitas escolas elegeram seus diretores, receberam
dinheiro para cobrir seus gastos cotidianos e, nem por isso, tornaram-se
autônomas. Tais mecanismos não são, portanto, em si, garantias de prática
autônoma, conforme anteriormente já apontado.
Para tanto, é necessário vontade política das bases
em assumir, com competência, as responsabilidades correspondentes. Muitas
escolas se queixam de não terem espaço ou não se considerarem à vontade para
tomarem decisões e agirem autonomamente para resolver seus problemas. No
entanto, buscam normas e regulamentos da hierarquia superior para realizar, com
maior segurança, o trabalho de gestão. É importante ressaltar que autonomia não
se constrói com normas e regulamentos e sim com princípios e estratégias, que
estabelecem uma concepção e uma direção que delimitam e qualificam as ações,
ficando as operações e procedimentos abertos às circunstâncias específicas do
momento e do contexto. Quando da criatividade, do discernimento necessários
para o atendimento da dinâmica social que o processo educacional envolve, o que
demanda, por sua vez, abertura ao novo, ao inesperado, até mesmo ao risco. Não
há modelos para o exercício da autonomia, em vista do que, em cada escola e em
cada momento de sua história, ela se expressa de uma forma. Trata-se, pois, de
um movimento, de um processo, cabendo aqui lembrar, como imagem, a representação
do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminhante, não há caminho, faz-se caminho
ao caminhar”.
Também no contexto da escola aparece a contradição
natural em todo processo social: de um lado, o desejo de ser autônoma, a
necessidade de assumir seus próprios destinos e responsabilidades sobre seus
atos, o reconhecimento da importância de abrir a escola para a comunidade, e de
outro lado, o receio de assumir responsabilidades e o medo de que o Estado a
deixe sozinha e o temor de perder o controle sobre seu processo.
A prática da autonomia demanda, por parte dos
gestores da escola e de sua comunidade, assim como dos responsáveis e agentes
do sistema de ensino, um amadurecimento caracterizado pela confiança recíproca,
pela abertura, pela transparência, pela ética e pela transcendência de vontades
e interesses setorizados, em nome de um valor maior, que é a educação de
qualidade para os alunos. Tal prática é o antídoto para vencer os medos e
receios. E as escolas e os sistemas que se iniciam nesse processo tomam
iniciativas e constroem sua autonomia, dessa forma, construindo sua
credibilidade e desenvolvendo sua competência pedagógica e social.
O Prêmio Nacional de Referência em Gestão Escolar,
instituído em 1998 pelo Consed, identificou, dentre os seus 98 casos premiados
nesse primeiro ano do Prêmio, esforços realizados no sentido de, pela gestão
compartilhada, pela busca criativa de resolução de problemas e realização dos
propósitos educacionais da escola, pelo desenvolvimento do seu projeto
pedagógico, em parceria com a comunidade, que a construção da autonomia escolar
seja um processo em franco desenvolvimento nas escolas brasileiras e que a
qualidade do ensino esteja em íntima relação com esse processo. A continuidade
do Prêmio, centrado na gestão democrática, promoverá, concomitantemente, a
estimulação a essa prática, assim como o seu registro e a sua divulgação.
O
que não é a autonomia
Como um conceito complexo, a autonomia demanda,
conforme anteriormente indicado, um conjunto de fatores concomitantes para que
seja caracterizada como um movimento dirigido para a tomada de decisão e
assunção de responsabilidades pela escola e sua comunidade. Por conseguinte,
esforços no sentido de realizar um aspecto e não outro deixam de caracterizar
um movimento dirigido à construção da autonomia escolar. Por exemplo, não é
construção da autonomia, quando são considerados isoladamente:
·
a
transferência de responsabilidade do sistema de ensino para a escola, o que
corresponderia à desresponsabilização do sistema quanto aos destinos da escola
e suas condições de atuação;
·
a
pulverização do sistema de ensino, pela crescente diferenciação entre as
escolas, em decorrência de sua ação autônoma, o que inviabilizaria a unidade do
sistema e, portanto, o princípio de equidade, que o sistema deve promover;
·
a
transferência de recursos financeiros e cobrança de sua aplicação, sem
transformação das relações de poder e criação de práticas participativas
bidirecionais;
·
a
eleição de diretores, sem comprometimento coletivo da comunidade escolar com a
implementação de um projeto;
·
o
aligeiramento, diluição e enfraquecimento das responsabilidades e papel do
Estado na educação, em vez de sua redefinição e fortalecimento.
Por outro lado, cabe ressaltar que, sem
responsabilização, instala-se a anarquia em nome da autonomia. A sua construção
pressupõe a obediência e o seguimento a políticas nacionais, estaduais e locais
de desenvolvimento da educação, a fim de que se possa estabelecer unidade e
direção coordenada nos respectivos sistemas.
Dimensões da autonomia
A autonomia tem várias dimensões, podendo-se
evidenciar, de modo especial, a financeira, a política, a administrativa e a
pedagógica. Trata-se de quatro eixos que devem ser desenvolvidos
concomitantemente, de modo interdependente e a se reforçarem reciprocamente.
Essa autonomia se constrói com autoridade, isto é, com o sentido de autoria
competente. Trata-se de uma autoridade intelectual (conceitual e técnica),
política (capacidade de repartir poder), social (capacidade de liderar) e
técnica (capacidade de produzir resultados e monitorá-los). Assim como uma
cadeira de quatro pernas, sem uma delas perderia sua função, do mesmo modo, a
falta de equilíbrio no desenvolvimento desses quatro eixos desarticularia o
desenvolvimento da autonomia da escola, prejudicando a realização de sua
função.
Características da construção da
autonomia
A efetivação da autonomia escolar está associada a
uma série de características, umas ocorrendo como desdobramento de outras, tal
como num mosaico que só faz sentido visto pelo conjunto. Dentre essas
características ressaltam, como significativas em seu processo, as seguintes:
·
Autonomia é
construção,
sendo que esta é um processo que se constrói no dia a dia, mediante ação
coletiva competente e responsável, realizada mediante a superação de naturais
ambiguidades, contradições e conflitos. Para orientá-la, portanto, bastam
diretrizes, princípios e estratégias, sendo normas e regulamentos inócuos e até
mesmo contraproducentes, uma vez que limitam a participação e a criatividade
necessárias para a construção social. Trata-se de uma construção processual,
sem planta pré-traçada.
·
Autonomia é
ampliação das bases do processo decisório, sendo que ao se construir a
autonomia da escola, amplia-se, até mesmo para fora do estabelecimento de
ensino, o poder de decisão sobre o seu trabalho. Esse processo de decisão
torna-se, desse modo, mais amplo e complexo, por levar em consideração múltiplos
aspectos que constituem o tecido social, e por articular diversos grupos de
interesse. Não consiste na divisão limitada de poder e sim na expansão do
mesmo, tal como ocorre nas células.
·
Autonomia é um
processo de mão dupla e de interdependência e não se constrói a autonomia
da escola senão mediante um entendimento recíproco entre dirigentes do sistema
e dirigentes escolares, entre estes e a comunidade escolar (incluindo os pais)
a respeito de que tipo de educação a escola deve promover e de como todos, em
conjunto, vão agir para realizá-la. Não se trata, portanto, de um processo de
repartir responsabilidades, mas de desdobrá-las, ampliando-as e
compartilhando-as.
·
Autonomia e
heteronomia se complementam... isto quer dizer que Autonomia da escola não significa total e absoluta capacidade e
direito de condução de seus próprios destinos, em desconsideração ao contexto
de que a escola faz parte. Tal situação seria irreal na dimensão social. A
interdependência é a regra geral que rege todas as organizações sociais. Por
conseguinte, a heteronomia, isto é, a determinação externa dos seus destinos,
sempre estará legitimamente presente na gestão da escola, tanto pública, quanto
privada, estabelecendo, com a autonomia, um equilíbrio dinâmico nos sistemas de
ensino e suas escolas. Isso porque, a autonomia “é o resultado do equilíbrio de
forças numa determinada escola, entre os diversos detentores de influência
(externa e interna)”. (Barroso, 1996, p. 186).
·
Autonomia
pressupõe um processo de mediação. Dados os conflitos, as contradições e
as tensões decorrentes do próprio processo de aprender a trabalhar de forma
compartilhada, o exercício da prática de autonomia implica a necessidade da
prática de mediação que envolve saber equilibrar interesses diversos, sem
desconsiderá-los. A mediação implica um processo de ganha-ganha, em que todos
os segmentos envolvidos têm suas necessidades mais importantes reconhecidas e
atendidas, assim como contribuem, com sua competência, para a efetivação da
educação.
·
Autonomia é um
processo contraditório. Como a liberdade e a flexibilidade são
componentes imprescindíveis para a construção da autonomia, que se processa
mediante o envolvimento de grupos que expressam diferentes interesses, é
natural que seja um processo acompanhado de manifestações contraditórias.
Estas, fazem parte do processo e saber utilizar a sua energia e reconhecer as
suas tendências é condição para o bom encaminhamento do processo.
·
Autonomia
implica responsabilização. Não ocorre autonomia quando não existe a
capacidade de assumir responsabilidades, isto é, de responder por suas ações,
de prestar contas de seus atos, de realizar seus compromissos e de estar
comprometido com eles, de modo a enfrentar reveses e dificuldades. Consequentemente,
a intensidade da autonomia está diretamente relacionada com a intensidade dessa
responsabilização, que exige uma atitude crítica e reflexiva- sobre os
processos e resultados de cada escola (Góis, 1997).
·
Autonomia é
transparência,
não basta assumir uma responsabilidade. É preciso dar conta dela e prestar
contas para a sociedade do que é feito em seu nome. Em vista disso, a sua
prática envolve monitoramento, avaliação e comunicação de ações e seus
resultados. Em última instância, autonomia e transparência implicam abrir a “caixa-preta”
da escola, para a comunidade e a do sistema de ensino, para a sociedade.
·
Autonomia é
expressão de cidadania. A consciência de que, vivendo em um contexto,
temos em relação a ele, direitos que se justificam pelos deveres assumidos, é
pré-condição para a efetivação da autonomia, daí por que é uma expressão de
cidadania. Quando a escola se propõe a promover a cidadania crítica e
competente em seus alunos, emerge como condição natural para a realização desse
objetivo, a construção de sua autonomia, processo por si só pedagógico, em cuja
expressão se articulam direitos e deveres. Quando, e à medida que se constrói a
autonomia da escola, os alunos aprendem, vivendo nesse ambiente, o espírito da
cidadania.
·
Autonomia é um
processo de articulação entre os âmbitos macro e micro. Autonomia não
é um processo interno à escola, mas sim, um princípio que deve permear todo o
sistema e até mesmo a sociedade. É por isso que não se realiza autonomia por
decreto, nem se delega condições de autonomia. Para ser plena, necessita de que
no âmbito macro de gestão, que tanta influência exerce sobre a escola, não
apenas por suas regulamentações e determinações, mas por seu modo de ser e de
fazer, adote-se a prática da construção de sua própria autonomia, que implica
sua responsabilização pelo todo.
·
Autonomia
implica gestão democrática. Autonomia é um processo coletivo e participativo
de compartilhamento de responsabilidades, emergentes do estabelecimento
conjunto de decisões. Não se trata, na efetivação desse processo, de a escola
ser autônoma para alguém, para algum
grupo, mas de ser autônoma com todos,
em nome da sociedade, desse modo caracterizando-se como gestão democrática,
isto é, uma gestão compartilhada e participativa.
A gestão
democrática implica a participação de todos os segmentos da unidade escolar, a
elaboração e execução do plano de desenvolvimento da escola, de forma
articulada, para realizar uma proposta educacional compatível com as amplas
necessidades sociais.
A democratização da gestão escolar
A autonomia e a descentralização constituem-se um
binômio construído reciprocamente, mediante processos de democratização, isto
é, tendo a prática democrática como centro. Portanto, tudo que foi até agora
descrito em relação àqueles processos, refere-se, por tabela, à gestão
democrática. Cabe, no entanto, evidenciar alguns aspectos.
Conforme Kosik (1976, p. 18) evidenciou, “a
realidade pode ser mudada só porque e só na medida que nós mesmos a produzimos,
e na medida que saibamos que é produzida por nós”. Tal compreensão é o
fundamento da gestão democrática, que pressupõe a idéia de participação, isto
é, do trabalho associado de pessoas, analisando situações, decidindo sobre o
seu encaminhamento e agindo sobre elas, em conjunto. Desse trabalho
compartilhado, orientado por uma vontade coletiva, cria-se um processo de
construção de uma escola competente compromissada com a sociedade.
A participação, em seu sentido pleno,
caracteriza-se por uma força de atuação consistente pela qual os membros da
escola reconhecem e assumem seu poder de exercer influência na dinâmica dessa
unidade social, de sua cultura e dos seus resultados.
Esse poder seria resultante de sua competência e
vontade de compreender, decidir e agir em torno de questões que lhe dizem
respeito (Lück, 1998).
A criação de ambientes participativos é, pois, uma
condição básica da gestão democrática. Deles fazem parte a criação de uma visão
de conjunto da escola e de sua responsabilidade social; o estabelecimento de
associações internas e externas; a valorização e maximização de aptidões e
competências múltiplas e diversificadas dos participantes; o desenvolvimento de
processo de comunicação aberta, ética e transparente.
Esse ambiente participativo dá às pessoas a
oportunidade de controlar o próprio trabalho, ao mesmo tempo que se sentem
parte orgânica de uma realidade e não apenas apêndice da mesma ou um mero
instrumento para a realização dos seus objetivos institucionais.
Orientação para
resultados, monitoramento e avaliação: uma condição para a autonomia e a
democratização da escola
As questões da gestão democrática, da
descentralização e da autonomia da escola estão presentes, sobretudo, na
literatura dirigida à escola pública. É relativamente grande a produção sobre a
gestão democrática e a participação. A ênfase é a de subsidiar a escola para
uma mudança de mentalidade e atitude, sem a qual essa organização não poderia
ser efetiva em seu papel social. Essa literatura tende, no entanto, a ignorar e
algumas vezes até mesmo a rejeitar um outro enfoque da gestão, que parece
dirigir-se à escola particular: o enfoque sobre a melhoria do ensino, a qualidade
e o controle dos resultados pelo monitoramento e avaliação. Um grupo da literatura
enfoca os processos políticos e outro, os resultados, de maneira dissociada e
como aspectos estanques e isolados entre si. Há até mesmo o entendimento de que
a preocupação com estes aspectos estaria em oposição aos anteriores, uma vez
que os mesmos serviriam a uma política neoliberal de governo, que expropriaria
as unidades sociais de sua produção e do seu saber É importante ressaltar que a
articulação dessas duas dimensões é fundamental para que a escola possa
realizar o seu papel social. Isso porque de nada adiantariam seus processos
sociais de participação voltados para si próprios e obtidos a qualquer custo,
mas sim pelos resultados que possam promover em termos educacionais. Propõe-se
que a gestão da escola seja democrática porque se entende que a escola assim o
seja para que possa promover a formação para a cidadania. E essa formação é
plena não apenas mediante uma nova mentalidade e atitudes; ela necessita, para
sua expressão, de conhecimentos e habilidades, que tornam as pessoas capazes de
agir com proficiência. Isso porque de nada valem as boas ideias sem que sejam
traduzidas em ações competentes e consequentes. É a ação que transforma a
realidade e não a contemplação. As ideias não têm valor por si próprias, mas
por sua capacidade de impulsionar a ação para promover resultados desejados. E
estas devem ser monitoradas e avaliadas, a fim de que se possa evidenciar ao
público os seus resultados e se ter parâmetros para o prosseguimento das ações.
O desenvolvimento da escola e a realização de seu
trabalho têm um rumo, propõem a realização de objetivos e, para tanto, há a
necessidade de definição clara e objetiva de seus resultados finais e
intermediários, que devem ser acompanhados e avaliados, visando à necessária
correção, quando for o caso; o cuidado com o ritmo de trabalho, que deve se
manter constante; a identificação de problemas a serem contornados; o uso
adequado de recursos; o estabelecimento da relação custo-benefício e a
identificação de novas perspectivas de ação.
Em consequência, o monitoramento e a autoavaliação
se constituem responsabilidade pública da gestão democrática.
É ela que estabelece a credibilidade da escola e da
educação, que tanto carecem de reconhecimento público para sua revitalização.
Aliás, a própria legitimidade da escola depende
desse processo (Gadotti, 1997).
É com esse enfoque em mente que o Consed promoveu o
Prêmio Nacional de Referência em Gestão Escolar, que objetiva oferecer às
escolas um estímulo e uma orientação para a realização de sua autoavaliação,
como um processo participativo e, portanto, por si só, pedagógico. Há de se
reconhecer que a avaliação é um importante e imprescindível instrumento de
gestão. Processo de avaliação é uma oportunidade de aprendizado e evolução.
Ele é, antes de tudo, um processo pedagógico. Seus
resultados devem servir de referência para a adoção de práticas para a melhoria
de processos e resultados da escola. (Conselho Nacional de Secretários de
Educação, 1999, p. 15).
Essa autoavaliação abrange cinco categorias de
análise, sendo quatro delas voltadas para processos e uma delas, voltada para
resultados, que legitimariam os processos. Estes são os de gestão
participativa; gestão pedagógica; gestão de pessoas; gestão de serviços de
apoio; recursos físicos e financeiros, todos eles interdependentes na
realidade, separados apenas para fins de avaliação.
A autoavaliação de resultados no contexto do Prêmio
envolve a identificação da medida em que são alcançados pela escola os
objetivos e metas definidos no seu projeto pedagógico; o acompanhamento e
gerenciamento de índices de acesso, permanência, aprovação e aproveitamento
escolar de seus alunos; a verificação de avanços nos indicadores de eficiência
e eficácia relativos ao uso e aplicação de seus recursos financeiros; o uso de
referências e indicadores de outras escolas para comparação com os próprios.
Portanto, o que se evidencia como importante é uma
prática democrática orientada pela eficácia e eficiência, continuamente
monitoradas e avaliadas. Como a democratização da gestão escolar é uma proposta
de mudança cultural, conforme indicado por Ghanem (1998, p. 154), é importante
ter em mente que não deve ser lenta e sim consistente: “O tempo que ela durar
depende diretamente do que fizermos para que ela aconteça”.
A formação de gestores escolares
O movimento pelo aumento da competência da escola
exige maior competência de sua gestão, em vista do que, a formação de gestores
escolares passa a ser uma necessidade e um desafio para os sistemas de ensino.
Sabe-se que, em geral, a formação básica dos dirigentes escolares não se
assenta sobre essa área específica de atuação e que, mesmo quando estes
profissionais a têm, ela tende a ser livresca e conceitual, uma vez que esta é,
em geral, a característica dos cursos superiores na área social.
A formação inicial, em nível superior, de gestores
escolares esteve, desde a reforma do curso de Pedagogia, afeta a esse âmbito de
formação, mediante a oferta da habilitação em Administração Escolar. O MEC
propunha, na década de 70, que todos os cargos de diretor de escola viessem a
ser ocupados por profissionais formados neste curso. No entanto, com a abertura
política na década de 80 e a introdução da prática de eleição para esse cargo,
diminuiu acentuadamente a procura desses cursos que, por falta de alunos,
tornaram-se inviáveis. Houve, no entanto, um movimento no sentido de ofertar cursos
de especialização em gestão educacional, muito procurado por profissionais já
no exercício dessas funções, porém, com um número relativamente pequeno de
vagas.
No contexto das instituições de ensino superior,
portanto, o que se observa é uma oferta insuficiente de oportunidades para a
formação inicial de gestores escolares. Recaem, portanto, sobre os sistemas de
ensino a tarefa e a responsabilidade de promover, organizar e até mesmo, como
acontece em muitos casos, realizar cursos de capacitação para a preparação de
diretores escolares. Essa responsabilidade se torna mais marcante quando se
evidencia a necessidade de formação contínua, complementarmente à formação
inicial (Machado, 1999), como condição para acentuar o processo de
profissionalização de gestores, de modo que enfrentem os novos desafios a que
estão sujeitas as escolas e os sistemas de ensino.
É evidente que nenhum sistema de ensino, nenhuma
escola pode ser melhor que a habilidade de seus dirigentes. De pouco adiantam a
melhoria do currículo formal, a introdução de métodos e técnicas inovadores,
por exemplo, caso os mesmos não sejam acompanhados de um esforço de capacitação
dos dirigentes nesses processos. Essa capacitação, aliás, constitui-se um
processo aberto, de formação continuada e permanente.
Não se pode esperar mais que os dirigentes
escolares aprendam em serviço, pelo ensaio e erro, sobre como resolver
conflitos e atuar convenientemente em situações de tensão, como desenvolver
trabalho em equipe, como monitorar resultados, como planejar e implementar o
projeto político pedagógico da escola, como promover a integração
escola-comunidade, como criar novas alternativas de gestão, como realizar negociações,
como mobilizar e manter mobilizados atores na realização das ações
educacionais, como manter um processo de comunicação e diálogo abertos, como
estabelecer unidade na diversidade, como planejar e coordenar reuniões
eficazes, como articular interesses diferentes, etc. Os resultados da
ineficácia dessa ação são tão sérios em termos individuais, organizacionais e
sociais, que não se pode continuar com essa prática. A responsabilidade
educacional exige profissionalismo.
O trabalho de gestão escolar exige, pois, o
exercício de múltiplas competências específicas e dos mais variados matizes. O
artigo de Castro, neste Em Aberto,
que relata uma pesquisa em sistemas municipais de ensino, apresenta, de maneira
viva e contundente, as demandas diversas de competência a ser apresentada pelo
diretor. A sua diversidade é um desafio para os gestores, cabendo também aos
sistemas, organizar experiências capazes de orientá-los nesse processo.
Considerando-se, de um lado, essa multiplicidade de
competências, e de outro, a dinâmica constante das situações, que impõe novos
desdobramentos e novos desafios ao gestor, não se pode deixar de considerar
como fundamental para a formação de gestores, um processo de formação
continuada, em serviço, além de programas específicos e concentrados, como é o
caso da formação em cursos de Pedagogia e em cursos de pós-graduação, assim
como os frequentes cursos de extensão oferecidos e/ou patrocinados pelos
sistemas de ensino.
O artigo citado, ao demonstrar as pressões e
tensões cotidianas por que passa um diretor escolar, torna claro que, sem
competências específicas, de acordo com um modelo de gestão que articule todas
as demandas, o diretor age conforme as pressões, podendo ser dominado por elas,
em vez de agir sobre elas para fazer avançar, com unidade, a organização
escolar.
Como de nada valem as boas ideias, se não forem
colocadas em ação, os programas de formação, para serem eficazes, deverão ser
realizados de modo a articular teoria e prática, constituindo-se uma verdadeira
práxis, tal como indicado por Machado, em artigo sobre formação de gestores
neste Em Aberto. Tem-se verificado
que, em geral, são baixos os retornos de programa de capacitação em termos de
transformação da realidade. É preciso que estes cursos superem uma série de
limitações comumente detectadas em relação a cursos de formação profissional na
área da educação, analisadas conforme a seguir.
Programas pautados em
generalizações
Verifica-se que os programas de capacitação
profissional são, via de regra, organizados por órgãos centrais, cuja
tendência, dada a sua concepção macrossistêmica e seu distanciamento do
dia-a-dia das escolas, é a de considerar a problemática educacional em seu
caráter genérico e amplo, do que resulta um conteúdo abstrato e desligado da
realidade. Sabe-se que generalizações explicam o todo, mas não necessariamente
cada caso específico que compõe esse todo.
A esse respeito, mediante a realização de ampla
pesquisa sobre programas de capacitação de profissionais da educação, Sarason,
citado por Lück (1985) indica que, nos cursos de preparação e reciclagem de
profissionais para a educação, não se levam em consideração as funções
específicas que o profissional deve desempenhar e, consequentemente, o
desenvolvimento de capacidades para assumi-las com segurança.
O drama de “tocar a escola” tal como um diretor
qualificou seu trabalho, exige, conforme indicado pelo mesmo, o entendimento de
seus aspectos específicos e processuais, para o que generalidades de pouco
adiantam. Ilustrações extraordinárias sobre essa questão são apresentadas no
artigo de Castro, neste número do Em
Aberto , dos quais emerge o entendimento de que a especificidade do
trabalho do diretor demanda atenção especial e para a qual não dispomos ainda
de literatura descritiva de estudos de caso, capazes de iluminar tais questões
e de possibilitar o estudo objetivo sobre elas.
Registramos, como caso raro, a publicação do Centro
de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (1995).
Distanciamento entre teoria e
prática
Esse distanciamento está associado a uma separação
entre pensar e fazer, entre teoria e prática, que se expressa nos programas de
capacitação, em vista do que as ideias e concepções são consideradas como belos
discursos, mas impossíveis de se colocar em prática. É comum, em programas de
capacitação, ouvir-se algum participante expressar que “na prática, a teoria é
outra”. Tal entendimento se explica justamente pelo caráter teorizante, conteudista
e livresco dos programas de formação, sem o cuidado de evidenciar, por meio de
situações que sejam simuladas, por dramatizações, ou estudos de caso e outros
exercícios, a aplicação e a expressão na realidade, das concepções teóricas
tratadas.
O distanciamento ocorre, no entanto, quando os
cursos focalizam conhecimentos, centram-se em conteúdos formais, deixando de
lado os componentes necessários para o desempenho profissional que são as
habilidades; o saber fazer; e as atitudes; o predispor-se a fazer. Por
conseguinte, cursos assim organizados são orientados mais para a cognição e
menos para a competência.
Segundo esse enfoque, o que é considerado
importante é que as ideias tratadas tenham consistência interna, isto é, sejam
logicamente encadeadas entre si e não que tenham consistência externa, isto é,
que sejam consistentes e adequadas para explicar e orientar a ação na escola.
É preciso que não se perca a compreensão de que a
teoria é a descrição e explicação da prática, em vista do que os seus atores
não só podem, como devem realizar teorizações sobre sua atuação. Os programas
de capacitação, ao associar teoria e prática, deveriam focalizar o
desenvolvimento de habilidades, pelo diretor, para se tornar sujeito nesse
processo, um construtor de conhecimentos sobre o seu fazer no contexto da
escola e sua comunidade. Dever-se-ia, portanto, considerar a relação teoria e
prática em uma forma recíproca.
Descontextualização dos conteúdos
Os conteúdos organizados e tratados nos cursos de
formação tendem a ser descontextualizados, como se existissem por si próprios,
em vista do que adquirem características artificiais.
Não parecem referir-se a situações reais e
concretas e, por isso, deixam de interessar aos gestores como algo referente à
sua prática. É muito comum observar também, que os cursos de capacitação de
gestores tendem a apresentar conteúdo de caráter normativo, em vista do que
tensões, conflitos, resistências não são levados em consideração.
Diante de tal situação, é muito difícil manter o
interesse, a motivação e o envolvimento dos cursistas no desenvolvimento das
aulas. Quando eles não se veem em relação ao objeto do curso, não veem a
realidade concreta e objetiva de sua atuação e não conseguem construir imagens
em relação às questões tratadas, desligam-se de acompanhar as aulas e,
portanto, de aprender.
Enfoque no indivíduo
Os cursos tendem a partir do pressuposto de que as
pessoas atuam individualmente e que irão transferir para a sua prática os
conteúdos tratados. Tal pressuposto tem-se demonstrado como falso, uma vez que
não leva em consideração o fato de que, para promover alguma mudança no
contexto escolar, é necessário haver muita liderança e habilidade de
mobilização de equipe, o que, em geral, não é desenvolvido nos cursos
realizados. Estes tendem a considerar alunos como indivíduos e quando procuram
desenvolver neles habilidades, são habilidades individuais. Conforme Katz e
Kahn (1975) apontam, falham por confundir mudanças individuais com modificações
organizacionais, que são as preconizadas pela gestão escolar. É importante
ressaltar que gestão é processo compartilhado, de equipe, em vista do que a
equipe deveria ser capacitada em conjunto.
É identificado que quem, após a frequência a um
curso de formação, procura introduzir mudanças aprendidas, em sua escola, tende
a desistir rapidamente de dar continuidade a seu esforço, mesmo que dotado de
fortes características pessoais de liderança, de um grande empenho e convicção,
em relação às novas ideias, e até mesmo de uma preparação adequada para lidar
com as reações naturais de resistência apresentada pelos colegas (Lück, 1985).
A formação em equipe seria a solução a este problema.
Métodos de transmissão de
conhecimentos
Os cursos de capacitação, em geral, empregam a
metodologia conteudista, voltada para a apropriação e reificação do discurso,
em vista do que adotam como foco a transmissão de informações e conhecimentos e
não a resolução de problemas.
Tal metodologia é contrária à dinâmica social de
qualquer escola. Apenas a metodologia voltada para a construção do conhecimento
seria capaz de promover, junto aos gestores, a orientação necessária de
sensibilidade aos desdobramentos às situações, a orientação para sua
compreensão, como condição para adequadamente agir em relação a elas.
Por uma proposta aberta de
capacitação do gestor e sua equipe
É para corrigir tais situações que o programa de
capacitação de gestores, que está sendo proposto pelo Consed, descrito neste Em Aberto por Machado, propõe a
realização de capacitação da equipe de gestão da escola, incluindo, quando
existir, o vice-diretor, o secretário da escola, o supervisor educacional, o
orientador educacional, o coordenador de área e professores líderes.
Igualmente, essa proposta é centrada na metodologia da problematização, que
adota como foco as situações naturais e concretas de trabalho de gestão da
escola. O artigo de Castro, neste Em
Aberto, que descreve uma pesquisa sobre o trabalho de diretores escolares
aponta situações críticas que, para serem enfrentadas, demandam muita
competência específica, portanto, muito mais que boa vontade de professores ao
assumirem o papel de diretor de escola.
O desenvolvimento de competências deve, pois, ser o
foco de organização dos programas de formação de gestores. Sobretudo, além das
questões teórico-metodológicas dessa formação, que deve estar de acordo com a
concepção de gestão democrática preconizada, é necessário ressaltar a
necessidade de os sistemas de ensino adotarem uma política de formação
continuada de gestores, de modo a estabelecer unidade e direcionamento aos seus
programas e cursos. Um fator limitador desse investimento seria a periodicidade
frequente de troca de dirigentes, tal como atualmente ocorre. Portanto, é
necessário articular política de formação com política de gestão.
Referências
bibliográficas:
BARROSO,
João. Autonomia e gestão das escolas.
Lisboa: Ministério da Educação, 1997. O estudo da autonomia da escola: da
autonomia decretada à autonomia construída. In: O ESTUDO da escola. Porto:
Porto Editora, 1996.
BRASIL.
Ministério da Educação e do Desporto. Manual
de orientação para constituição de unidades executoras. Brasília: MEC/ SEF,
1997. p. 11.
BULLOCK,
Alison, THOMAS, Hywel. Schools at the
centre: a study of decentralisation. London: Routledge, 1997.
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