sábado, 21 de novembro de 2015
Noite na taverna
Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, é um livro de contos trágicos — lembram perfeitamente os contos de horror de Edgard Allan Poe,
o genial escritor do Romantismo norte-americano — em que o real e o fantástico fundem-se para
criar uma atmosfera escurecida pela fumaça dos charutos e pela pátina do meio sono entorpecido dos bêbados, devassos e
impenitentes, que, reunidos em uma taverna lúgubre, desfiam suas experiências existenciais em
narrativas escabrosas. A palavra vai de um personagem a outro e a cada intervenção de um deles, uma nova
história surge, sempre
ligada ao sofrimento, ao incesto, ao adultério, ao canibalismo, à prostituição.
JOHANN
Bem ao estilo da segunda geração romântica, o Autor cria um texto fantástico em que coincidências trágicas unem-se para, num
somatório incrível de desgraças e de desencontros
existenciais, destruir quatro vidas jovens que tinham tudo para viver em
harmonia.
O enredo, mesmo com
toda a dramática tragicidade, é de grande simplicidade:
"Johann joga bilhar com um jovem, desentendem-se por
motivos fúteis, partem para um
duelo e o oponente – Artur – morre estupidamente; Johann apanha no corpo do adversário um anel e um
bilhete com um endereço, comparece a uma entrevista e passa a noite com uma virgem
desconhecida; ao sair, é atacado por um homem, consegue eliminá-lo e depois descobre
que acabara de matar o próprio irmão; volta ao quarto e constata que a virgem com quem tinha
estado era sua irmã, noiva do moço com quem jogara bilhar e matara em duelo."
Como se percebe, a visão trágica da existência e o senso do mistério são presenças marcantes no texto: Johann em uma mesma noite mata o noivo
da irmã e seu próprio irmão. Ao lado desses dois
crimes hediondos. Comete incesto — crime moralmente maior — com a irmã, em sequência tenebrosa de acontecimentos sobre os quais não tem o mínimo controle. O acúmulo de coincidências fatais faz crer
uma alma penada subjugada sob o fardo de seu carma. Não há, por conseguinte,
qualquer possibilidade de redenção e Johann deverá consumir o resto de seus dias sob o peso esmagador de seus
crimes e pecados.
Ressalte-se, ainda, o vocabulário e entonação reveladores da intensa emoção presente na fala da
cada personagem. O tratamento cerimonioso, mesmo em situação crítica e explosiva, entre
contendores prestes a se atracar confere, também, um clima de irrealismo e idealização excessivos que remete
claramente para o gênero dramático. Tal texto, como já afirmou o grande escritor e crítico Adonias Filho, só poderia ter sido
escrito no Romantismo, tal o grau de representatividade daquela estética abarcado por seus
parcos limites.
SOLFIERI
Seguindo a linha da proposta da obra, este conto também fala da tragicidade
da vida, da libertinagem e da depravação. O ambiente do narrado enquadra-se na perspectiva da preferência pelos lugares
ermos, escuros, amedrontadores e os personagens que nele vagam são seres indefinidos dos
quais apenas um impreciso contorno é mostrado. São mulheres e homens misteriosos e difusos num cenário também misterioso e difuso.
Solfieri, o narrador, é um dos boêmios reunidos na taverna e conta aos amigos a história fantástica por ele vivida na
Roma misteriosa e perigosa das vielas e becos tortuosos. Numa noite, surge da
janela escura de um palácio o vulto impreciso de uma mulher. Solfieri a segue até um cemitério e ali amanhece sozinho
e desvairado.
Um ano depois reencontra a mulher dentro de um caixão, em uma igreja, despe
o cadáver e o profana. Leva-o
para casa. A mulher não está morta, mas apenas sofrera um ataque de catalepsia. Em casa ela
se torna sua amante e morre louca. Ele a enterra em seu quarto, manda fazer uma
estátua que a represente e
coloca-a em seu leito de amante desesperado.
Hoje guarda como relíquia uma grinalda de flores murchas que arrancou da cabeça do cadáver da amada sem nome.
BERTRAM
Narrativa desordenada em que se mesclam o erotismo
desenfreado, o assassinato, o canibalismo. Não há uma sequência lógica e coerente dos fatos narrados, passando a ideia de um pesadelo
nevoento em que os acontecimentos sucedem-se vertiginosamente sem que haja
explicação lógica para eles. Bertram
é o conto mais longo da
obra Noite na Taverna e dá a impressão de que carecia de uma limpeza, ou seja, de uma depuração para que se tornasse
mais compacto e menos cansativo.
Bertram, o protagonista, é um velho devasso com uma imensa carga de pecados e vícios para expiar.
Relacionou-se, no passado, com três mulheres e nos três relacionamentos o amor físico é intenso, efêmero e de resultados devastadores.
A linguagem é tipicamente romântica, seguindo o tom declamatório e teatral de um longo solilóquio do protagonista-narrador.
CLAUDIUS HERMANN
Uma história absolutamente inverossímil em que Claudius Hermann apaixona-se por
Eleonora, a duquesa, sequestra-a e confessa seu amor. A sequência narrativa é desordenada e caótica. Não há um nexo ou uma razão a justificar as ações do narrador-protagonista.
Mais uma narrativa erótica e misteriosa como os vapores nevoentos dos castelos
assombrados das narrativas de terror.
Ao final o duque Maffio, desonrado e enlouquecido com o rapto
de sua esposa, mata-a e morre sobre o cadáver.
ÚLTIMO BEIJO DE AMOR
A obra Noite na Taverna, como sabemos, é constituída com a representação de um grupo de
homens, bêbados e infelizes, a
desfilar narrativas escabrosas de fatos de suas vidas. O presente conto é o coroamento da obra.
Seguindo uma técnica narrativa peculiar ao livro de contos, esta última história é o fechamento da obra. É o clímax da orgia e da
bebedeira desenfreada.
Os personagens estão adormecidos e espalhados pelo chão da taverna. Beberam além da conta e exaustos
entregam-se à letargia do álcool. Eis que chega um vulto fantasmagórico de mulher. É a própria encarnação da morte. A descrição tétrica ajusta-se a figura tradicional da
ceifadora iniludível. Procura entre os bêbados até encontrar Johann e o executa. Volta-se para Arnold (o Artur
que participara do duelo com Johann e, surpreendentemente, não morrera) e revela quem
era: Giorgia, a jovem virgem desgraçada pelo irmão na primeira narrativa da obra que volta para matar o profanador
e entregar sua miserável vida ao descanso final.
CONCLUSÃO
Um livro excepcional que tem encantado gerações e gerações de leitores ávidos por uma
literatura emocional e profundamente representativa de nossos anseios de
emancipação cultural. O Autor não só produziu um livro de
contos, como também, de certa forma, deu cunho de definitiva autenticidade à novelística brasileira. A
grande aceitação popular, particularmente do público jovem, como se pode atestar facilmente
no convívio diário com alunos do
Ensino Médio, comprova o valor
desse jovem genial que, mesmo morto aos 21 anos incompletos, deixou uma obra de
valor inquestionável.
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