"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 6 de junho de 2009

A estrela da Ursa Maior

Para falar tudo: a vida não começa quando se nasce. Começa quando se ama. Romantismo à parte, só adquirimos a consciência de nós mesmos quando, sempre de repente, sem aviso prévio, sentimos que alguma coisa mudou no mundo, na noite e no dia, na luz e no vento, mudou tudo dentro da gente: estamos enamorados.
É ainda um anúncio, “preview” de alguma coisa que pode ser o tesão, o caso, o rolo, o equívoco. São variantes para o grande programa que é o amor, síntese de tudo o que foi fragmentariamente anunciado. Amante é um ofício. Namorado é uma vocação.
Há amantes que não se namoram. E enamorados que não são amantes. O amor é escravo do tempo, precisa do tempo, nasce e pode morrer com o tempo. O namoro — introdução que não introduz — está além e acima do tempo. O amor é faminto: quanto mais curto, mais longe cria o olvido (o verso é de Pablo Neruda). O namoro é a sedução, a aproximação do abismo quando ainda é possível a volta, mas não o retorno. Depois do namoro, não importa o rito ou o ritmo que o marcou, já não somos os mesmos.
Melhor do que tudo: o amor exige desoladora exclusividade, “amor, ch’a nullo amato amar perdona” (o verso é de Dante). Nunca é infinito nem imortal porque, no fundo, é o amor de nós mesmos em outro corpo. O namoro, sim, é largo, sem margens e sem a urgência das horas. Amamos a uma só pessoa. Podemos ser namorados de muitas.
No poema famoso, o já citado Neruda, poeta maior dos namorados (não dos amantes), descobre que pode “escrever os versos mais tristes esta noite”. É a tristeza peculiar do namoro, não do amor. Pois o amor abre o mesmo espaço para outro amor — e tudo se repete. O namoro é vago como a estrela da Ursa Maior, cada qual incompleto e, por isso mesmo, único, inacabável.
Há suicidas do amor não correspondido, do amor traído. O namoro é convite à vida, véspera de nós mesmos. E quando acaba — ao contrário do amor que deixa o gosto de liberdade-não-desejada na boca — sabemos ser justos para nós mesmos e nos eternizamos com aquele verso sempre citado Neruda: “Já não a quero, é certo, quanto porém a quis!”
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Carlos Heitor Cony

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