15/01/2009
Pensei por diversas vezes em como começar este artigo. Rasguei inúmeras folhas com idéias soltas, mas irremediavelmente minha lembrança resgatava uma frase no livro intitulado Língua Portuguesa de Fernando Pessoa a respeito das palavras. Passo, então, a utilizá-la como meu ponto de partida.
“Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma”.
Uma frase de verdade cristalina. Ver bem uma palavra é enxergar todo um povo e como consequência a cultura que lhe é inerente. A escrita é um fenômeno puramente cultural que se fixa culturalmente falando por meio de normas e regras e é nesse ponto que nos deparamos com a tão discutida reforma.
Estamos diante de outra reforma ortográfica que impostamente nos traz mudanças não só na maneira de escrever (como julga a maioria das pessoas), mas também de refletir e lidar com as palavras. Parece exagero à primeira vista colocar que é um novo modo de reflexão sobre a língua. Entretanto como a palavra escrita permanece mais do que a falada, aquela tem um caráter de durabilidade muito grande e com certeza, por meio dessa reformulação, trará novos desafios em lidar com esse universo de letras, sílabas, palavras, ideias, modos de pensar colocados no papel ou na tela do PC. O objetivo que moveu todo esse rebuliço ortográfico partiu dos governos dos países lusófonos com a intenção de UNIFICAR a língua facilitando o livre comércio.
Particularmente, considero o termo UNIFICAR muito amplo e perigoso, pois uma língua jamais poderá ser unificada como se fosse algo plausível de molde em caixa. Ela, como disse Pessoa utilizando o termo palavra, carrega a alma dos falantes, não é de caráter só material e desvinculado do ser que a fala. Há uma relação de interdependência da língua com o falante e vice-versa. O que talvez se queira é uma APROXIMAÇÃO. Unificação me parece utopia barata para aquecer comércios ávidos por driblar a crise.
Não sou radical quanto à reforma, há melhorias como, por exemplo, a inclusão das letras k, w e y (que por sinal nunca deixaram de ser utilizadas aqui no Brasil), porém, como professora de Língua Portuguesa, discordo de muitos aspectos da atual reforma. Creio que muitos deles dificultarão a leitura como a queda de alguns acentos diferenciais. Outros relacionados aos hífens simplesmente dificultarão a escrita e não me parecem tão problemáticos de serem entendidos num acordo comercial entre os países lusófonos a ponto de necessitarem de tradução de português para português.
Toda essa confusão gerada é prejudicial ao público que desconhece aspectos profundos da língua e que acaba buscando no simplismo da modificação de regras um meio para também querer a redução ou anulação das demais como se elas fossem desnecessárias. Dois anos serão suficientes para moldar o que já está enraizado na mente da maioria? E quanto aos outros tantos cidadãos que já passaram por reformas anteriores, esse tempo será suficiente? Alguém com poder de decisão questionou isso antes da estipulação de prazos?
Pensemos: por mais que se tente aproximar hoje a língua dos países lusófonos, as diferenças voltarão a existir e consequentemente preferências de falares também. Vemos que o problema está basicamente numa reformulação puramente ideológica movida por motivos utópicos de cunho mercadológico dificultando reflexões conscientes sobre a língua e o aspecto social da ortografia.
Retomando o que o professor Evanildo Bechara disse: o fato é que continuarão existindo porções de linguiça em cardápios de botecos sendo vendidas sem molho e porções em lanchonetes da mesma lingüiça com molho. O ideal é sermos poliglotas na própria língua.
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