sábado, 19 de agosto de 2017
Homem morre de fome em crônica de Fernando Sabino
Notícia de
jornal
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de
fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu
de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na
calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos e
comentários, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao
local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de
fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de
plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da
Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem
morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido
ao Instituto Anatômico sem ser identificado.
Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas
de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um
anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa –
não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de
passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre
de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem
olhar nenhum.
Passam, e o homem continua morrendo de fome,
sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem
da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho
com isso?
Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De 30 anos presumíveis.
Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal.
Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo
providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão
remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros
homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de
inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de
Janeiro, Estado da Guanabara, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
(As melhores crônicas de Fernando Sabino. 2. ed. Rio de Janeiro:
Best Bolso, 2008. p. 46-7.)
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