segunda-feira, 21 de abril de 2014
Curiosidade é uma coceira nas ideias
Eu estava com a cabeça quente. Queria descansar,
parar de pensar. Para parar de pensar, nada melhor que trabalhar com as mãos.
Peguei minha caixa de ferramentas, a serra circular e a furadeira e fui para o
terceiro andar, onde guardo os meus livros.
Iria fazer umas estantes. As tábuas já estavam
lá. Nem bem comecei a trabalhar de carpinteiro e fui interrompido com a chegada
da faxineira. Com ela, sua filhinha de sete anos, Dionéia. Carinha redonda,
sorriso mostrando os dentes brancos, trancinhas estilo afro. O que era de se
esperar para uma menina da idade dela era que ficasse com a mãe. Não ficou.
Preferiu ficar comigo, vendo o que eu fazia. Por que ela fez isso? Curiosidade.
Curiosidade é uma coceira que dá nas ideias... Aquelas ferramentas e o que eu
estava fazendo a fascinavam. Queria aprender.
"O que é isso que você tem na mão?",
ela perguntou. "É uma trena", respondi. "Para que serve a
trena?", ela continuou. "A trena serve para medir. Preciso de uma
tábua de 1,20 m. Assim, vou medir 1,20 m. Veja!"
Puxei a lâmina da trena e lhe mostrei os números.
Ela olhou atentamente. "Você já sabe os números?", perguntei.
"Sei", ela respondeu. Continuei: "Veja esses números sobre os
risquinhos. O espaço entre esses risquinhos mais compridos é um centímetro. Um
metro tem cem centímetros, cem desses pedacinhos. Veja que, de dez em dez
centímetros, o número aparece escrito em vermelho. É que, para facilitar, os centímetros
são amarrados em pacotinhos de dez. Um metro é feito com dez pacotinhos de dez
centímetros. E 1,20 m são dez desses pacotinhos, para fazer um metro, mais
dois, para completar os 20 centímetros que faltam". Marquei 1,20 m na
tábua com um lápis e me preparei para cortá-la.
Assim se iniciou uma das mais alegres
experiências de aprendizagem que tive na vida. A Dionéia queria saber de tudo.
Não precisei fazer uso de nenhum artifício para que ela estivesse motivada. O
que a movia era o fascínio daquilo que eu estava fazendo e das ferramentas que
eu estava usando. Seus olhos e pensamentos estavam coçando de curiosidade. Ela
queria aprender para se curar da coceira... Os gregos diziam que a cabeça
começa a pensar quando os olhos ficam estupidificados diante de um objeto.
Pensamos para decifrar o enigma da visão. Pensamos para compreender o que
vemos. E as perguntas se sucediam. Para que serve o esquadro? Como é que as
serras serram? Por que é que a serra gira quando se aperta o botão? O que é a
eletricidade?
Lembrei-me de Joseph Knecht, o mestre supremo da
ordem monástica Castália, do livro "O Jogo das Contas de Vidro", de
Hermann Hesse. Velho, ao final de sua carreira, no topo da hierarquia dos
saberes, ele se viu acometido por um enfado sem remédio com tudo aquilo e
passou a sentir uma grande nostalgia. Ele queria descer da sua posição para
fazer uma coisa muito simples: educar uma criança, uma única criança, que ainda
não tivesse sido deformada pela escola. Pois ali estava eu, vivendo o sonho de
Joseph Knecht: a Dionéia, que ainda não fora deformada pela escola. Seu rosto
estava iluminado pela curiosidade e pelo prazer de entrar num mundo que não
conhecia.
Lembrei-me de Aristóteles em
"Metafísica": "Todos os homens têm, por natureza, um desejo de
conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até de sua
utilidade, elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as
visuais...".
Acho que ele errou. Isso não é verdade para os
adultos. Os adultos já foram deformados. Acho que ele estaria mais próximo da
verdade se tivesse dito: "Todos os homens, enquanto são crianças, têm, por
natureza, desejo de conhecer...".
Para as crianças, o mundo é um vasto parque de
diversões. As coisas são fascinantes, provocações ao olhar. Cada coisa é um
convite.
Aí a Dionéia sumiu. Pensei que ela tivesse
voltado para a mãe. Engano. Alguns minutos depois ela voltou. Estivera
examinando uma coleção de livros. "Sabe aqueles livros, todos de capa
parecida? Os três primeiros livros estão de cabeça para baixo." Retruquei:
"Pois ponha os livros de cabeça para cima!".
Ela saiu e logo depois voltou. "Já pus os
livros de cabeça para cima." E acrescentou: "Sabe de uma coisa? O
livro com o número 38 está fora do lugar". Aí aconteceu comigo: fui eu
quem ficou estupidificado... Ela, que não sabia escrever, já sabia os números.
E sabia mais, que os números indicavam uma ordem.
Fiquei a imaginar o que acontecerá com a Dionéia quando, na escola, os seus
olhinhos curiosos serão subtraídos do fascínio das coisas do mundo que a cerca
e vão ser obrigados a seguir aquilo a que os programas obrigam. Será possível
aprender sem que os olhos estejam fascinados pelo objeto misterioso que os
desafia?
Pois sabe de uma coisa? Acho que vou fazer com a
Dionéia aquilo que Joseph Knecht tinha vontade de fazer...
Rubem Alves, 80, é educador, psicanalista, escreve histórias para
crianças e crônicas para adultos. Alguns de seus principais livros são: "O
Médico", "Por uma Educação Romântica" (ambos da editora Papirus)
e "Livro sem Fim" (Loyola).
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