O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 117.
quinta-feira, 27 de março de 2014
O homem que viu o lagarto comer seu filho
Era uma noite de terça-feira, e
eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele
levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranquilo.
Não havia ruídos, poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu
entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de
três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde.
Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele
largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força
do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte
demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima. Se
acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era.
Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a
impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis
estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as
garras horrendas do bicho repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado
pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela
esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria
um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de
livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão
preciosos. Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu
um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse
comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas
costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas em casa e o cunhado sempre
dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a
prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda
apostaria duas cervejas como tal animal não existia. Pode, um lagartão entrar
em casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer crianças
não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era, O
bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante
d ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do
emprego à noite. Urna faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o
deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha de impedir o lagarto
de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar um passo,
sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era
uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas e
apavorantes? Não sabia. Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama
vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em sequestro ou coisas assim que
lia nos jornais. Sequestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois
salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um
funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha
varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora? Continuou pensando nas
coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela
gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do
filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo
que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter
sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu
nada dizer à mulher. Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo
um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com
a do lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar as sustar o animal, ou
tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho devia ser
monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário.
Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e
havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo
bem, felicidades. Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria
entregas. Nem amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna
dentro da boca.
O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 117.
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