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O acontecimento deflagrador da tragédia: um atropelado, antes de morrer, pede ao desconhecido Arandir, que passeava casualmente e correu para socorre-lo, um beijo na boca. Registra-se que não é banal o episódio desencadeador da trama. E, a partir dos conflitos que se multiplicam, Nelson pôde exprimir a verdade para ele privilegiada – a profunda solidão do homem e a importância da fidelidade ao pensamento individual, não contaminado pelas crenças massificadas. Em contraposição à ‘unanimidade burra’, ele proclamou o valor do gesto solitário. Protesto de quem respeitou as prerrogativas individuais, condenando as abdicações da antipessoa. (...)
Deve-se ter em mente, em primeiro lugar, que a tragédia vivida por Arandir é o resultado da maquinação de um repórter policial, Amado Ribeiro, que se valeu da cumplicidade do delegado Cunha. Significativamente, o jornalista e o policial estavam brigados, por causa de uma denúncia: Cunha deu um pontapé no ventre de uma mulher grávida, provocando-lhe o aborto. A princípio, Cunha não deseja receber Amado Ribeiro. Depois, vendo a possibilidade de promover-se junto ao superior hierárquico, decide participar da farsa. Amado Ribeiro urge a intriga no propósito de aumentar a tiragem do jornal – autovalorização pelo poder. Imprensa e política dão-se as mãos para produzir o embuste sinistro.
No empenho de assegurar verossimilhança à história, sedimentado as suas convicções sobre a criatura humana, Nelson elabora sadicamente os pormenores. O suposto homossexualismo de Arandir não se beneficia de dúvida. Aproveitando-se da fraqueza de certos caracteres, provas são forjadas. E depoimentos taxativos assumem a aparência de verdade, quando o espectador sabe que nasceram da mentira. Inoculado, o germe da desconfiança trabalha as personagens. O mecanismo que destrói Arandir é o mesmo que inventa os bodes expiatórios. Todos participam, à sua maneira, do assassínio do protagonista.
De início, Arandir depõe na política na simples qualidade de testemunha do atropelamento. Terminadas as declarações ao comissário Barros, chegam Amando Ribeiro e Cunha, e começa o interrogatório aniquilador. De desconhecido, o morto se transforma em alguém que Arandir cultivava. A manchete jornalística – O beijo no asfalto – lança o escândalo e lhe dá a proporção da cidade. Primeiro reflexo: os colegas cercam Arandir, na firma em que trabalham, e Werneck faz a pergunta maligna: viúvo ou viúva do atropelado? Não se acredita que ele desconhece o morto. D. Judith, a datilógrafa, declara que, pela fotografia, ‘parece um moço que esteve aqui, na semana passada’.
No velório, a impostura caminha para atingir a plena dimensão. Amado Ribeiro abstrai a delicadeza do momento, retarda o enterro, para dobrar a viúva. Ameaça-a, informando saber de fonte limpa que ela tem um amante. Embora negue já ter visto Arandir, a viúva, intimidada, fecha-se em atitude passiva, que estimula o delírio do repórter. Conclui-se que não haverá objeção concreta ao induzimento feito por Amado: ‘Seu marido tinha um amigo, chamado Arandir, amigo esse que a senhora está reconhecendo pela fotografia.’
O testemunho precisa produzir efeitos. Num arbítrio que se tornaria rotina apocalíptica na vida política brasileira, Cunha e Amado seqüestram Selminha, para que ponha longe da delegacia, na casa de um amigo do jornalista, na Boca do Mato. Basta ela proclamar que Arandir não conhecia o morto para trazerem à sua presença a viúva. Na malignidade irresponsável de quem deseja salvar a própria pele, não se incomodando com as conseqüências, a viúva mente que conhecia Arandir de sua casa e que ‘os dois tomaram banho juntos’.
Não resolve, no objetivo sensacionalista da imprensa, fixar-se a versão do homossexualismo. Ela se esgotaria sem demora. Para alimentar a curiosidade mórbida dos leitores, Amado Ribeiro cria outra manchete aterradora; ‘O beijo no asfalto foi crime’. Conspurca-se o gesto puro de Arandir, atribuindo-lhe sórdida motivação. O repórter diz inicialmente que prova, mas corrige: ‘Quer dizer, sei lá se provo, nem me interessa.’ Amado Ribeiro ainda incita Aprígio, sogro de Arandir, a dar um tiro na cara do genro. Nenhum juiz o condenaria.
Embora Aprígio pergunte se Amado quer vender mais jornal, prepara-se o sacrifício da vítima. No subconsciente, o sogro registra que, que sejam quais forem suas razões para matar Arandir, está absolvido de antemão pelo consenso. Pode invocar defesa da honra familiar, rompida por um homossexual, que ousou o ludíbrio da filha. Nova manifestação da terrível ironia de Nelson: a última cena desvenda o mistério, para que se saiba que Aprígio é o homossexual. O ódio ao genro é amor. Num mundo dominado pelos preconceitos, ao qual deve acrescentar o agravante de que ama não um homem qualquer, mas o genro, Aprígio vê no crime a única possibilidade de libertação, ou de apaziguamento.
O beijo no asfalto faz um libelo violento contra a falsidade, o juízo fundado na aparência, as convicções unânimes. Não foi necessário muito esforço para que se transformasse Arandir, publicamente, em homossexual – mobilizaram-se testemunhas e produziram-se provas, ainda que enganosas. A fragilidade torna o indivíduo agente ativo ou vitima passiva desse processo de destruição do ser humano, isolando-o numa verdade destituída de valor, ao menos prático. Arma-se verdadeira conspiração para aniquilar os sentimentos puros.
Agentes ativos da perda de Arandir são Amado Ribeiro, Cunha, Werneck, dona Judith, a viúva do atropelado, e Aprígio, coadjuvados por Aruda e por Dona Matilde. O comissário Barros coloca-se como elemento neutro, e Selminha e Dália, por duvidarem do marido e cunhado, marcam-lhe a grande desilusão com o ser humano. Decreta-se real solidão de Arandir quando a mulher lhe retira o apoio e a cunhada, embora o ame, pergunta se ele amava o morto.
Por motivos diferentes, todos contribuem para a morte de Arandir. Pode haver responsabilidades maiores ou menores, conjugadas para o objetivo final. A iniciativa do engendramento da trama coube a Amada Ribeiro, que retira de um episódio simbólico, alheio ao noticiário policial, uma história de homossexualismo e depois de crime. Aprígio, assassinando Arandir, é o autor do golpe de misericórdia. Sobretudo a viúva do atropelado fornece, ao testemunhar falsamente a ligação dos dois homens, a prova de que se necessita para atribuir verossimilhança ao engodo.
Em Amado Ribeiro, junto da projeção em Arandir no próprio homossexualismo reprimido (lembra-se o gosto pelas magras e histéricas), há o exercício do poder, compensando o vazio interior. Nelson imputa ao jornalista a aparência de um cafajeste – maligno, cruel, inescrupuloso, abjeto e, finalmente, desesperado. Seu escopo é de vender jornal, não importa à custa de que artifício. Eletriza-o a sensação de abalar o Rio de Janeiro. Na intimidade de seu quarto desordenado, bebe cerveja pelo gargalo da garrafa e se desculpa da ‘bagunça’ pela gravidez da arrumadeira, que fez aborto em si mesma, com talo de mamona, e vai morrer. Esclarece Amado: ‘Eu não tenho nada com o peixe. O filho não é meu!’ depois do diálogo torpe, em que se confessa a Aprígio bêbado e pau-de-arara, o repórter diz que têm de respeita-lo. Por que parou a cidade e, segundo a rubrica, ‘parte o grito num soluço’. Em síntese , um pobre coitado que deságua no mal a frustração não-conscientizada.
O móvel do delegado Cunha não tem certeza. Denunciado pelo jornalista, vence-os escrúpulos e torna-se seu aliado, no propósito de mostrar serviço para o chefe. Werneck é o colega de escritório que lidera o coro dos detratores, baseados em simples indícios. Dona Judith, tipo da datilografia convencional, se basta na leviandade de tomar a aparência por certeza. Menos simpática ainda é a posição da viúva: receosa de que viesse a público a existência do amante, testemunha contra Arandir, a ponto de forjar que o viu tomando banho com o marido. Aprígio atira em Arandir, objeto de seu amor, pela impossibilidade de proclamar o sentimento para o mundo. O detetive Arruda representa o policial obtuso, que nunca acerta. E dona Matilde simboliza o coro das vizinhas bisbilhoteiras, que se alimentam da tragédia alheia.
Nelson descreve Selminha com ‘a imagem fina, frágil de uma moça, de uma intensa feminilidade’. Conhece Arandir desde garotinho e tem certeza de que o ama e é feliz. Confia mais no marido do que em si mesma. Trabalhada pelos outros, porém, ‘passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse’, quando Arandir vai beija-la na boca. Gesto inconsciente, denunciador de que a dúvida já a contagiara. Na casa na Boca do Mato, raptada por Amado e Cunha, Selminha revela que está grávida. E explode a sua verdade; ‘Eu conheço muitos que é uma vez por semana, duas, e até de quinze em quinze dias. Mas meu marido é todo dia! Todo dia! Todo dia! Meu marido é homem! Homem!’ e desafia o delegado, ao augurar que o noivo da filha dele tenha a virilidade de Arandir.
A experiência conjugal não se mostra suficiente para Selminha. O jornalista havia falado em ‘gilete’ (quem tem relações com os dois sexo. abalou-a a confissão da viúva. Selminha pondera para a irmã: “Arandir tem certas coisas. Certas delicadezas! (...) Mas você sabe que a primeira mulher que Arandir conheceu fui eu. Acho isso tão! Casou-se tão virgem como eu, Dália!” E fica patente que ela não irá ao encontro do marido, no hotel em que ele se refugia. Paralisa-a a idéia de que o beijo de Arandir contém ainda a saliva do atropelado.
A peça apresenta uma variante da vinculação de duas irmãs ao mesmo homem. Desde o começo, percebe-se o amor de Dália pelo cunhado. Evidentemente irritada, ela confirma que o casal é felicíssimo. Havia dito que, se a irmã morresse, se casaria com Arandir. Deixaria a casa de Selminha, mas, ao ler o jornal, resolveu ficar, certamente para servir de apoio ao cunhado. Invectiva o pai, afirmando que descobriu o segredo dele: não gosta do genro, porque nutre por Selminha amor ‘de homem por mulher’. No momento em que a irmã abandona Aradir, Dália sente-se livre para procura-lo no hotel. Ela se oferece, por amor, e diz que morreria ao lado dele. A rubrica anota que Dália, “macia, insidiosa, com uma leve, muito leve malignidade”, pergunta se o cunhado amava o morto. Ela não julga e não condena. Aceita tudo. Será a mesma. A incapacidade de compreender profundamente Arandir faz com que ele a expulse: ‘Você é como os outros. Igual aos outros. Não acredita em mim. Pensa que eu. Saia daqui.’ A incomunicabilidade afasta sem remédio todas as criaturas. Está aí a raiz da tragédia humana.
Arandir percorre o itinerário mais complexo do texto. A tendência é a de incluí-lo no rol das vítimas inocentes, que povoam a evolução da dramaturgia. De certo modo, essa focalização tem fundamento. Importa, contudo, a tomada de consciência, o processo interior da passagem de boneco acionado pelos outros a sujeito de destino. Forja-se, no percurso, a grandeza do herói.
Atendendo ao moribundo, que lhe pede o beijo, Arandir cede ao impulso espontânea, não-racionalizado. Ele não medita sobre a possível estranheza dessa manifestação de última vontade. Seu movimento é generoso, humano sem cálculo. Testemunha do atropelamento, dirigiu-se à delegacia, para as declarações de praxe. Não lhe passaria pela cabeça que outro transeunte ocasional, o repórter Amado Ribeiro, deturpasse o seu gesto sem mácula.
Por que Arandir se encontrava na praça da Bandeira, em companhia do sogro, quando se deu o acidente? Ele havia ido à Caixa Econômica, para apanhar uma jóia . O dinheiro destinava-se ao aborto de Selminha. Segundo ela explica: ‘Meu marido acha que a gravidez estraga a lua-de-mel!’ Casados há menos de um ano, eles viviam um idílio absoluto, que nada deveria perturbar. Ironicamente, a tentativa de preservação do matrimônio perfeito redundou a sua perda. Ou, se quiser, o sacrifício que Arandir procurou impor a quem o continuaria, favoreceu sua morte.
Progressivamente acuado, Arandir intimida-se. Deixa o emprego, esconde-se em casa no quarto da cunhada e finalmente se abriga num hotel ordinário. Ao saber que Selminha não o apóia, começa a tirar do desamparo a força salvadora: ‘Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (...) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que (...) Eu não beijaria um homem que não tivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! ‘Eles’ não percebem que alguém morria?’
O ‘reconhecimento’ faz da solidão a vitória de Aradir. Violento, ele pede a Dália para dizer a Selminha: ‘Que em toda a minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez, Dália, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom! (furioso) Eu me senti quase, nem sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele momento, você deveria ser a irmã nua. E eu desejei. Saí logo, mas desejei a cunhada. Na praça da Bandeira, não. Lá, eu fui bom, é lindo! É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! (grita) Eu não me arrependo. Eu não me arrependo!”
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