No caso da língua, digo com todas as letras que, no Brasil, quando se diz que alguém é “analfabeto”, o que se quer efetivamente é desqualificar esse indivíduo socialmente.
Lá pelo ano de 1996 [ou 1997], o então presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), Orlando Silva Júnior, falando da tentativa que a entidade que dirige fez de impedir a realização do provão, soltou uma pérola. Disse Orlando que “não houveram excessos”. Bum! O mundo desabou-lhe nas costas. Eu mesmo comentei o fato com os meus alunos das unidades do Anglo em que leciono e brinquei, dizendo que “o presidente da União Nacional dos Estudantes não estuda”. A revista Veja (edição 1471) dedicou-lhe uma nota na seção “Veja essa”, tratando do deslize gramatical. Arnaldo Jabor, na globo, “detonou” o pobre coitado.
Até aí, tudo bem. Acho que Orlando merece a crítica, afinal o cargo que ocupa lhe exige o domínio da norma culta. No entanto não vi ninguém fazer o mesmo, por exemplo, com o prefeito de São Paulo, que, na TV Bandeirantes, durante um debate antes do primeiro turno das eleições, naquela mesma época, disse, entre uma infinidade de patacoadas, brandindo uma folha de papel: “Se eu dispor de tempo”.
Sob a ótica da norma curta, o erro de Orlando é tão grotesco quanto o do executivo da Eucatex, mas... Conclua você, leitor.
Qual foi o erro gramatical de Orlando? O verbo haver, quando usado com o sentido de existir, ou de ocorrer, acontecer, não deve ser flexionado. O problema é que pouca gente tem consciência do que efetivamente ocorre com o verbo “haver”.
“O que é que há?” Quem é que nunca disse ou ouviu essa frase? Pois bem, esse “há” é do verbo haver, conjugado na terceira do singular do presente do indicativo. A terceira do plural é “hão” (“Eles hão de conseguir”). Ninguém erra esse verbo no presente. Você nunca disse, nem ouviu alguém dizer “Hão problemas graves neste país”. Ninguém erra isso. Ninguém. Mas, quando se trata do pretérito ou do futuro, poucos são os que acertam. É um tal de “Houveram vários acidentes”, “Haverão graves problemas” etc. Na verdade, como já disse, as pessoas não sabem o porquê da história. É muito comum alguém perguntar se “o há é com h”. Quando alguém me pergunta isso, costumo responder simplesmente que “esse há é da terceira do singular do presente do verbo haver”. E por que respondo assim? Porque quero que a pessoa pense. Quero que ela entenda o que está ocorrendo.
Quem entende que está conjugando um verbo, numa determinada pessoa de um determinado tempo, entende que, se trocar só o tempo, não vai precisar trocar o singular pelo plural. Assim sendo, se você diz “Há problemas”, diga “Houve Problemas”, “Haverá problemas”, “Caso haja problemas”, “Se houvesse problemas”, “Se houver problemas” etc.
“Há, houve, haverá, haja, houvesse, houver” são formas da terceira do singular do verbo “haver”. Só muda o tempo. “Há” é do presente do indicativo, “houve” é do pretérito perfeito, “haverá” é do futuro do presente. Muda o tempo, mas não muda o número, ou seja, não se troca o singular pelo plural.
O erro de Orlando, o presidente da UNE, não foi nenhuma novidade. Ele não foi o primeiro a pronunciar a pérola. Nem será o último. Executivos, empresários, políticos e outros “notáveis” escorregam no verbo haver. Nunca vi nenhum desses figurões ser execrado publicamente pelo deslize. Mas o pobre Orlando... Tenho ou não tenho razão quando digo que na verdade o problema se chama “preconceito”?
Voltando ao prefeito de São Paulo (“Se eu dispor de tempo...”), não ouvi ninguém abrir a boca. O verbo “dispor” é conjugado exatamente como o verbo “pôr”, do qual deriva. E como é o futuro do subjuntivo do verbo pôr? É “puser”. Portanto o futuro do subjuntivo de “dispor” é “dispuser”. “Se eu dispuser de tempo” é o que deveria ter dito um dos últimos produtos do senhor Duda Mendonça. Mas ninguém disse uma palavra a respeito.
Tenho razão? Parece que sim. “Analfabeto”, no Brasil, só vale para quem é socialmente desprestigiado. Vicente Matheus, ex-presidente do Corinthians, riquíssimo, autor de frases antológicas (“Jogar no interior é uma faca de dois legumes”), era “folclórico”. Analfabeto? Nem pensar.
Um forte abraço.
Pasquale Cipro Neto
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