quarta-feira, 10 de julho de 2019
Paulo Freire - Pedagogia do oprimido
A contradição
opressores-oprimidos. Sua superação.
A
violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma
outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os
oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente
tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma
forma de criá-la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam, de
fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí
está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e
aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu
poder, não podem ter, roeste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de
si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será
suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto é que o poder dos
opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não
apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a
ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a
sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência
da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta
“generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria.
Daí
o desespero desta “generosidade” diante de qualquer ameaça, embora tênue, à sua
fonte. Não pode jamais entender esta “generosidade” que a verdadeira
generosidade está em lutar para que desapareçam as razões que alimentam o falso
amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do "demitido da
vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos
esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande generosidade está em
lutar para que, cada vem mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se
estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão
fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo. Este
ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos “condenados da terra”,
dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se
solidarizem. Lutando pela restauração de sua humanidade estarão, sejam homens
ou povos, tentando a restauração da generosidade verdadeira.
Quem,
melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado
terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos
da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da
libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua
busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta
que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o
qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando
esta se revista da falsa generosidade referida.
A
nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que
nos parece constituir o que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que
tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta
incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e
de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu
engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se
fará e refará.
O
grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” ao opressor
em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia
de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor
poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto
vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é
impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos
opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos
oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações
da desumanização.
Há
algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à
pedagogia libertadora. É que, quase sempre, num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por
ela, tendem a ser opressores também, ou sub-opressores. A estrutura de seu
pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta,
existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas,
para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação
não lhes está, clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de
humanidade.
Isto
decorre, como analisaremos mais adiante, com mais vagar, do fato de que, em
certo momento de sua experiência existencial, os oprimidos assumam uma postura
que chamamos de “aderência” ao opressor. Nestas circunstâncias, não chegam a
“admirá-lo”, o que os levaria a objetivá-lo, a descobri-lo fora de si.
Ao
fazermos esta afirmação, não queremos dizer que os oprimidos, neste caso, não
se saibam oprimidos. O seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se
encontra, contudo, prejudicado pela “imersão” em que se acham na realidade
opressora. “Reconhecer-se” a este nível, contrários ao outro, não significa
ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase aberração: um dos
pólos da contradição pretendendo não a libertação, mas a identificação com o seu
contrário.
O
“homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da
superação da contradição, com a transformação da velha situação concreta
opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novo
homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do homem
novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes
possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe
oprimida.
Desta
forma, por exemplo, querem a reforma agrária, não para libertar-se, mas para
passar a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente,
patrões de novos empregados.
Raros
são os camponeses que, ao serem “promovidos” a capatazes, não se tornam mais
duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo.
Poder-se-ia dizer – e com razão – que isto se deve ao fato de que a situação
concreta, vigente, de opressão, não foi transformada. E que, nesta hipótese, o
capataz, para assegurar seu posto, tem de encarnar, com mais dureza ainda, a
dureza do patrão. Tal afirmação não nega a nossa – a de que, nestas
circunstâncias, os oprimidos têm no opressor o seu testemunho de “homem”.
Até
as revoluções, que transformam a situação concreta de opressão em uma nova, em
que a libertarão se instaura como processo, enfrentam esta manifestação da
consciência oprimida. Muitos dos oprimidos que, direta ou indiretamente,
participaram da revolução, marcados pelos velhos mitos da estrutura anterior,
pretendem fazer da revolução a sua revolução privada. Perdura neles, de certo
modo, a sombra testemunhal do opressor antigo. Este continua a ser o seu
testemunho de “humanidade”.
O
“medo da liberdade”, de que se fazem objeto os oprimidos, medo da liberdade que
tanto pode conduzi-los a pretender ser opressores também, quanto pode mantê-los
atados ao status de oprimidos, é outro aspecto que merece igualmente nossa
reflexão.
Um
dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda
prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido
alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimos
chamando de consciência “hospedeira” da consciência opressora.
Por
isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base
de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores.
Os
oprimidos, que introjetam a "sombra” dos opressores e seguem suas pautas,
temem a liberdade, a medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra,
exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão, com outro
“conteúdo” – o de sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não
seriam livres. A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma
permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a
faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela
precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora
dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é idéia que se faça mito. É
condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens
como seres inconclusos.
Daí,
a necessidade que se impõe de superar a situação opressora. Isto implica no
reconhecimento crítico, na “razão” desta situação, para que, através de uma
ação transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que
possibilite aquela busca do ser mais.
No
momento, porém, em que se comece a autêntica luta para criar a situação que
nascerá da superação da velha, já se está lutando pelo Ser Mais. E, se a
situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, que atinge
aos que oprimem e aos oprimidos, não vai ceder, como já afirmamos, aos
primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de oprimir, mas aos
segundos, gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos.
Os
oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da
estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de
correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na medida em que, lutar por
ela, significa uma ameaça, não só aos que a usam para oprimir, como seus
“proprietários” exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com
maiores repressões.
Quando
descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio somente se
faz concretude na concretude de outros anseios.
Enquanto
tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros e a escutar o apelo
que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmos, preferindo a gregarização
à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os
mantém à comunhão criadora, a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda
somente buscada.
Sofrem
uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não
sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São
eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência
opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre
expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se
manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem
espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na
atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no
seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo.
Este
é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
A
libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste
parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição
opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é
o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido,
mas homem libertando-se.
Esta
superação não pode dar-se, porém, em termos puramente idealistas. Se se faz
indispensável aos oprimidas, para a luta por sua libertação, que a realidade
concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de “mundo fechado” (em
que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma
situação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental,
então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe,
tenham, neste reconhecimento, o motor de sua ação libertadora.
Vale
dizer pois, que reconhecer-se limitadas pela situação concreta de opressão, de
que o falso sujeito, o falso “ser para si”, é o opressor, não significa ainda a
sua libertação. Como contradição do opressor, que tem neles a sua verdade, como
disse Hegel, somente superam a contradição em que se acham, quando o
reconhecer-se oprimidos os engaja na luta por libertar-se.
Não
basta saber-se numa relação dialética com o opressor – seu contrário antagônico
– descobrindo, por exemplo, que sem eles o opressor não existiria, (Hegel) para
estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se entreguem à práxis
libertadora.
O
mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomado individualmente,
como pessoa. Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que sofra por este
fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidarizar-se com estes é
algo mais que prestar assistência a trinta ou a cem, mantendo-os atados,
contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a consciência
de que explora e “racionalizar” sua culpa paternalistamente. A solidariedade,
exigindo de quem se solidariza, que “assuma” a situação de com quem se
solidarizou, é uma atitude radical.
Se
o que caracteriza os oprimidos, como “consciência servil” em relação à
consciência do senhor, é fazer-se quase “coisa” e transformar-se, como salienta
Hegel”, em “consciência para outro”, a solidariedade verdadeira com eles está
em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser
este "ser para outro”.
O
opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um
gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor
àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e
passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua
palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida.
Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se
constitui a solidariedade verdadeira.
Dizer
que estes homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente
fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa.
Da
mesma forma como é, em uma situação concreta – a da opressão – que se instaura
a contradição opressor-oprimidos, a superação desta contradição só se pode
verificar objetivamente também.
Dai,
esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor; quanto
para os oprimidos que, reconhecendo-se contradição daquele, desvelam o mundo da
opressão e percebem os mitos que o alimentam – a radical exigência da
transformação da situação concreta que gera a opressão.
Parece-nos
muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao
apresentarmos esta radical exigência – a da transformação objetiva da situação
opressora – combatendo um imobilismo subjetivista que transformasse o ter
consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um dia a
opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel da
subjetividade na luta pela modificação das estruturas. Não se pode pensar em
objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser
dicotomizadas.
A
objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da
realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da
objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga
em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva,
desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem
subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente
dialeticidade.
Confundir
subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que
tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo
ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra
ingenuidade, a do subjetivismo, que implica em homens sem mundo.
Não
há um sem os outros, mas ambos em permanente integração.
Em
Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta
dicotomia. O que Marx criticou e, cientificamente destruiu, não foi a
subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.
A
realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação
dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores
desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os
condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos
homens.
Ao
fazer-se opressora, a realidade implica na existência dos que oprimem e dos que
são oprimidos. Estes, a quem cabe realmente lutar por sua libertação juntamente
com os que com eles em verdade se solidarizam, precisam ganhar a consciência
crítica da opressão, na práxis desta busca.
Este
é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que a realidade
opressora, ao constituir-se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se
encontram, funciona como uma força de imersão das consciências.
Neste
sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora.
Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta
sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo “blablablá”,
nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo.
“Hay
que hacer la opresión real todavia más opresiva añadiendo a aquella la
consciencia de la opresión, haciendo la infamia todavia más infamante, al
pregonarla”.
Este
fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a consciência da
opressão”, a que Marx se refere, corresponde à relação dialética
subjetividade-objetividade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo
constitui com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica.
A
práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo, sem
ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos.
Desta
forma, esta superação exige a inserção crítica dos oprimidos na realidade
opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela.
Por
isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o
mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção crítica (ação
já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente
porque não é reconhecimento verdadeiro.
Este
é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes
o resultado da arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade
objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”. E não é possível transformar
a realidade concreta na realidade imaginária.
É
o que ocorre, igualmente, quando a modificação da realidade objetiva fere os
interesses individuais ou de classe de quem faz o reconhecimento.
No
primeiro caso, não há inserção crítica na realidade, porque esta é fictícia; no
segundo, porque a inserção contradiria os interesses de classe do reconhecedor.
A
tendência deste é, então, comportar-se “neuroticamente”. O fato existe, mas
tanto ele quanto o que dele talvez resulte lhe podem ser adversos. Daí que seja
necessário, numa indiscutível “racionalização”, não propriamente negá-lo, mas
vê-lo de forma diferente. A “racionalização”, como mecanismo de defesa, termina
por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, mas ao distorcer
suas verdades, a “racionalização” “retira” as bases objetivas do mesmo. O fato
deixa de ser ele concretamente e passa a ser um mito criado para a defesa da
classe do que fez o reconhecimento, que, assim, se torna falso. Desta forma,
mais uma vez, é impossível a “inserção crítica”, que só existe na dialeticidade
objetividade-subjetividade.
Aí
está uma das razões para a proibição, para as dificuldades – como veremos no
último capítulo deste ensaio – no sentido de que as massas populares cheguem a
“inserir-se”, criticamente, na realidade. É que o opressor sabe muito bem que
esta “inserção crítica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada
pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência
delas em seu estado de imersão” em que, de modo geral, se encontram impotentes
em face da realidade opressora, como “situação limite”, que lhes parece intransponível.
É
interessante observar a advertência que faz Lukács ao partido revolucionário de
que “(...) il doit, pour employer les mots de Marx, expliquer aux masses
leur propre action non seulement afin d’assurer la continuité des expériences
revolutionnaires du prolétariat, mais aussi d’activer consciemment le
développement ulterieur de ces expériences”.
Ao
afirmar esta necessidade, Lukács coloca, indiscutivelmente, a questão da
“inserção crítica” a que nos referimos.
“Expliquer
aux masses leur propre action” é esclarecer e iluminar a ação, de um lado,
quanto à sua relação com os dados objetivos que a provocam; de outro, no que
diz respeito às finalidades da própria ação.
Quanto
mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a
qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se “inserem” nela
criticamente.
Desta
forma, estarão ativando “consciemment le développement ultérieur” de
suas experiências. É que não haveria ação humana se não houvesse uma realidade
objetiva, um mundo como “não eu” do homem, capaz de desafiá-lo; como também não
haveria ação humana se o homem não fosse um “projeto”, um mais além de si,
capaz de captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá-la.
Num
pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários.
Mas, a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é,
quando também não se dicotomiza da reflexão. Esta, necessária à ação, está
implícita na exigência que faz Lukács da “explicação às massas de sua própria
ação” – como está implícita na finalidade que ele dá a essa explicação – a de
“ativar conscientemente o desenvolvimento ulterior da experiência”. Para nós,
contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar
com elas sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever que Lukács reconhece ao
partido revolucionário de “explicar às massas a sua ação” coincide com a
exigência que fazemos da inserção crítica das massas na sua realidade através
da práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si mesma.
A
pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na
luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter, nos próprios
oprimidos que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos
seus sujeitos.
Nenhuma
pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer,
pode fazer deles seres desditados, objetos de um “tratamento” humanitarista,
para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para
a sua "promoção”. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na
luta por sua redenção.
A
pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se
apresenta como pedagogia do Homem. Somente ela, que se anima de generosidade
autêntica, humanista e não “humanitarista”, pode alcançar este objetivo. Pelo
contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos opressores,
egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu
humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É instrumento de
desumanização.
Esta
é a razão pela qual, como já afirmamos, esta pedagogia não pode ser elaborada
nem praticada pelos opressores.
Seria
uma contradição se os opressores, não só defendessem, mas praticassem uma
educação libertadora. Se, porém, a prática desta educação implica no poder
político e se os oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do
oprimido antes da revolução?
Esta
é, sem dúvida, uma indagação da mais alta importância, cuja resposta nos parece
encontrar-se mais ou menos clara no último capítulo deste ensaio.
Ainda
que não queiramos antecipar-nos, poderemos, contudo, afirmar que um primeiro
aspecto desta indagação se encontra na distinção entre educação sistemática, a
que só pode ser mudada com o poder, e os trabalhos educativos, que devem ser
realizados com os oprimidos, no processo de sua organização.
A
pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois
momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da
opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo,
em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do
oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.
Em
qualquer destes momentos, será sempre a ação profunda, através da qual se
enfrentará, culturalmente, a cultura da dominação. No primeiro momento, por
meio da mudança da percepção do mundo opressor por parte dos oprimidos; no
segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos na estrutura opressora
e que se preservam como espectros míticos, na estrutura nova que surge da
transformação revolucionária.
No
primeiro momento, o da pedagogia do oprimido, objeto da análise deste capítulo,
estamos em face do problema da consciência oprimida e da consciência opressora;
dos homens opressores e dos homens oprimidos, em uma situação concreta de
opressão. Em face do problema de seu comportamento, de sua visão do mundo, de
sua ética. Da dualidade dos oprimidos. E é como seres duais, contraditórios,
divididos, que temos de encará-los. A situação de opressão em que se “formam”,
em que “realizam” sua existência, os constitui nesta dualidade, na qual se
encontram proibidos de ser. Basta, porém, que homens estejam sendo proibidos de
ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica seja, em
si mesma, uma violência. Violência real, não importa que, muitas vezes,
adocicada pela falsa generosidade a que nos referimos, porque fere a ontológica
e histórica vocação dos homens – a do ser mais.
Daí
que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência, que
jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos oprimidos.
Como
poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de uma
violência?
Como
poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os
constitui?
Não
haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma
como violentados, numa situação objetiva de opressão.
Inauguram
a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos
outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que
os oprimem como outro. Inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não
amam, porque apenas se amam. Os que inauguram o terror não são os débeis, que a
ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação
concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.
Quem
inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos.
Quem
inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram.
Quem
inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada,
mas as que a negaram, negando também a sua.
Quem
inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes,
mas os fortes que os debilitaram.
Para
os opressores, porém, na hipocrisia de sua “generosidade”, são sempre os
oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme me
situem, interna ou externamente, de “essa gente” ou de “essa massa cega e
invejosa”, ou de “selvagens”, ou de “nativos”, ou de “subversivos”, são sempre
os oprimidos os que desamam. São sempre eles os “violentos”, os "bárbaros”
os “malvados”, os “ferozes”, quando reagem à violência dos opressores.
Na
verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à
violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou
inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase
tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode
inaugurar o amor.
Enquanto
a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a
resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca
do direito de ser.
Os
opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente
ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de
esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão.
Por
isto é que, somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores.
Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam.
O
importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para superar a
contradição em que se acham. Que esta superação seja o surgimento do homem novo
– não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se. Precisamente
porque, se sua luta é no sentido de fazer-se Homem, que estavam sendo proibidos
de ser, não o conseguirão se apenas invertem os termos da contradição. Isto é,
se apenas mudam de lugar, nos pólos da contradição. Esta afirmação pode parecer
ingênua. Na verdade, não o é.
Reconhecemos
que, na superação da contradição opressores-oprimidos, que somente pode ser
tentada e realizada por estes, está implícito o desaparecimento dos primeiros,
enquanto classe que oprime. Os freios que os antigos oprimidos devem impor aos
antigos opressores para que não voltem a oprimir não são opressão daqueles a estes.
A opressão só existe quando se constitui em um ato proibitivo do ser mais dos
homens. Por esta razão, estes freios, que são necessários, não significam, em
si mesmos, que os oprimidos de ontem se tenham transformado nos opressores de
hoje.
Os
oprimidos de ontem, que detêm os antigos opressores na sua ânsia de oprimir,
estarão gerando, com seu ato, liberdade, na medida em que, com ele, evitam a
volta do regime opressor. Um ato que proíbe a restauração deste regime não pode
ser comparado com o que o cria e o mantém; não pode ser comparado com aquele
através do qual alguns homens negam às maiorias o direito de ser.
No
momento, porém, em que o novo poder se enrijece em “burocracia” dominadora, se
perde a dimensão humanista da luta e já não se pode falar em libertação.
Daí
a afirmação anteriormente feita, de que a superação autêntica da contradição
opressores-oprimidos não está na pura troca de lugar, na passagem de um polo a
outro. Mais ainda: não está em que os oprimidos de hoje, em nome de sua
libertação, passem a ter novos opressores.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17ª. ed.
Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário