sexta-feira, 12 de julho de 2019
Contos de Lima Barreto
O
FEITICEIRO E O DEPUTADO
Nos arredores do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas
Tropicais”, que, como se sabe, fica no município Contra Almirante Doutor Frederico
Antônio da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante singular.
Conheciam-no no lugar, que, antes do batismo burocrático, tivera o
nome doce e espontâneo de Inhangá, por “feiticeiro”; o mesmo, certa vez a ativa
polícia local, em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse
negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas
teimava em chamá-lo de “feiticeiro”.
É bem possível que essa alcunha tivesse tido origem no mistério de
sua chegada e na extravagância de sua maneira de viver.
Fora mítico o seu desembarque. Um dia apareceu numa das praias do município
e ficou, tal e qual Manco Capac, no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos
incas. Comprou, por algumas centenas de mil réis, um pequeno sítio com uma miserável
choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo
taciturno e sem relações quase.
A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como um cômoro de cupins;
ao redor, os cajueiros, as bananeiras e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá
embaixo, no sopé do morrote, em torno do poço de água salobre, as couves reverdesciam
nos canteiros, aos seus cuidados incessantes e tenazes.
Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos anos; e um
olhar doce e triste, errante e triste e duro, se fitava qualquer cousa.
Toda a manhã viam-no descer à rega das couves; e, pelo dia em fora,
roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam, dizia:
— “Seu” Ernesto tem visto como a seca anda “brava”.
— É verdade.
— Neste mês “todo” não temos chuva.
— Não acho… Abril, águas mil.
Se lhe interrogavam sobre o passado, calava-se; ninguém se atrevia
a insistir e ele continuava na sua faina hortícola, à margem da estrada.
À tarde, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando as
tardes são longas, ainda era visto depois, sentado à porta de sua choupana. A sua
biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina Comédia, o Robinson
e o Pensées, de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas.
A desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas certamente
teriam-no feito sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo
muito profundamente, por certo de amor, pois todo o sofrimento vem dele.
Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é bem este
que nos provoca a dor moral: é a certeza de que ele não nos deixa amar
plenamente…
Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara; mas a palavra
do delegado do lugar, que indagara dos seus antecedentes, levou a todos confiança
no moço, sem que perdesse a alcunha e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor;
mas entendia de mandingas. A sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando
a população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.
Um dia Sinhá Chica animou-se a consultá-lo:
— “Seu” Ernesto: viraram a cabeça de meu filho… Deu “pa bebê” “Tá arrelaxando”
— Minha senhora, que hei de eu fazer?
— O “sinhô” pode, sim! “Conversa cum” santo.
O solitário, encontrando-se por acaso, naquele mesmo dia, com o
filho da pobre rapariga, disse-lhe docemente estas simples palavras:
— Não beba, rapaz. É feio, estraga — não beba!
E o rapaz pensou que era o Mistério quem lhe falava e não bebeu
mais. Foi um milagre que mais repercutiu com o que contou o Teófilo Candeeiro.
Este incorrigível bebaço, a quem atribuíam a invenção do tratamento
das sezões, pelo parati, dias depois, em um cavaco de venda, narrou que vira, uma
tardinha, aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do “homem” um pássaro
branco, grande, maior do que um pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores
todas se abaixavam, como se quisessem beijar a terra.
Com essas e outras, o solitário de Inhangá ficou sendo como um
príncipe encantado, um gênio bom, a quem não se devia fazer mal.
Houve mesmo quem o supusesse um Cristo, um Messias. Era a opinião do
Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo sacristão, que dava a Deus e a César o que
era de um e o que era de outro; mas o escriturário do posto, “Seu” Almada, contrariava-o,
dizendo que se o primeiro Cristo não existiu, então um segundo!…
O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que escrevia em
ortografia pretensiosa os pálidos ofícios, remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros
para o Rio.
A opinião do escriturário era de exegeta, mas a do médico era de
psiquiatra.
Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito lido em livros
grossos e conhecedor de uma quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro
louco.
Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança de ciência…
O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro
a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu
desdém soberano de miserável independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mané
Bitu, a doce compaixão de sua alma terna e afeiçoada…
De manhã à tarde, regava as suas couves; pelo dia em fora, plantava,
colhia, fazia e rachava lenha, que vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar
as utilidades de que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase só naquele
município de Inhangá, hoje burocraticamente chamado –– “Contra-Almirante Doutor
Frederico Antônio da Mota Batista”.
Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um elegante
senhor, bem-posto, polido e cético.
O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o sábio escriturário
Almada e o vendeiro Bitu, representando o “capital” da localidade, receberam o parlamentar
com todas as honras e não sabiam como agradá-lo.
Mostraram-lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos, as praias
longas e brancas e também as estranguladas entre morros sobranceiros ao mar; os
horizontes fugidios e cismadores do alto das colinas; as plantações de batatas-doces;
a ceva dos porcos… Por fim, ao deputado que já se ia fatigando com aqueles dias,
a passar tão cheio de assessores, o doutor Chupadinho convidou:
— Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou
feiticeiro aqui. E um dementado que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria
aos cuidados da ciência, em algum manicômio.
E o escriturário acrescentou:
— Um maníaco religioso, um raro exemplar daquela espécie de gente com
que as outras idades fabricavam os seus santos.
E o Mané Bitu:
— É um rapaz honesto… Bom moço –– é o que posso
dizer dele.
O deputado, sempre cético e complacente, concordou
em acompanhá-los à morada do feiticeiro. Foi sem curiosidade, antes
indiferente, com uma ponta de tristeza no olhar.
O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao
redor do poço, na várzea, à beira da estrada. O deputado olhou-o e o solitário,
ao tropel de gente, ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada, voltou-se
e fitou os quatro. Encarou mais firmemente o desconhecido e parecia procurar
reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que pudesse o “feiticeiro”
dizer qualquer cousa, correu até ele e abraçou-o muito e demoradamente.
— És tu, Ernesto?
— És tu, Braga?
Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte
e os dois conversaram particularmente.
Quando saíram, Almada perguntou:
— O doutor conhecia-o?
— Muito. Foi meu amigo e colega.
— É formado? Indagou o doutor Chupadinho.
— É.
— Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus
ares, a maneira com que se porta fizeram-me crer isso; o povo, porém…
— Eu também, observou Almada, sempre tive essa opinião
íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…
— Cá para mim, disse Bitu, sempre o tive por honesto.
Paga sempre as suas contas.
E os quatro voltaram em silêncio para a sede do
“Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”.
BARRETO,
Lima. Os melhores contos. Coleção Melhores Contos.
1 ed. São
Paulo: Le Books, 2019
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