De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
domingo, 18 de fevereiro de 2018
Restos do carnaval
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou
para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde
esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu
cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se
segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se
aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se
abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do
Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas
enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era
meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele
pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam
fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta
do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se
divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza
para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se
tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao
constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo
sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas
era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda
suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do
meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no
contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes
e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os
mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com
minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu
pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me
causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados
pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã
acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída
de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando
também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava
da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão
milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já
aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a
filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e
folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as
pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando
forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu
pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o
inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez
atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura
bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de
rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez
na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de
felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu
calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e
a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia
de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito
anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus
nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por
causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora
feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de
fantasia, teve que ser tão melancólico?
De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que
estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo
de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de
papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e
ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se
criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui
correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que
cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa,
atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros
me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se,
minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E,
como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam
pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples
menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço
pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes
começava a ficar alegre, mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha
mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se
depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns
12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou
diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade,
cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos
defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei
pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma
rosa.
Clarice Lispector. Felicidade
clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P. 25-28.
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