domingo, 18 de fevereiro de 2018
O retrato oval
O castelo onde meu criado aventurara-se
a forçar nossa entrada, em vez de permitir que eu passasse a noite, ferido como
eu estava, ao relento, era uma daquelas construções lúgubres e grandiosas que há
tempos debruçam-se por sobre os Apeninos, não apenas de fato como na imaginação
da sra. Radcliffe. O lugar dava a impressão de ter sido abandonado havia pouco
tempo, em caráter temporário. Instalamo-nos em um dos aposentos menores e mais
humildes. O quarto ficava em um torreão afastado. A decoração era sofisticada,
mas antiga e maltratada pelo tempo. As paredes estavam cobertas por tapeçarias
e ornadas com troféus de armas; ademais, havia um número incomum de pinturas
modernas muito agradáveis com molduras de arabescos dourados. Essas pinturas,
que pendiam não apenas das paredes amplas, mas também de inúmeros recônditos
que arquitetura bizarra do palácio fazia necessários ‒ essas pinturas, talvez
em virtude de um delírio incipiente, despertaram-lhe um profundo interesse, de
modo que solicitei a Pedro que fechasse as pesadas cortinas daquele cômodo ‒
uma vez que já era noite ‒, que
acendesse os pavios de um candelabro alto que estava junto à cabeceira da minha
cama e que abrisse, tanto quanto possível, as cortinas franjadas de veludo
negro que envolviam a cama. Fiz esse pedido para que eu pudesse me entregar se
não ao sono, pelo menos à contemplação daqueles quadros e à leitura de um
pequeno tomo encontrado sobre o travesseiro, que se propunha a fazer críticas a
eles e a descrevê-los.
Por muito ‒ muito tempo eu li ‒ e
concentrado, absorto, eu contemplava. As horas passaram céleres e agradáveis
até que a meia-noite escura se instaurou. A posição do candelabro aborrecia-me
e, preferindo fazer um esforço a importunar meu criado, que dormia, estiquei o
braço e ajustei-o de modo a obter mais luz sobre o livro.
Mas esse ato teve consequências de todo
inesperadas. Os raios de inúmeras velas (pois havia muitas) iluminaram um nicho
do quarto que até então permanecera envolto na densa sombra de uma das colunas
da cama. E assim vi, iluminado, um quadro que até então me passara
despercebido. Era o retrato de uma menina em que despontavam os primeiros
sinais de mulher. Observei a pintura por alguns instantes e logo fechei os
olhos. O que me despertou esse impulso era algo que a princípio eu mesmo não
compreendia. Mas, enquanto as pálpebras permaneciam-me fechadas, vasculhei meus
pensamentos em busca de motivos para fechá-las. Um movimento impulsivo deu-me
tempo para pensar ‒ para ter certeza de que os olhos não me haviam logrado ‒
para serenar meus devaneios e lançar à tela um olhar mais sóbrio e mais
preciso. Passados alguns instantes, olhei mais uma vez para o retrato.
Que naquele instante eu o via de modo
objetivo estava além de qualquer dúvida; pois o primeiro clarão das velas sobre
a tela parecia ter dissipado o estupor onírico que aos poucos dominava meus
sentidos e me reconduzido, de sobressalto, à vigília.
O retrato, conforme descrevi, era o de
uma jovem moça. Era um simples busto, executado com a técnica que se costumava
chamar de vignette; o estilo era
muito semelhante ao das famosas cabeças de sully. Os braços, o colo e até mesmo
as pontas do cabelo radiante fundiam-se de modo imperceptível na sombra vaga e
mesmo assim densa que constituía o segundo plano da obra. O quadro ainda tinha
uma moldura oval, dourada com grande esmero e filigranas à mourisca. Como obra
de arte, nada poderia ser mais admirável do que a pintura em si. Mas não fora
nem a execução do trabalho nem a beleza imortal daquele semblante o que me
comovera de maneira tão súbita e tão contundente. Também seria impensável que
minha fantasia, já desperta de seu cochilo, houvesse tomado o retrato por uma
pessoa real. Percebi de imediato que as particularidades da composição, do
estilo vignette e da moldura haveriam
de ter afastado essa ideia no mesmo instante ‒ haveriam de ter impedido que
fosse sequer matéria de consideração. Ocupado com esses pensamentos, permaneci,
talvez por uma hora inteira, meio sentado, meio reclinado, com o olhar fixo no
retrato. Por fim, ao deslindar o segredo de seu efeito, deitei-me. Descobri que
o encanto do quadro residia na perfeição
absoluta da expressão naquele rosto que parecia vivo e que, a princípio
tendo-me assustado, logo pôs-me perplexo, subjugou e aterrorizou-me. Sob a influência de um espanto profundo e
reverencial, recoloquei o candelabro em seu lugar. Com a causa de minha
agitação fora de vista, debrucei-me com avidez sobre o volume que discorria
sobre as pinturas e suas histórias. Ao buscar o número que identificava o
retrato oval, li as obscuras e peculiares palavras que seguem:
“Era uma donzela de rara beleza, e só não
era mais amável do que alegre. Numa hora infeliz ela viu, amou e desposou o
pintor. Ele, arrebatado, estudioso, rigoroso, já tendo a Arte por esposa; ela,
uma donzela de rara beleza, e só não era mais amável do que alegre; toda luz e
sorrisos, brincalhona com os filhotes de corça, amava e apegava-se a tudo;
detestava somente a Arte, que era sua rival; temia apenas a palheta e os
pinceis e outros instrumentos indesejáveis que a privavam de ver o rosto do
amado. Assim, para a moça, era uma coisa terrível ouvir o pintor falar sobre o
desejo de retratar sua jovem esposa. Mas ela era humilde e dócil, e pousou por
semanas a fio em um torreão escuro onde a luz que iluminava a tela vinha apenas
de cima. Mas o pintor comprazia-se naquele trabalho, que se estendia hora após
hora, dia após dia. Ele tinha uma alma apaixonada, indomável, suscetível, e era
dado a devaneios; assim, não percebia
que a terrível luz que se filtrava
pelo torreão solitário abatia a saúde e o ânimo da esposa, que definhava à
vista de todos, menos da sua. Mesmo assim ela seguia sorrindo, sem queixar-se,
porque notava que o pintor (que era muito renomado) sentia um prazer imenso ao
desempenhar a tarefa, e trabalhava dia e noite para retratar a mulher que tanto
o amava, mas que a cada dia ficava mais desanimada e fraca. E na verdade
algumas pessoas que viam o retrato comentavam a semelhança à meia-voz, como se
falassem de um milagre, e de uma prova não só da habilidade do pintor como
também do profundo amor que ele nutria pela modelo que retratava com tanta
maestria. Mas, à medida que o trabalho chegava ao fim, o acesso ao torreão foi
vetado, pois o pintor tomara-se de arrebatamento e mal despregava os olhos da
tela, mesmo que fosse para olhar o rosto da esposa. E ele não percebia que as cores espalhadas sobre a tela vinham das faces
daquela que sentava ao seu lado. E ao cabo de várias semanas, quando faltavam
apenas alguns retoques ‒ uma pincelada nos lábios e um sombreado no olhar ‒, o
ânimo da esposa mais uma vez bruxuleou como a chama do interior do lampião. E
foi dada última pincelada, e logo o sombreado estava completo; então, por um
instante, o pintor ficou em transe diante da obra que executara; mas no momento
seguinte, ainda olhando a pintura, ficou pálido e começou a tremer;
horrorizado, gritou: ‘Isso é a própria Vida!’
e virou para contemplar a amada: Ela
estava morta!”.
Edgar Allan Poe. O gato preto e
outros contos. São Paulo: Hedra, 2008. p. 65-69.
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