sábado, 19 de maio de 2018
CONTOS DE ENSINAMENTO
Os contos populares da tradição oral são narrativas ancestrais
que vêm resistindo à passagem do tempo. No Brasil, convivem contos de tradição
dos diferentes povos indígenas e africanos, de povos orientais e os de tradição
européia (estes mais divulgados pela mídia impressa, cinematográfica e
virtual). São estudiosos do conto da tradição oral brasileira Câmara Cascudo e
Silvio Romero, entre outros. De gêneros variados, possuem certas
características que os aproximam e outras que os distanciam, permitindo
diferentes classificações. A organização mais comum é a que reúne os contos
populares da tradição oral em uma só categoria, “contos de fadas”, ignorando
que esses últimos receberam essa designação por terem fadas em seus enredos.
Mas, ao serem analisados por estudiosos, os contos populares, em geral, foram
classificados de formas mais complexas. Um dos agrupamentos mais importantes é
o de Aarne-Thompson; outros, dos formalistas russos, entre eles Wladimir Propp.
As classificações
dos contos da tradição oral, porém, embora valiosas para ampliar a compreensão
de sua natureza e importância, costumam apresentar certa rigidez própria das
tipologias e não podem ser consideradas verdades absolutas, uma vez que alguns
temas, por exemplo – como o da menina e o lobo, “escapam” das classificações
por terem sido contados de diferentes jeitos, ou seja, em diferentes gêneros.
Mas olhá-los por meio dessas análises produzidas com cuidado e intenção
investigadora, ainda que marcada por uma fixidez excessiva, permite que se
perceba a riqueza da cultura oral. É inegável que os numerosos estudos e
classificações contribuem para isso.
Hoje vamos abrir
espaço para os chamados “contos de ensinamento”, importante grupo de contos da
tradição oral de todas as regiões da Terra. Como contos da tradição oral, têm
em comum com os maravilhosos e os de fadas a antiguidade, comprovada pelas
inúmeras pesquisas de estudiosos no assunto, a falta de autor determinado, a
transmissão boca a boca através das gerações. O que os particulariza é a
intenção: sua finalidade principal não é divertir, é ensinar.
Atualmente, esses
contos (como todos da tradição oral) são, muitas vezes, classificados como
pertencentes à literatura infantil. Se os analisarmos com mais cuidado, veremos
que eles, em sua origem, eram destinados a ouvintes de todas as idades. Isso
fica fácil de entender quando lembramos que, antes do século XIX, não havia
essa divisão rígida que temos hoje em “mundo das crianças” e “mundo dos
adultos”, com os diferentes artigos de consumo (os materiais e os culturais)
divididos entre públicos bem definidos. Até essa época, em sociedades
ocidentais ou orientais, as crianças das classes populares não eram apartadas
dos adultos em situações de trabalho, diversão ou convívio familiar. É claro
que os mais velhos passavam ensinamentos tradicionais para os mais jovens, como
tendemos a fazer ainda hoje, mesmo que de modos diversos, mas a distância entre
gerações não era tão espacialmente determinada; o convívio entre velhos,
adultos e crianças era próximo, os nascimentos e as mortes não eram tratados de
forma “higienizada” como o são atualmente: nascimentos e mortes não são coisas
“da casa” são coisas do espaço hospitalar e subordinados ao cuidado médico. Os
acontecimentos da vida eram partilhados no convívio próximo e cotidiano.
Nesse ambiente
onde a maioria não tinha acesso à escolarização, a eletricidade chegava a
poucos lugares e ainda não tinha diminuído os mistérios da noite, e a internet
– nosso grande oráculo - não era sequer imaginada, a conversa era o meio mais
usual para o acesso aos conhecimentos acumulados. As reuniões nas famílias ou
em grupos sociais maiores, sempre eram animadas por contadores que guardavam na
memória as narrativas mais significativas para a transmissão da história e das
tradições de seu povo, entre eles os contos de ensinamento. Eram ocasiões de
grande envolvimento dos ouvintes, era nelas que se aprendia sobre a vida. E os
contos eram o instrumento, nesse momento eles ganhavam uma vida que não podemos
reviver pelas versões escritas. Como diz o historiador Robert Darton, um
estudioso do assunto, não há como recuperar os dispositivos gestuais e de
entonação usados na época por meio das frias páginas escritas.
Embora não
possamos recriá-los como eram, não deixam de ser, ainda hoje, encantadores e
poderosos, mesmo para os ouvintes adultos. Há contos de ensinamento originários
do mundo todo. São muito conhecidos aqueles que valorizam o esforço e a
esperteza dos fracos contra os fortes e poderosos (como Pequeno polegar,
João e Maria, O pequeno Alfaiate, João e o pé de feijão, Aladin
e a Lâmpada maravilhosa, etc.) e os que alertavam contra os perigos do
mundo (como Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul etc.).
Como todos os
demais contos da tradição oral, as versões que conhecemos hoje resultam da
passagem por diferentes países e são influenciadas por suas versões escritas.
Por conta de serem atualmente, tratadas como literatura infantil, e porque
vivemos a divisão da sociedade em adultos (que tudo podem ver e saber) e crianças
(cuja mente não pode ser contaminada pelas maldades do mundo), as versões mais
recentes são abrandadas, mais românticas, em relação às primeiras que foram
escritas e que, provavelmente, são mais próximas da tradição oral. As primeiras
versões escritas continuam influenciando, é claro, as atuais. São elas a de
Perrault, no século XVII, na França, a dos irmãos Grimm, no século XIX na
Alemanha e as de Andersen, também no século XIX, na Dinamarca. Além das
escritas, no século XX houve versões gravadas em discos e fitas e versões
cinematográficas.
Os contos de
ensinamento são um material rico que desperta o interesse dos estudiosos.
Podemos encontrar correntes diversas que revelam perspectivas de diferentes
campos de estudo:
• Há os que vêem
neles elementos psicológicos¹ revelados na simbologia que pode se atribuir aos
personagens, aos elementos da paisagem às cores etc., úteis na análise
psicanalítica.
• Existem os que
os estudam como documentos históricos² que revelam, de forma crua, fatos
realmente vividos e retratados nos contos como advertência e como indicação de
atitudes que devem ser tomadas como proteção à vida.
• Muitos foram
analisados pelas formas que tomaram quando foram utilizados como ensinamentos
filosóficos³, morais e religiosos.
Alguns povos ainda
muito ligados aos ensinamentos da tradição oral estão recolhendo, mais
recentemente, contos que ainda circulam oralmente para registrá-los por meio da
escrita. Veja alguns lançamentos editoriais recentes:
• Contos
recolhidos da tradição oral africana por Nelson Mandela, Meus contos africanos,
livro publicado no Brasil pela editora Martins Fontes;
• Contos recolhidos da tradição de povos indígenas brasileiros,
por Daniel Munduruku e Heloisa Prieto, Antologia de contos indígenas de
ensinamento, publicado pela editora Salamandra.
¹ Entre os estudiosos da psicologia que estudaram os símbolos
nos chamados contos de fadas estão Bruno Betelheim, de linha freudiana, autor
do conhecido Psicanálise dos contos de fadas, publicado pela editora Paz
e Terra, e Marie Louise Von Franz, de linha junguiana, autora de alguns livros
sobre o assunto, entre eles A interpretação do conto de fadas, publicado
pela editora Paulus.
² Entre os historiadores que estudaram os contos populares de
ensinamento está Robert Darton, que escreveu O grande massacre de gatos e
outros episódios da história cultural francesa, livro publicado pela
editora Graal.
³ Entre os contos de tradição filosófico-religiosa oriental
estão os do personagem Nasrudin. Veja um dos contos em http://www.releituras.com/nasrudin_menu.asp
Heloisa Amaral
http://escrevendo.cenpec.org.br
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