"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Os gêneros na perspectiva aristotélica

Os gêneros na perspectiva aristotélica
Platão e Aristóteles, na Grécia antiga (século III a.C.), já refletiam sobre as características dos textos literários e as funções que esses textos desempenhavam socialmente e, entre elas, destacavam o papel da literatura como imitação da realidade humana.
Da concepção clássica desses pensadores, surgiu uma divisão dos textos literários em três gêneros básicos, que imitariam a vida, diferenciando-se entre si pelos meios utilizados para realizar essa imitação. São eles os gêneros dramático, lírico e épico.
Atualmente, essa classificação é questionada por estudiosos, pois, com o passar do tempo, novos gêneros literários surgiram e gêneros literários antigos se renovaram. Vale a pena, no entanto, conhecê-la, pois ela serviu de base para os estudos posteriores sobre os gêneros literários.


Gênero dramático
O gênero dramático é representado essencialmente por textos teatrais e se subdivide em tragédia e comédia. De maneira resumida, pode-se considerar que essas duas formas de composição se diferenciam pelo tipo de ação praticada pelas personagens. As peças em que são retratadas personagens de caráter elevado, em comparação com o dos homens comuns, são classificadas como tragédias, enquanto aquelas em que são retratadas personagens de caráter inferior ao dos homens comuns, são classificadas como comédias.
Nas composições do gênero dramático, não há interferência de narrador. Assim, as personagens agem por elas mesmas, em uma imitação mais direta da realidade.
O texto a seguir é um trecho de Édipo rei, de Sófocles, uma das mais conhecidas peças dramáticas do teatro grego antigo.

[...]
O SACERDOTE Realmente, tu falas no momento oportuno, pois acabo de ouvir que Creonte está de volta.
ÉDIPO Ó rei Apolo! Tomara que ele nos traga um oráculo tão propício, quanto alegre se mostra sua fisionomia!
O SACERDOTE Com efeito, a resposta deve ser favorável; do contrário, ele não viria assim, com a cabeça coroada de louros.
ÉDIPO Vamos já saber; ei-lo que se aproxima, e já nos pode falar. Ó príncipe, meu cunhado, filho de Meneceu, que resposta do deus Apolo tu nos trazes?
Entra CREONTE
CREONTE Uma resposta favorável, pois acredito que mesmo as coisas desagradáveis, se delas nos resulta algum bem, tornam-se uma felicidade.
ÉDIPO Mas, afinal, em que consiste essa resposta? O que acabas de dizer não nos causa confiança, nem apreensão.
CREONTE (Indicando o povo ajoelhado.) Se queres ouvir-me na presença destes homens, eu falarei; mas estou pronto a entrar no palácio, se assim preferires.
ÉDIPO Fala perante todos eles; o seu sofrimento me causa maior desgosto do que se fosse meu, somente.
CREONTE Vou dizer, pois, o que ouvi da boca do deus. O rei Apolo ordena, expressamente, que purifiquemos esta terra da mancha que ela mantém; que não a deixemos agravar-se até tornar-se incurável.
ÉDIPO Mas por que meios devemos realizar essa purificação? De que mancha se trata?
CREONTE Urge expulsar o culpado, ou punir, com a morte, o assassino, pois o sangue maculou a cidade.
ÉDIPO De que homem se refere o oráculo à morte?
CREONTE Laio, o príncipe, reinou outrora neste país, antes que te tornasses nosso rei.
ÉDIPO Sim; muito ouvi falar nele, mas nunca o vi.
CREONTE Tendo sido morto o rei Laio, o deus agora exige que seja punido o seu assassino, seja quem for.
ÉDIPO Mas onde se encontra ele? Como descobrir o culpado de um crime tão antigo?
CREONTE Aqui mesmo, na cidade, afirmou o oráculo. Tudo o que se procura, será descoberto; e aquilo de que descuramos, nos escapa.
ÉDIPO fica pensativo por um momento
[...]

(Sófocles. Clássicos Jackson, v. XXII. Tradução de J. B. de Mello e Souza. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf. Acesso em: 3/5/2015.)

descuramos: descuidamos.




Gênero lírico
Nas composições do gênero lírico, não há personagens e o poeta se expressa na voz de um eu lírico que fala de suas emoções e impressões sobre o mundo. Em geral, essas composições exploram efeitos sonoros, tais como repetição, ritmo e a musicalidade das palavras.
No poema lírico abaixo, por exemplo, a repetição das palavras que e como no início de versos contribui para dar ritmo ao poema, enquanto a repetição do som /s/ confere musicalidade ao texto.


Que as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.
Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.
Que eu te devolva a fonte do meu primeiro grito.

(Hilda Hilst. Do desejo. São Paulo: Globo, 2004.)


pungente: tocante, comovente, emocionante.



Gênero épico
O gênero épico é representado por textos essencialmente narrativos. Entre os textos épicos, destacam-se as epopeias, nas quais há um narrador que conta grandes feitos de heróis em 3ª pessoa.
Pelo fato de apresentarem narrador, os textos épicos geralmente são mais extensos do que os dos gêneros lírico e dramático. Contam geralmente histórias que se passam em longos períodos de tempo e envolvem longas viagens, aventuras e guerras, nas quais sobressaem proezas vividas por um bravo herói, um povo ou uma nação.
O texto épico a seguir faz parte do Canto III de Os lusíadas, de Luís de Camões, obra que narra a heroica viagem de Vasco da Gama às Índias, bem como outros feitos heroicos da história do povo português.


Destarte o Mouro, atónito e torvado,
Toma sem tento as armas mui depressa;
Não foge, mas espera confiado,
E o ginete belígero arremessa.
O Português o encontra denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atravessa;
Uns caem meios mortos e outros vão
A ajuda convocando do Alcorão.
[...]
Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o cesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando;
Correm rios do sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi, de branco e verde.

(Saraiva: São Paulo, 2010. p. 77-8. Col. Clássicos Saraiva.)

carmesi: vermelho.
confiado: confiante.
denodado: valente.
desparzido: espalhado.
destarte: dessa forma.
ginete: cavaleiro.
nefando: degradado.
torvado: perturbado.


***

Nenhum comentário: