Saberes Necessários
à Prática Educativa
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Capítulo 1
Não há docência sem discência.
Devo deixar claro que,
embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me parecem
indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos,
progressistas, alguns deles são igualmente necessários a educadores
conservadores. São saberes demandados pela prática educativa em si mesma,
qualquer que seja a opção política do educador ou educadora.
Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor
ou leitora o exercício de perceber se este ou aquele saber referido corresponde
à natureza da prática progressista ou conservadora ou se, pelo contrário, é
exigência da prática educativa mesma independentemente de sua cor política ou ideológica.
Por outro lado, devo sublinhar que, de forma não-sistemática, tenho me referido
a alguns desses saberes em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é
legítimo acrescentar, da importância de uma reflexão como esta quando penso a
formação docente e a prática educativo-crítica.
O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns
saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibrar para
mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de
incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e
atraente. A prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns
daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire
cozinheiro. A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como
o do domínio do barco, das partes que o compõem e da função de cada uma delas,
como o conhecimento dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as
velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação entre motor e
velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses
saberes.
A reflexão crítica sobre a prática se torna uma
exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando bla-bla-blá
e a prática, ativismo.
O que me interessa agora, repito, é alinhar e
discutir alguns saberes fundamentais à prática educativo-crítica ou
progressista e que, por isso mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à organização
programática da formação docente. Conteúdos cuja compreensão, tão clara e tão lúcida
quanto possível, deve ser elaborada na prática formadora. É preciso, sobretudo,
e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio
mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da
produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção
ou a sua construção.
Se, na experiência de minha formação, que deve
ser permanente, começo por aceitar que o formador é o
sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os
conhecimentos e conteúdos acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim
transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu,
objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da
“formação” do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo contrário,
desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes
entre si, quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma
ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos,
conteúdos nem forrar é ação pela qual um sujeito criador dá forma,
estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência,
as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não
se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina, aprende ao ensinar,
e quem aprende, ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém.
Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo
transitivo-relativo.
Verbo que pede um objeto direto – alguma coisa – e um objeto indireto – a alguém. Do ponto de vista democrático em que me situo, mas também do ponto
de vista da radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha
compreensão do homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que
se funda a minha inteligência do processo de conhecer, ensinar é algo mais que
um verbo transitivo-relativo.
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi
aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que
era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos
tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar
maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras
palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. Não
temo dizer que inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em
que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que
o ensinado que não foi apreendido não pode ser realmente aprendido pelo
aprendiz.
Quando vivemos a autenticidade exigida pela
prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva,
política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a
boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade.
Às vezes, nos meus silêncios em que
aparentemente me perco, desligado, flutuando quase, penso na importância
singular que vem sendo para mulheres e homens sermos ou nos termos tornado, como
constata François Jacob, “seres programados, mas, para aprender”*. É que o
processo de aprender, em que historicamente descobrimos que era possível
ensinar como tarefa não apenas embutida no aprender, mas perfilada em si, com relação
a aprender, é um processo que pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade
crescente, que pode torná-la mais e mais criador. O que quero dizer é o
seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais
se constrói e desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”**,
sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto.
É isto que nos leva, de um lado, à crítica e à
recusa ao ensino “bancário”***, de outro, a compreender que, apesar dele, o
educando a ele submetido não está fadado a fenecer; em que pese o ensino "bancário”,
que deforma a necessária criatividade do educando e do educador, o educando a
ele sujeitado pode, não por causa do conteúdo cujo “conhecimento” lhe foi
transferido, mas por causa do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na
linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro
epistemológico do “bancarismo”.
O necessário é que, subordinado, embora, à
prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que,
aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de
aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apassivador do
"bancarismo". Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem
parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade
não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar.
Esta é uma das significativas vantagens dos
seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus
condicionantes. Isto não significa, porém, que nos seja indiferente ser um educador
“bancário” ou um educador “problematizador”.
1.1 – Ensinar exige rigorosidade metódica
O educador democrático não pode negar-se o dever
de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua
curiosidade, sua insubmissão. Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com
os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos
cognoscíveis. E esta rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso “bancário”
meramente transferidor do perfil do objeto ou do conteúdo. É exatamente neste
sentido que ensinar não se esgota no “tratamento” do objeto ou do conteúdo,
superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender
criticamente é possível. E essas condições implicam ou exigem a presença de
educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente
curiosos, humildes e persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente
é possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou
continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem
a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas
condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais
sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do
educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de
saber ensinado, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto,
aprendido pelos educandos.
* Jacob, François. Nous Sommes
Programmés, mais pour apprendre. Le Courrier, UNESCO, fevereiro,
1991.
* * FREIRE, Paulo. À sombra desta
mangueira. São Paulo, Olho d’água, 1995.
*** FREIRE, Paulo. Pedagogia do
Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Percebe-se, assim, a importância do papel do
educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa
docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo. Daí
a impossibilidade de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador,
é muito mais um repetidor cadenciado de frases e de ideias inertes do que um desafiador.
O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto,
temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse
recitando-as de memória – não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação
entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu
bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala
bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os
livros todos a cuja leitura dedica tempo farto nada devessem ter com a
realidade de seu mundo. A realidade com que eles têm que ver é a realidade
idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um dado aí, desconectado
do concreto.
Não se lê criticamente como se fazê-lo fosse a
mesma coisa que comprar mercadoria por atacado.
Ler vinte livros, trinta livros. A leitura
verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou
e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito.
Ao ler não me acho no puro encalço da
inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua
autora. Esta forma viciada de ler não tem nada que ver, por isso mesmo, com o
pensar certo e com o ensinar certo.
Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às
vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições
necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas.
Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante
do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece
inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de
si mesmo.
O professor que pensa certo deixa transparecer
aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o
mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer
o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade.
Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho
e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã*. Daí que seja tão
fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos
e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e
pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se
ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a
produção do conhecimento ainda não existente. A "do-discência” –
docência-discência – e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas
requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico.
1.2 – Ensinar exige pesquisa
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem
ensino**. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino
continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque
indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho,
intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e
comunicar ou anunciar a novidade.
Pensar certo, em termos críticos, é uma
exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que,
tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para o
que venho chamando “curiosidade epistemológica”. A curiosidade ingênua, do que
resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente
desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência
feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito
ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o
estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora
com a consciência crítica do educando cuja “promoção” da ingenuidade não se faz
automaticamente.
* A esse propósito, Ver Vieira Pinto Álvaro, Ciência e Existência. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1969.
* * Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No
meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma
forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza
da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que,
em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque
professor, como pesquisador.
1.3 – Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos.
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor
ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que
os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes
socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de
trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns
desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a
experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo
poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos
e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que
oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos
e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada
em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de
subversivo, dizem certos defensores da democracia.
Por que não discutir com os alunos a realidade
concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a
realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas
é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma
necessária “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e
a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as
implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas
áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?
Porque, dirá um educador reacionariamente
pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela
tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos.
Aprendidos, estes operam por si mesmos.
1.4 – Ensinar exige criticidade
Não há para mim, na diferença e na “distância”
entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e
o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma
superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua,
sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade,
se criticiza.
Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me
repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente “rigorizando-se” na sua
aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.
Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”,
está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que,
criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa
do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Iluda de qualidade,
mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo
de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da
violência das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou
menos espancada diante de “não-eus”, com que cientistas ou filósofos acadêmicos
“admiram” o mundo. Os cientistas e os filósofos superam, porém, a ingenuidade
da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos.
A curiosidade como inquietação indagadora, como
inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como
procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte
integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que
nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não
fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.
Como manifestação presente à experiência vital,
a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e
reconstruída. Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade
não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista
é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil.
Curiosidade com que podemos nos defender de
“irracionalismos” decorrentes ou produzidos por certo excesso de “racionalidade”
de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração de quem, de
um lado, não diviniza a tecnologia, mas de outro a diaboliza. De quem a olha ou
mesmo a espreita de forma criticamente curiosa.
1.5 – Ensinar exige estética e ética.
A necessária promoção da ingenuidade à
criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação
ética ao lado sempre da estética. Decência boniteza de mãos dadas.
Cada vez me convenço mais de que, desperta com
relação à possibilidade de enveredar-se no descaminho do puritanismo, a prática
educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência e de pureza.
Uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos tentados, às vezes ou
quase sempre, a deixar as dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos
colocar.
Muheres e homens, seres histórico-sociais, nos
tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir,
de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos
sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres
humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior,
fora da ética, entre nós, mulheres e homens é uma transgressão. É por isso que
transformar a experiência em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de
fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se
respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio
à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Divinizar ou
diabolizar a tecnologia* ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa
de pensar errado. De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a
verdade, rotundo desacerto. Pensar certo, pelo contrário, demanda profundidade
e não superficialidade na compreensão e interpretação dos fatos. Supõe a
disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de
mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-la. Mas como não há pensar
certo à margem de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito,
cabe a quem muda – exige o pensar certo – que assuma a mudança operada. Do
ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou.
É que todo pensar certo é radicalmente coerente.
1.6 – Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo.
O professor que realmente ensina, quer dizer,
que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como
falsa, a fórmula farisaica do “faça o que mando e não o que eu faço”.
Quem pensa certo está cansado de saber que as
palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem.
Pensar certo é fazer certo.
Que podem pensar alunos sérios de um professor
que, há dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela
autonomia das classes populares e hoje, dizendo que não mudou, faz o discurso
pragmático contra os sonhos e pratica a transferência de saber do professor
para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a
formação da classe trabalhadora e que, pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao
fatalismo neoliberal, com o puro treinamento do operário, insistindo, porém,
que é progressista?
Não há pensar certo fora de uma prática
testemunhal que o rediz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor
pensar que pensa certo, mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se “sabe com quem
está falando”.
O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente
a segurança na argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem
por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, às
vezes, do que a razão mesma da discordância. Uma dessas pessoas desmedidamente
raivosas proibiu certa vez estudante que trabalhava dissertação sobre alfabetização
e cidadania que me lesse. “Já era”, disse com ares de quem trata com rigor e neutralidade
o objeto, que era eu. “Qualquer leitura que você faça deste senhor pode prejudica-la”.
Não é assim que se pensa certo nem é assim que
se ensina certo**. Faz parte do pensar certo o gosto da generosidade que, não
negando a quem o tem o direito à raiva, a distingue da raivosidade irrefreada.
* A este propósito ver Postman,
Neil. Technopoly
- The Surrender of Culture to Technology, Nova York, Alfred A. Knopf, 1992
* * Ver FREIRE, Paulo, Cartas a Cristina. Paz e Terra, 1995, Décima Sexta Carta, p. 207.
1.7 – Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer
forma de discriminação.
É próprio do pensar certo a disponibilidade ao
risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é
novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho
que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no
tempo continua novo.
Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição
mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de
raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega
radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a
impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam
por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as
mulheres. Quão ausentes da democracia se acham os que queimam igrejas de negros
porque, certamente, negros não têm alma. Negros não rezam. Com sua negritude,
os negros sujam a branquitude das orações... A mim me dá pena e não raiva,
quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedades em que se faz
isso, em que se queimam igrejas de negros, se apresenta ao mundo como pedagoga
da democracia. Pensar e fazer errado, pelo visto, não têm mesmo nada que ver com
a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver com o bom senso que
regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a
insensatez.
Às vezes, temo que algum leitor ou leitora,
mesmo que ainda não totalmente convertido ao “pragmatismo” neoliberal mas por
ele já tocado, diga que, sonhador, continuo a falar de uma educação de anjos e
não de mulheres e de homens. O que tenho dito até agora, porém, diz respeito
radicalmente à natureza de mulheres e de homens. Natureza entendida como social
e historicamente constituindo-se e não como um “a priori” da História*.
O problema que se coloca para mim é que,
compreendendo como compreendo a natureza humana, seria uma contradição
grosseira não defender o que venho defendendo. Faz parte da exigência que a mim
mesmo me faço de pensar certo, pensar como venho pensando enquanto escrevo este
texto.
Pensar, por exemplo, que o pensar certo a ser
ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar
formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido
é que ensinar a pensar certo não é uma experiência em que ele – o pensar certo
– é tomado em si mesmo e dele se fala ou uma prática que puramente se descreve,
mas algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do
testemunho. Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados
por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. Pensar
certo não é que – fazer de quem se isola, de quem se “aconchega” a si mesmo na
solidão, mas um ato comunicante. Não há por isso mesmo pensar sem entendimento
e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferido, mas
co-participado. Se, do ângulo da gramática, o verbo entender é transitivo no
que concerne à “sintaxe” do pensar certo ele é um verbo cujo sujeito é sempre
co-partícipe de outro. Todo entendimento, se não se acha “trabalhado”
mecanicistamente, se não vem sendo submetido aos “cuidados” alienadores de um tipo
especial e cada vez mais ameaçadoramente comum de mente que venho chamando "burocratizada”,
implica, necessariamente, comunicabilidade.
Não há inteligência – a não ser quando o próprio
processo de inteligir é distorcido – que não seja também comunicação do inteligido. A grande tarefa do sujeito que
pensa certo não é transferir, depositar,
oferecer, doar ao outro, tomado como
paciente de seu pensar, a intelegibilidade das coisas, dos fatos, dos
conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser
humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se
comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo
comunicado. Não há intelegibilidade que não seja comunicação e intercomunicação
e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não
polêmico.
1.8 – Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática.
O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a
partir dele como um dado, que se conforma a prática docente crítica, mas sabe
também que sem ele não se funda aquela. A prática docente crítica, implicante
do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar
sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”,
indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a
que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do
sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por
isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador
assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha
nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do
poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser
produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. E
preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do
crítico é a curiosidade mesma, característica do fenômeno vital. Neste
sentido, indubitavelmente, é tão curioso o professor chamado leigo no interior
de Pernambuco quanto o professor de Filosofia da Educação na Universidade A ou
B. O de que se precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através
da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se
vá tornando crítica.
Por isso é que, na formação permanente dos
professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É
pensando criticamente a prática de ou de ontem que se pode melhorar a próxima
prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de
tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu “distanciamento” epistemológico
da prática enquanto objeto de sua análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo.
* Freire, Paulo, Pedagogia da Esperança. Paz e Terra, 1994.
Quanto melhor faça esta operação tanto mais
inteligência ganha da prática em análise e maior comunicabilidade exerce em
torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, quanto
mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou
sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado
de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Não é possível a
assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a
disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente
sujeito também.
Seria porém exagero idealista, afirmar que a
assunção, por exemplo, de que fumar ameaça minha vida, já significa deixar de
fumar. Mas deixar de fumar passa, em algum sentido, pela assunção do risco que
corro ao fumar. Por outro lado, a assunção se vai fazendo cada vez mais assunção
na medida em que ela engendra novas opções, por isso mesmo em que ela provoca ruptura,
decisão e novos compromissos. Quando assumo o mal ou os males que o cigarro me pode
causar, movo-me no sentido de evitar os males. Decido, rompo, opto. Mas, é na
prática de não fumar que a assunção do risco que corro por fumar se concretiza
materialmente.
Me parece que há ainda um elemento fundamental
na assunção de que falo: o emocional. Além do conhecimento que tenho do mal que
o fumo me faz, tenho agora, na assunção que dele faço, legítima raiva do fumo.
E tenho também a alegria de ter tido a raiva que, no fundo, ajudou que eu
continuasse no mundo por mais tempo. Está errada a educação que não reconhece
na justa raiva,* na raiva que protesta contra as injustiças, contra a
deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel
altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a
confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade.
1.9 – Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade
cultural.
É interessante estender mais um pouco a reflexão
sobre a assunção. O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como
objeto o próprio sujeito que assim se assume. Eu tanto assumo o risco que corro
ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção. Deixemos claro
que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar
ameaça minha vida, com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento
cabal que obtive do fumar e de suas consequências. Outro sentido mais radical
tem a assunção ou assumir quando digo: Uma das tarefas mais importantes da
prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas
relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a
experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico,
como ser pensante, comunicante, * A de Cristo contra os vendilhões do Templo. A
dos progressistas contra os inimigos da reforma agrária, a dos ofendidos contra
a violência de toda discriminação, de classe, de raça, de gênero.
A dos injustiçados contra a impunidade. A de
quem tem fome contra a forma luxuriosa com que alguns, mais do que comem,
esbanjam e transformam a vida num desfrute.
A de transformador, criador, realizador de
sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque
capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a
exclusão dos outros. É a “outredade" do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.
A questão da identidade cultural, de que fazem
parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é
absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não
pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. É isto que o puro
treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática
visão do processo.
A experiência histórica, política, cultural e
social os homens e das mulheres jamais pode se dar “virgem” do conflito entre
'as forças que obstaculizam a busca da assunção de si por
parte dos indivíduos e dos grupos e das forças que trabalham em favor daquela
assunção. A formação docente que se julgue superior a essas “intrigas” não faz
outra coisa senão trabalhar em favor dos obstáculos. A solidariedade social e
política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos
arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma
prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado.
Às vezes, mal se imagina o que pode passar a
representar na vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode um
gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como
contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na história já longa
de minha memória, de um desses gestos de professor que tive na adolescência
remota. Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado despercebida
por ele, o professor, e que teve importante influência sobre mim. Estava sendo,
ermo, um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo anguloso e feio,
percebendo-me menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas
possibilidades. Era muito mais mal-humorado que apaziguado com a vida.
Facilmente me eriçava.
Qualquer consideração feita por um colega rico
da classe já me parecia o chamamento à atenção de minhas fragilidades, de minha
insegurança.
O professor trouxera de casa os nossos trabalhos
escolares e, chamando-nos um a um, devolvia-os com o seu ajuizamento. Em certo
momento me chama e, olhando ou re-olhando o meu texto, sem dizer palavra,
balança a cabeça numa demonstração de respeito e de consideração. O gesto do
professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação. O
gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que
era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim, mas que
seria tão errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não
confiar. A melhor prova da importância daquele gesto é que dele falo agora como
se tivesse sido testemunhado hoje. E faz, na verdade, muito tempo que ele ocorreu...
Este saber, o da importância desses gestos que
se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre que
teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter socializante da
escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou
deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos
conteúdos, ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do
saber. Creio que uma das razões que explicam este descaso em torno do que
ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo
uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. No fundo, passa
despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens,
historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se estivesse claro para nós
que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com
facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no
trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios*, em que* Esta
é uma preocupação fundamental da equipe coordenada pelo professor Miguel Arroio
e que vem propondo ao país, em Belo Horizonte, uma das melhores reinvenções da
escola. É uma lástima que não tenha havido ainda uma emissora de TV que se
dedicasse a mostrar experiências como a de Belo Horizonte, a de Uberaba, a de
Porto Alegre, a do Recife e de tantas outras espalhadas pelo Brasil. Que se propusesse
revelar práticas criadoras de gente que se arrisca, vividas em escolas variados
gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam
cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente
relegados das escolas.
Em A Educação na cidade* chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que
a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São
Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis
impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me
perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às
carteiras escolares, à mesas, às paredes se o Poder Público revela absoluta
desconsideração à coisa pública? É incrível que não imaginemos a significação do
“discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloquência
do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na
higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade
indiscutível na materialidade do espaço.
Pormenores assim da cotidianeidade do professor,
portanto igualmente do aluno, a que quase sempre pouca ou nenhuma atenção se
dá, têm na verdade um peso significativo na avaliação da experiência docente. O
que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou
aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança
a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem.
Nenhuma formação docente verdadeira pode
fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criticidade que implica a
promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro, sem o
reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da
intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, mas tem algo que
ver, de vez em quando, com adivinhar, com intuir. O importante, não resta
dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetê-las à
análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica* privadas ou
públicas. Programa que poderia chamar-se mudar é difícil, mas é possível. No
fundo, um dos saberes fundamentais à prática educativa.
* Não é possível também formação docente indiferente
à boniteza e à decência que estar no mundo, com o mundo e com os outros,
substantivamente, exige de nós. Não há prática docente verdadeira que não seja
ela mesma um ensaio estético e ético, permita-se-me a repetição.
Capítulo 2
Ensinar não é transferir
conhecimento
As considerações ou reflexões até agora feitas
vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmente apontado como
necessário à formação docente, numa perspectiva progressista.
Saber que ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua
construção. Quando entro em uma sala de
aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas
dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da
tarefa que tenho – a de ensinar e não a
de transferir conhecimento.
É preciso insistir: este saber necessário ao
professor – que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa de
ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica,
política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa de ser constantemente
testemunhado, vivido.
Como professor num curso de formação docente não
posso esgotar minha prática discursando sobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito
sobre as razões ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu
discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua
encarnação. Ao falar da construção do
conhecimento, criticando a sua extensão, já devo
estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos.
Fora disso, me emaranho na rede das contradições
em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia.
Me torno tão falso quanto quem pretende
estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão
fingido quanto quem diz combater o racismo mas, perguntado se conhece Madalena,
diz:
“Conheço-a. É negra, mas é competente e decente.” Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia,
que ela é loura, de olhos azuis, mas é competente e decente. No
discurso perfilador de Madalena, negra, cabe a conjunção adversativa mas; no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção
adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças
entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque recuso o silêncio, o de adversidade, tentaram dominá-la mas não conseguiram, o de finalidade, Pedro lutou para que ficasse
clara a sua posição, o de integração, Pedro
sabia que ela voltaria, não é suficiente para explicar o
uso da adversativa mas na relação entre a sentença Madalena é negra e
Madalena é competente e decente. A conjunção mas aí, implica um juízo falso,
ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja competente nem
decente. Ao reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou indispensável.
No caso de Célia, é um disparate que, sendo
loura de olhos azuis não seja competente e decente.
Daí o não-senso da adversativa. A razão é
ideológica e não gramatical.
Pensar certo – e saber que ensinar não é
transferir conhecimento é fundamentalmente pensar certo – é uma postura
exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com
os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, não porque
pensar certo seja forma própria de pensar de santos e de anjos e a que nós
arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância
constante que temor de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos as
facilidades, as incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o
valor indispensável para não permitir que a raiva que podemos ter de alguém
vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por mais que me desagrade
uma pessoa não posso menosprezá-la com um discurso em que, cheio de mim mesmo,
decreto sua incompetência absoluta. Discurso em que, cheio de mim mesmo trato-a
com desdém, do alto de minha falsa superioridade. A mim não me dá raiva mas
pena quando pessoas assim raivosas, arvoradas em figuras de gênio, me minimizam
e destratam.
É cansativo, por exemplo, viver a humildade,
condição “sine qua” do pensar certo, que nos faz proclamar o nosso próprio
equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos.
O clima do pensar certo não tem nada que ver com
o das fórmulas preestabelecidas, mas seria a negação do pensar certo se
pretendêssemos forjá-lo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo. Sem
rigorosidade metódica não há pensar cerco.
2.1 – Ensinar exige consciência do inacabamento.
Como professor crítico, sou um “aventureiro”
responsável, predisposto à mudança, à aceitação do diferente. Nada do que
experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetir-se.
Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo.
Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira
radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e
consciente do inacabamento.
Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos
ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser
ou sua inconclusão é próprio da experiência vital.
Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre
mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente. A invenção da existência
a partir dos materiais que a vida oferecia levou homens e mulheres a promover o
suporte em que os outros animais continuam, em mundo. Seu mundo, mundo dos homens e das mulheres. A experiência humana
no mundo muda de qualidade com relação à vida animal no suporte. O suporte é o espaço, restrito ou
alongado, que o animal se prende “afetivamente” tanto quanto para, resistir; e
o espaço necessário a seu crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em
que, treinado, adestrado, “aprende” a sobreviver, a caçar, a atacar, a
defender-se nutri tempo de dependência dos adultos imensamente menor do que é
necessário ao ser humano para as mesmas coisas. Quanto mais cultural é o ser
maior a sua infância, sua dependência de cuidados especiais. Faltam ao “movimento”
dos outros animais no suporte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do
próprio suporte de que resultaria inevitavelmente a
comunicabilidade do inteligido, o espanto diante da vida mesma, do que há nela
de mistério. No suporte, os comportamentos dos indivíduos têm sua explicação
muito mais na espécie a que pertencem os indivíduos do que neles mesmos.
Falta-lhes liberdade de opção. Por isso, não se fala em ética entre os
elefantes.
A vida no suporte não implica a linguagem nem
a postura erecta que permitiu a liberação das mãos*.
Mãos que, em grande medida, nos fizeram. Quanto
maior se foi tornando a solidariedade entre mente e mãos, tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida, existência. O suporte veio fazendo-se mundo e a vida, existêmia, na proporção que o corpo humano vira corpo
consciente, captador, apreendedor, transformador, criador de beleza e não
“espaço” vazio a ser enchido por conteúdos.
A invenção da existência envolve,
repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis
mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a “espiritualização” do mundo, a possibilidade de embelezar como
de enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos.
Capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper,
de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes
também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornaram
éticos podem romper com a ética. Não se sabe de leões que covardemente tenham assassinado
leões do mesmo ou de outro grupo familiar e depois tenham visitado os
“familiares” para levar-lhes sua solidariedade. Não se sabe de tigres africanos
que tenham jogado bombas altamente destruidoras em “cidades” de tigres
asiáticos.
No momento em que os seres humanos, intervindo
no suporte, foram criando o mundo, inventando a linguagem com que passaram a dar nome às coisas que
faziam com a ação sobre o mundo, na medida em que se foram habilitando a
inteligir o mundo e criaram por consequências a necessária comunicabilidade do
inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão
radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade,
entre a decência e o despudor, entre a boniteza e s feiúra do mundo. Quer
dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, dr
lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da
prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos
traz de novo à radicalidade da esperança. Sei que
as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las.
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não
está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que
testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei
os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença
no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque
sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que
o meu “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja
responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em
que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de
possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.
* Ver: The Cambridge Encyclopedia
of Language. Crystal, Davi', Cambridge, Cambridge University Press, 1987.
2.2 – Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado
Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que
sou um ser condicionado, mas consciente do inacabamento, sei que posso ir mais
além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser
determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado
que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado.
Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha
presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das
forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo
geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver
comigo mesmo. Seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse
já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da
própria presença. Não posso me perceber como uma presença no mundo, mas ao
mesmo tempo, explicá-la como resultado de operações absolutamente alheias a
mim. Neste caso o que faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica,
política e social que a promoção do suporte ao mundo nos coloca. Renuncio a participar a cumprir a
vocação ontológica de intervir o mundo. O fato de me perceber no mundo, com o
mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem
nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele
se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser
apenas objeto, mas sujeito também da História.
Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as
condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas
em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o
cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos
não se eternizam.
Nos anos 60, preocupado já com esses obstáculos,
apelei para a conscientização não como panaceia, mas como um esforço de
conhecimento crítico dos obstáculos, vale dizer, de suas razões de ser. Contra
toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto
hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Insisto na sua
atualização.
Na verdade, enquanto aprofundamento da “prise de
conscience” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é
exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade
epistemológica. Em lugar de estranha, a
conscientização é natural ao ser que, inacabado, se sabe inacabado. A
questão substantiva não está por isso no puro inacabamento ou na pura
inconclusão. A inconclusão, repito, faz parte da natureza do fenômeno vital.
Inconclusos somos nós, mulheres e homens, mas inconclusos são também as
jaboticabeiras que enchem, na safra, o meu quintal de pássaros cantadores;
inconclusos são estes pássaros como inconcluso é Eico, meu pastor alemão, que
me "saúda” contente no começo das manhãs.
Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se
sabe como tal. Mais ainda, a inconclusão que se reconhece a si mesma, implica
necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social
de busca. Histórico-sócio-culturais, mulheres e homens nos tornamos seres em
quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio
vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade
é já conhecimento.
Como a linguagem que anima a curiosidade e com
ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele.
Numa madrugada, há alguns meses, estávamos Nita
e eu, cansados, na sala de embarque de um aeroporto do Norte do país, à espera
da partida para São Paulo num desses voos madrugadores que a sabedoria popular
chama "voo coruja”. Cansados e realmente arrependidos de não haver mudado
o esquema de voo. Uma criança em tenra idade, saltitante e alegre, nos fez,
finalmente, ficar contentes, apesar da hora para nós inconveniente.
Um avião chega. Curiosa a criança inclina a
cabeça na busca de selecionar o som dos motores. Volta-se para a mãe e diz: “O
avião ainda chegou.” Sem comentar, a mãe atesta: “O avião já
chegou.” Silêncio. A criança corre até o extremo da sala e volta. “O avião já
chegou”, diz. O discurso da criança, que envolvia a sua posição curiosa em face
do que ocorria, afirmava primeiro o conhecimento da ação
de chegar do avião, segundo o conhecimento da temporalização da ação no
advérbio já. O discurso da criança era conhecimento do ponto de vista do fato
concreto: o avião chegou e era conhecimento do ponto de vista da criança
que, entre outras coisas, Fizera o domínio da circunstância adverbial de tempo,
no já.
Voltemos um pouco à nossa reflexão anterior. A
consciência do inacabamento entre nós, mulheres e homens, nos fez seres
responsáveis, daí a eticidade de nossa presença no mundo.
Eticidade, que não há dúvida, podemos trair. O
mundo da cultura que se alonga em mundo da história é um mundo de liberdade, de
opção, de decisão, mundo de possibilidade em que a decência pode ser negada, a
liberdade ofendida e recusada. Por isso mesmo a capacitação de mulheres e de
homens em torno de sabereis instrumentais jamais pode prescindir de sua formação
ética. A radicalidade desta exigência é tal que não deveríamos necessitar
sequer de insistir na formação ética do ser ao falar de sua preparação técnica
e científica. É fundamental insistirmos nela precisamente porque, inacabados,
mas conscientes do inacabamento, seres da opção, da decisão, éticos, podemos
negar ou trair a própria ética. O educador que, ensinando geografia, “castra” a
curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização mecânica do ensino
dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se.
Não forma, domestica. Tal qual quem assume a ideologia fatalista embutida no
discurso neoliberal, de vez em quando criticada neste texto, e aplicada
preponderantemente às situações em que o paciente são as classes populares.
“Não há o que fazer, o desemprego é uma fatalidade do fim do século.”
A “andarilhagem” gulosa dos trilhões de dólares
que, no mercado financeiro, “voam” de um lugar a outro com a rapidez dos faxes,
à procura insaciável de mais lucro, não é tratada como fatalidade. Não são as classes populares os objetos
imediatos de sua malvadez. Fala-se, por isso mesmo, da necessidade de
disciplinar a “andarilhagem” dos dólares.
No caso da reforma agrária entre nós, a
disciplina de que se precisa, segundo os donos do mundo, é a que amacie, a
custo de qualquer meio, os turbulentos e arruaceiros "sem-terra”. A
reforma agrária tampouco vira fatalidade. Sua necessidade é uma invencionice
absurda de falsos brasileiros, proclamam os cobiçosos senhores das terras.
Continuemos a pensar um pouco sobre a inconclusão
do ser que se sabe inconcluso, não a inconclusão pura, em si, do ser que, no suporte, não se tornou capaz de reconhecer-se interminado.
A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente
inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de
busca. Na verdade, seria uma contradição se, inacabado e consciente do
inacabamento, o ser humano não se inserisse em tal movimento. É neste sentido
que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com
o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser
feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem
sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas,
sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o
mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem
aprender, sem ensinar, sem ideias de formação, sem politizar não é possível.
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal,
que se funda a educação como processo permanente.
Mulheres e homens se tornaram educáveis na
medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e
homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade.
É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no
movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”,
disse certa vez por pura teimosia, mas por exigência ontológica*.
Este é um saber fundante da nossa prática
educativa, da formação docente, o da nossa inconclusão assumida. O ideal é que,
na experiência educativa, educandos, educadoras e educadores, juntos, “convivam”
de tal maneira com este como com outros saberes de que falarei que eles vão virando
sabedoria. Algo que não é estranho a educadoras e
educadores. Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não tenho dúvida
nenhuma de que, inacabados e conscientes de inacabamento, abertos à procura,
curiosos, “programados, mas para, aprender”,** exercitaremos tanto mais e
melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não
puros objetos do processo nos façamos.
2.3 – Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando.
Outro saber necessário à prática educativa, e
que se funda na mesma raiz que acabo de discutir – a da inconclusão do ser que
se sabe inconcluso –, é o que fala do
respeito devido à autonomia do ser do educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como
educador, devo estar constantemente advertido com relação a este respeito que
implica igualmente o que devo ter por mim mesmo.
* Ver Freire, Paulo. Pedagogia da
esperança, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994. Ver Freire, Paulo.
À sombra desta mangueira, São Paulo. Olho d'Água, 1990).
** François Jacob.
Não faz mal repetir afirmação várias vezes feita
neste texto – o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres
éticos. O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e
não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque
éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua
negação, por isso é imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio
ético não pode receber outra designação senão a de transgressão. O professor que desrespeita a curiosidade do
educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais
precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno,
que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal
de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento
de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar,
de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando,
transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. É neste
sentido que o professor autoritário, que por isso mesmo afoga a liberdade do
educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto, tanto
quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano – a de sua
inconclusão assumida em que se enraíza a eticidade. É neste sentido também que
a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na
diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente
exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam
radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade
jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a
decência. O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista,
racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza
humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas
ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre a negritude,
dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer
discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça
a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se acha,
entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que
devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática
em tudo coerente com este saber.
2.4 – Ensinar exige bom senso.
A vigilância do meu bom senso tem uma
importância enorme na avaliação que, a todo instante, devo fazer de minha
prática. Antes, por exemplo, de qualquer reflexão mais detida e rigorosa é o meu
bom senso que me diz ser tão negativo, do ponto de vista de minha tarefa
docente, o formalismo insensível que me faz recusar o trabalho de um aluno por
perda de prazo, apesar das explicações convincentes do aluno, quanto o
desrespeito pleno pelos princípios reguladores da entrega dos trabalhos. É o
meu bom senso que me adverte de que exercer a minha autoridade de professor na
classe, tomando decisões, orientando atividades, estabelecendo tarefas,
cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de autoritarismo
de minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever. Não resolvemos bem,
ainda, entre nós, a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos coloca e
confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo, licença com liberdade.
Não preciso de um professor de ética para me
dizer que não posso, como orientador de dissertação de mestrado ou de tese de
doutoramento, surpreender o pós-graduando com críticas duras a seu trabalho
porque um dos examinadores foi severo em sua arguição. Se isto ocorre e eu concordo
com as críticas feitas pelo professor não há outro caminho senão solidarizar-me
de público com o orientando, dividindo com ele a responsabilidade do equívoco
ou do erro criticado*. Não preciso de um professor de ética para me dizer isto.
Meu bom senso me diz.
Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade
e à identidade do educando e, na prática, procurar a coerência com este saber,
me leva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as
quais aquele saber vira inautêntico, palavreado vazio e inoperante.** De nada serve,
a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do
educador, falar em democracia e liberdade, mas impor ao educando a vontade
arrogante do mestre.
* Ver Freire, Paulo. Cartas à Cristina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
* * Ver Freire, Paulo. Professora Sim, Tia,
Não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho d'Água,
1995.
O exercício do bom senso, com o qual só temos o
que ganhar, se faz no “corpo” da curiosidade.
Neste sentido, quanto mais pomos em prática de
forma metódica a nossa capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de
aferir, tanto mais eficazmente curiosos nós podemos tornar e mais crítico se
pode fazer o nosso bom senso. O exercício ou a educação do bom senso vai
superando o que há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos fatos e dos
acontecimentos em que nos envolvemos. Se o bom senso, na avaliação moral que
faço de algo, não basta para orientar ou fundar minhas táticas de luta, tem,
indiscutivelmente, importante papel na minha tomada de posição, a que não pode
faltar a ética, em face do que devo fazer.
O meu bom senso me diz, por exemplo, que é
imoral afirmar que a fome e a miséria a que se acham expostos milhões de
brasileiras e de brasileiros são uma fatalidade em face de que só há uma coisa
a fazer: esperar pacientemente que a realidade mude. O meu bom senso diz que
isso é imoral e exige de minha rigorosidade científica a afirmação de que é
possível mudar com a disciplina da gulodice da minoria insaciável.
O meu bom senso me adverte de que há algo a ser
compreendido no comportamento de Pedrinho, silencioso, assustado, distante,
temeroso, escondendo-se de si mesmo. O bom senso me faz ver que o problema não
está nos outros meninos, na sua inquietação, no seu alvoroço, na sua vitalidade.
O meu bom senso não me diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser
sabido. Esta é a tarefa da ciência que, sem o bom senso do cientista, pode se
desviar e se perder.
Não tenho dúvida do insucesso do cientista a
quem falte a capacidade de adivinhar, o sentido da desconfiança, a abertura à
dúvida, a inquietação de quem não se acha demasiado certo das certezas. Tenho
pena e, às vezes, medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade
e que não suspeita sequer da historicidade do próprio saber.
É o meu bom senso, em primeiro lugar, o que me
deixa suspeitoso, no mínimo, de que não é possível à escola, se, na verdade,
engajada na formação de educandos educadores, alhear-se das condições sociais
culturais, econômicas de seus alunos, de suas famílias, de seus vizinhos.
Não é possível respeito aos educandos, à sua
dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se levam
em consideração as condições em que eles vêm existindo, se não se reconhece a
importância dos “conhecimentos de experiência feitos” com que chegam à escola.
O respeito devido à dignidade do educando não me
permite subestimar, pior ainda, zombar do saber que ele traz consigo para a
escola.
Quanto mais me torno rigoroso na minha prática
de conhecer tanto mais, porque crítico, respeito devo guardar pelo saber
ingênuo a ser superado pelo saber produzido através do exercício da curiosidade
epistemológica.
Ao pensar sobre o dever que tenho, como
professor, de respeitar a dignidade do educando, sua autonomia, sua identidade
em processo, devo pensar também, como já salientei, em como ter uma prática
educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em
lugar de ser negado. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre
minha prática através da qual vou fazendo a avaliação do meu próprio fazer com
os educandos. O ideal é que, cedo ou tarde, se invente uma forma pela qual os
educandos possam participar da avaliação. É que o trabalho do professor é o
trabalho do professor com os alunos e não do professor consigo mesmo.
Esta avaliação crítica da prática vai revelando
a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades sem as quais não é
possível nem ela, a avaliação, nem tampouco o respeito do educando.
Estas qualidades ou estas virtudes absolutamente
indispensáveis à posta em prática deste outro saber fundamental à experiência
educativa – saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do
educando – não são regalos que recebemos por bom comportamento. As qualidades
ou virtudes são construídas por nós no esforço que nos impomos para diminuir a distância
entre o que dizemos e o que fazemos. Este esforço, o de diminuir a distância
entre o discurso e a prática, é já uma dessas virtudes indispensáveis – a da
coerência. Como, na verdade, posso eu continuar falando no respeito à dignidade
do educando se o ironizo, se o discrimino, se o inibo com a minha arrogância.
Como posso continuar falando em meu respeito ao educando se o testemunho que a
ele dou é o da irresponsabilidade, o de quem não cumpre o seu dever, o de quem
não se prepara ou se organiza para a sua prática, o de quem não luta por seus
direitos e não protesta contra as injustiças?* A prática docente,
especificamente humana, é profundamente formadora,
por isso, ética. Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou
anjos, pode-se e deve-se deles exigir seriedade e retidão.
A responsabilidade do professor, de que às vezes
não nos damos conta, é sempre grande. A natureza mesma de sua prática
eminentemente formadora, sublinha a maneira como a realiza.
Sua presença na sala é de tal maneira exemplar
que nenhum professor ou professora escapa ao juízo que dele ou dela fazem os
alunos. E o pior talvez dos juízos é o que se expressa na “falta” de juízo. O
pior juízo é o que considera o professor uma ausência na sala.
O professor autoritário, o professor licencioso,
o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o
professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva
do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos
alunos sem deixar sua marca. Daí a importância do exemplo que o professor
ofereça de sua lucidez e de seu engajamento na peleja em defesa de seus
direitos, bem como na exigência das condições para o exercício de seus deveres.
O professor tem o dever de dar suas aulas, de
realizar sua tarefa docente. Para isso, precisa de condições favoráveis,
higiênicas, espaciais, estéticas, sem as quais se move menos eficazmente no
espaço pedagógico. Às vezes, as condições são de tal maneira perversas que nem
se move. O desrespeito a este espaço é uma ofensa aos educandos, aos educadores
e à prática pedagógica.
2.5 – Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos
direitos dos educadores.
Se há algo que os educandos brasileiros precisam
saber, desde a mais tenra idade, é que a luta em favor do respeito aos
educadores e à educação inclui que a briga por salários menos imorais é um
dever irrecusável e não só um direito deles. A luta dos professores em defesa
de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento
importante de sua prática docente, enquanto prática ética. Não é algo que vem
de fora da atividade docente, mas algo que dela faz parte. O combate em favor
da dignidade da prática docente é tão parte dela mesma quanto dela faz parte o
respeito que o professor deve ter à identidade do educando, à sua pessoa, a seu
direito de ser.
Um dos piores males que o poder público vem
fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi
criada, é o de fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso
pela educação pública, existencialmente cansados, cair no indiferentismo
fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. “Não há o que fazer” é
o discurso acomodado que não podemos aceitar.
O meu respeito de professor à pessoa do
educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com
procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância.
Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da
real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu
desconhecimento?
Como ser educador, sobretudo numa perspectiva
progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os
diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável
amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador
de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não o fazer bem.
Desrespeitado como gente no desprezo a que é
relegada a prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não
tenho por que exercê-la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta
política consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandoná-la,
cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela,
aviltá-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.
Uma das formas de luta contra o desrespeito dos
poderes públicos pela educação, de um lado, é a nossa recusa a transformar
nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a nossa
rejeição a entendê-la e a exercê-la como prática afetiva de “tias e de tios”.
É como profissionais idôneos – na competência
que se organiza politicamente está talvez a maior força dos educadores – que
eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas. É neste sentido que os
órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos
quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das
greves. A questão que se coloca, obviamente, não é parar de lutar mas,
reconhecendo-se que a luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também
histórica de lutar.
* Insisto na leitura de Professora, sim. Tia, não. São Paulo, Olho d'Água, 1995
2.6 – Ensinar exige apreensão da realidade.
Outro saber fundamental à experiência educativa
é o que diz respeito à sua natureza. Como professor preciso me mover com
clareza na minha prática. Preciso conhecer as diferentes dimensões que
caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio
desempenho.
O melhor ponto de partida para estas reflexões é
a inconclusão do ser humano de que se tornou consciente. Como vimos, aí radica
a nossa educabilidade bem como a nossa inserção num permanente movimento de
busca em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das coisas mas
também delas podemos ter um conhecimento cabal. A capacidade de aprender, não
apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, para nela
intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade a um nível distinto do nível
do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas.
A nossa capacidade de aprender, de que decorre a
de ensinar, sugere ou, mais do que isso, implica a nossa habilidade de apreender a substantividade do objeto aprendido. A
memorização mecânica do perfil do objeto não é aprendizado verdadeiro do objeto
ou do conteúdo. Neste caso, o aprendiz funciona muito mais como paciente da transferência do objeto ou do conteúdo do que
como sujeito crítico, epistemologicamente curioso, que constrói o conhecimento
do objeto ou participa de sua construção. É precisamente por causa desta
habilidade de apreender a substantividade do objeto que nos é possível
reconstruir um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro paciente da
transferência do conhecimento feita pelo educador.
Mulheres e homens, somos os únicos seres que,
social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo,
muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender
para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.
Creio poder afirmar, na altura destas
considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um
que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho
gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e
aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em
função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra.
Especificamente humana a educação é
gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de
meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor,
uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à
minha atividade docente.
Como professor, se minha opção é progressista e
venho sendo coerente com ela, se não me posso permitir a ingenuidade de
pensar-me igual ao educando, de desconhecer a especificidade da tarefa do
professor, não posso, por outro lado, negar que o meu papel fundamental é
contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua
formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo
estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à
responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode
virar perturbadora da busca inquieta dos educandos; se trabalho com jovens ou
adultos, não menos atento devo estar com relação a que o meu trabalho possa significar
como estímulo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente assentado e
à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem de ser a de respeito
à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou
esconder-lhe minha postura, mas não posso desconhecer o seu direito de
rejeitá-la. Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me
omitir, por que ocultar a minha opção política, assumindo uma neutralidade que
não existe. Esta, a omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez
seja a melhor maneira de desrespeitá-lo. O meu papel, ao contrário, é o de quem
testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e
estimular a assunção deste direito por parte dos educandos.
Recentemente, num encontro público, um jovem
recém-entrado na universidade me disse cortesmente:
“Não entendo como o senhor defende os sem-terra,
no fundo, uns baderneiros, criadores de problemas.”
“Pode haver baderneiros entre os sem-terra”,
disse, “mas sua luta é legítima e ética”.
“Baderneira” é a resistência reacionária de quem
se opõe a ferro e a fogo à reforma agrária. A imoralidade e a desordem estão na
manutenção de uma “ordem” injusta.
A conversa aparentemente morreu aí. O moço
apertou minha mão em silêncio. Não sei como terá “tratado” a questão depois,
mas foi importante que tivesse dito o que pensava e que tivesse ouvido de mim o
que me parece justo que devesse ter dito.
É assim que venho tentando ser professor,
assumindo minhas convicções, disponível ao saber, sensível à boniteza da prática
educativa, instigado por seus desafios que não lhe permitem burocratizar-se,
assumindo minhas limitações, acompanhadas sempre do esforço por superá-las, limitações
que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me tenho e aos educandos.
2.7 – Ensinar exige alegria e esperança.
O meu envolvimento com a prática educativa,
sabidamente política, moral, gnosiológica, jamais deixou de ser feito com
alegria, o que não significa dizer que tenha invariavelmente podido cria-la nos
educandos.
Mas, preocupado com ela, enquanto clima ou
atmosfera do espaço pedagógico, nunca deixei de estar.
Há uma relação entre a alegria necessária à
atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos
podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir
aos obstáculos à nossa alegria. Na verdade, do ponto de vista da natureza humana,
a esperança não é algo que a ela se justaponha. A esperança faz parte da
natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do
inacabamento, primeiro, o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse
predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se
buscasse sem esperança. A desesperança é negação da esperança. A esperança é
uma espécie de ímpeto natural possível e necessário, a desesperança é o aborto
deste ímpeto. A esperança é um condimento indispensável à experiência
histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História
onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a
negação da História.
É preciso ficar claro que a desesperança não é
maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da esperança. Eu
não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança.
Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por
"n" razões, se tornou desesperançado.
Daí que uma das nossas brigas como seres humanos
deva ser dada no sentido de diminuir as razões objetivas para a desesperança
que nos imobiliza.
Por tudo isso me parece uma enorme contradição
que uma pessoa progressista, que não teme a novidade, que se sente mal com as
injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela decência, que
luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja
criticamente esperançosa.
A desproblematização do futuro numa compreensão
mecanicista da História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à
morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na
inteligência mecanicista portanto determinista da História, o futuro é já sabido.
A luta por um futuro assim “a priori”
conhecido prescinde da esperança.
A desproblematização do futuro, não importa em
nome de quê, é uma violenta ruptura com a natureza humana social e
historicamente constituindo-se.
Tive, recentemente em Olinda, numa manhã como só
os trópicos conhecem, entre chuvosa e ensolarada, uma conversa, que diria
exemplar, com um jovem educador popular que, a cada instante, a cada palavra, a
cada reflexão, revelava a coerência com que vive sua opção democrática e
popular. Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos,
receptivos, pelas trilhas de uma fivela onde cedo se aprende que só a custo de
muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência – ou negação –,
com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos
pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando de
experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda ou do Recife, dos
meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada.
Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos
em torno de um sem-número de problemas.
Que fazer, enquanto educadores, trabalhando num
contexto assim? Há mesmo o que fazer?
Como fazer o que fazer? Que precisamos nós, os
chamados educadores, saber para viabilizar até mesmo os nossos primeiros
encontros com mulheres, homens e crianças cuja humanidade vem sendo negada e
traída, cuja existência vem sendo esmagada? Paramos no meio de um pontilhão estreito
que possibilita a travessia da favela para uma parte menos maltratada do bairro
popular.
Olhávamos de cima um braço de rio poluído, sem
vida, cuja lama e não cuja água empapa os mocambos nela quase mergulhados.
“Mais além dos mocambos”, me disse Danilson, “há algo pior: um grande terreno
onde se faz o depósito do lixo público.
Os moradores de toda esta redondeza ‘pesquisam’
no lixo o que comer, o que vestir, o que os mantenha vivos”. Foi desse horrendo
aterro que há dois anos uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio
amputado com que preparou seu almoço domingueiro. A imprensa noticiou o fato
que citei horrorizado e pleno de justa raiva no meu último livro À sombra desta mangueira. É possível que a notícia tenha provocado em
pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista em favor sempre dos
poderosos. “É triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo esta.” A realidade,
porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra e é
para que seja outra que precisamos os progressistas de lutar. Eu me sentiria
mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo,
se fortes e indestrutíveis razoes me convencessem de que a existência humana se
dá no domínio da determinação.
Domínio em que dificilmente se poderia falar de
opções, de decisão, de liberdade, de ética. “Que fazer? A realidade é assim
mesmo”, seria o discurso universal. Discurso monótono, repetitivo, como a
própria existência humana. Numa história assim determinada as posições rebeldes
não têm como tornar-se revolucionárias.
Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la,
de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de
expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque,
histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação. Se
a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não
haveria sequer por que ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na
experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo “pré-dado”, mas um
desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta
em face da negação do direito de “ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos.
Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria,
esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e “morno”,
que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim. O
discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio
imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da
adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja
responsabilidade não podemos nos eximir. A adaptação a situações negadoras da
humanização só pode ser aceita como consequência da experiência dominadora, ou
como exercício de resistência, como tática na luta política. Dou a impressão de
que aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar, quando puder, contra a
negação de mim mesmo. Esta questão, a da legitimidade da raiva contra a
docilidade fatalista diante da negação das gentes, foi um tema que esteve
implícito em toda a nossa conversa naquela manhã.
2.8 – Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível.
Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem,
chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de
ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar como ele, é o
saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História
como possibilidade e não como determinação. O mundo
não é. O mundo está sendo.
Como subjetividade curiosa, inteligente,
interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no
mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém
como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da
História, da cultura, da política, constato não para
me adaptar, mas para mudar. No próprio mundo físico minha
constatação não me leva à impotência. O conhecimento sobre os terremotos
desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não podemos
eliminá-los mas podemos diminuir os danos que nos causam. Constatando, nos
tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais
complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a
ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição
ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo,
o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no
mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de
luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho
para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por
todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como
se misteriosamente de repente nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e
distante mundo, alheado de nós e nós dele.
Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra
que estudo? Contra quem estudo?
Que sentido teria a atividade de Danilson no
mundo que descortinávamos do pontilhão se, para ele, estivesse decretada por um
destino todo poderoso a impotência daquela gente fustigada pela carência?
Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível
melhora de performance da população no processo irrecusável de sua
adaptação à negação da vida. A prática de Danilson seria assim o elogio da
resignação.
Na medida porém em que para ele como para mim o
futuro é problemático e não inexorável, outra tarefa se nos oferece. A de,
discutindo a problematicidade do amanhã, tornando-o tão óbvio quanto a carência
de tudo na favela, ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor, à fome, ao
desconforto, à falta de higiene que o eu de cada um, como corpo e alma,
experimenta é uma forma de resistência física a que se vai juntando outra, a
cultural. Resistência ao descaso ofensivo de que os miseráveis são objeto. No
fundo, as resistências – a orgânica e/ou a cultural – são manhas necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos. O
sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a resistência ou a manha com que
a cultura africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador
branco.
É preciso porém que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na
vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de
estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não
para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não
é na resignação mas na rebeldia em face
das injustiças que nos afirmamos.
Uma das questões centrais com que temos de lidar
é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam
no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é ponto de partida
indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia
enquanto denúncia precisa de se alongar até uma posição mais radical e crítica,
a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a
dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua
superação, no fundo, o nosso sonho.
É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos programar nossa ação
político-pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de
alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização,
se de formação de mão-de-obra técnica.
O êxito de educadores como Danilson está
centralmente nesta certeza que jamais os deixa de que é possível mudar, de que
é preciso mudar, de que preservar situações concretas de miséria é uma
imoralidade. É assim que este saber que a História vem comprovando se erige em
princípio de ação e abre caminho à constituição, na prática, de outros saberes
indispensáveis.
Não se trata obviamente de impor à população
expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para
defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, não importa
se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas
elas, de simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos
desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência
e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que
sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado.
Não posso aceitar como tática do bom combate a
política do quanto pior melhor, mas não posso também aceitar, impassível, a
política assistencialista que, anestesiando a consciência oprimida, prorroga,
“sine dic, a necessária mudança da sociedade. Não posso proibir que os
oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários, mas
tenho o dever de adverti-los do erro que cometem, da contradição em que se
emaranham. Votar no político reacionário é ajudar a preservação do “status
quo”.
Como posso votar, se sou progressista e coerente
com minha opção, num candidato em cujo discurso, faiscante de desamor, anuncia
seus projetos racistas?
Partindo de que a experiência da miséria é uma
violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da
vontade punitiva de Deus, violência contra que devemos lutar, tenho, enquanto
educador, de me ir tornando cada vez mais competente sem o que a luta perderá eficácia.
É que o saber de que falei – mudar é difícil mas é possível –, que me empurra esperançoso
à ação, não é suficiente para a eficácia necessária a que me referi. Movendo-me
enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes específicos em cujo campo
minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia. Como alfabetizar sem
conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e
ideologia, sobre técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita? Por
outro lado, como trabalhar, não importa em que campo, no da alfabetização, no
da produção econômica em projetos cooperativos, no da evangelização ou no da
saúde sem ir conhecendo as manhas com que os grupos humanos produzem sua
própria sobrevivência?
Como educador preciso de ir "lendo” cada
vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem
de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o
seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas
com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação
do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E
isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do
mundo” que precede sempre a “leitura da palavra”.
Se, de um lado, não posso me adaptar ou me
“converter" ao saber ingênuo dos grupos populares, de outro, não posso, se
realmente progressista, impor-lhes arrogantemente o meu saber como o verdadeiro.
O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua
história social como a experiência igualmente social de seus membros, vai
revelando a necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão
mostrando sua “incompetência” para explicar os fatos.
Um dos equívocos funestos de militantes
políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre desconhecer
totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares. Vendo-se como portadores
da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la mas impô-la aos grupos populares.
Recentemente, ouvi de jovem operário num debate
sobre a vida na favela que já se fora o tempo em que ele tinha vergonha de ser
favelado. “Agora”, dizia, “me orgulho de nós todos, companheiros e
companheiras, do que temos feito através de nossa luta, de nossa organização.
Não é o favelado que deve ter vergonha da
condição de favelado mas quem, vivendo bem e fácil, nada faz para mudar a
realidade que causa a favela. Aprendi isso com a luta”. É possível que esse
discurso do jovem operário não provocasse nada ou quase nada o militante autoritariamente
messiânico. É possível até que a reação do moço mais revolucionarista do que revolucionário
fosse negativa à fala do favelado, entendida como expressão de quem se inclina mais
para a acomodação do que para a luta. No fundo, o discurso do jovem operário
era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado. Se ontem se
culpava, agora se tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade
sua se achar naquela condição. Mas, sobretudo, se tornava capaz de perceber que
a situação de favelado não é irrevogável. Sua luta foi
mais importante na constituição do seu novo saber do que o discurso sectário do
militante messianicamente autoritário.
E importante salientar que o novo momento na
compreensão da vida social não é exclusivo de uma pessoa. A experiência que
possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa ou outra, porém, se antecipa
na explicitação da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas fundamentais
do educador progressista é, sensível à leitura e à releitura do grupo,
provocá-lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do
contexto.
É importante ter sempre claro que faz parte do
poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por
sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas
relações com o seu contexto e com as classes dominantes por se acharem nesta ou
naquela situação desvantajosa. E exemplar a resposta que recebi de mulher
sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa instituição católica de assistência
aos pobres. Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu, quase sem
ter o que dizer, afirmei indagando: Você é norte-americana, não é?”
“Não. Sou pobre”, respondeu como se estivesse
pedindo desculpas à “norte-americanidade” por seu insucesso na vida. Me lembro
de seus olhos azuis marejados de lágrimas expressando seu sofrimento e a
assunção da culpa pelo seu “fracasso” no mundo. Pessoas assim
fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor
na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas na sua
incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam
o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante.
A alfabetização, por exemplo, numa área de
miséria, só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma
espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção
da culpa indevida. A isto corresponde a “expulsão” do opressor de “dentro” do oprimido,
enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido,
precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade.
Saliente-se contudo que, não obstante a relevância ética e política do esforço
conscientizador que acabo de sublinhar, não se pode parar nele, deixando-se
relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra.
Não podemos, numa perspectiva democrática,
transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda
reflexão em torno da razão de ser dos faros nem tampouco num “comício
libertador”. A tarefa fundamental dos Danilson entre quem me situo é experimentar
com intensidade a dialética entre “a leitura do mundo” e a “leitura da
palavra”.
“Programados para aprender” e impossibilitados
de viver sem a referência de um amanhã, onde quer que haja mulheres e homens há
sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.
Nada disso, contudo, cobra sentido, para mim, se
realizado contra a vocação para o "ser mais”, histórica e socialmente
constituindo-se, em que mulheres e homens nos achamos inseridos.
2.9 – Ensinar exige curiosidade.
Um pouco mais sobre a curiosidade
Se há uma prática exemplar como negação da
experiência formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando e,
em consequência, a do educador. É que o educador que, entregue a procedimentos
autoritários ou paternalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosidade
do educando, termina por igualmente tolher sua própria curiosidade. Nenhuma curiosidade
se sustenta eticamente no exercício da negação da outra curiosidade. A
curiosidade dos pais que só se experimenta no sentido de saber como e onde anda a curiosidade dos filhos se burocratiza e
fenece. A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma também. O bom clima
pedagógico-democrático é o em que o educando vai aprendendo à custa de sua
prática mesma que sua curiosidade como sua liberdade deve estar sujeita a
limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele.
Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-la
aos demais.
Como professor devo saber que sem a curiosidade
que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade
de forma correta é um direito que tenho como gente e a que corresponde o dever
de lutar por ele, o direito à curiosidade. Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização mecânica do perfil
deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal do
objeto. A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o
exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de “tomar distância” do
objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de "cercar” o objeto
ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de
perguntar.
Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a
própria pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da
passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de resposta a perguntas que não foram feitas. Isto não
significa realmente que devamos reduzir a atividade docente em nome da defesa
da curiosidade necessária, a puro vai-e-vem de perguntas e respostas, que
burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de
momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O
fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e
dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada,
enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se
assumam epistemologicamente
curiosos.
Neste sentido, o bom professor é o que consegue,
enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e
não uma “cantiga de ninar”.
Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu
pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas.
Antes de qualquer tentativa de discussão de
técnicas, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica assim, é preciso,
indispensável mesmo, que o professor se ache “repousado” no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. E ela
que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, reconhecer.
Boa tarefa para um fim de semana seria propor a
um grupo de alunos que registrasse, cada um por si, as curiosidades mais
marcantes por que foram tomados, em razão de que, em qual situação emergente de
noticiário da televisão, de propaganda, de videogame, de gesto de alguém, não
importa. Que “tratamento" deu à curiosidade, se facilmente foi superada ou
se, pelo contrário, conduziu a outras curiosidades. Se no processo curioso
consultou fontes, dicionários, computadores, livros, se fez perguntas a outros.
Se a curiosidade enquanto desafio provocou algum conhecimento provisório de
algo, ou não. O que sentiu quando se
percebeu trabalhando sua mesma curiosidade. E possível que, preparado para
pensar a própria curiosidade, tenha sido menos curiosa ou curioso.
A experiência se poderia refinar e aprofundar a
tal ponto, por exemplo, que se realizasse um seminário quinzenal para o debate
das várias curiosidades bem como dos desdobramentos das mesmas.
O exercício da curiosidade a faz mais
criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu objeto. Quanto
mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “rigoriza”, tanto
mais epistemológica ela vai se tornando.
Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não
a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso mesmo sempre estive
em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de
estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças
e dos adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra
razão que, enquanto secretário de educação da cidade de São Paulo, fiz chegar à
rede das escolas municipais o computador. Ninguém melhor do que meus netos e
minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com
os quais convivem.
O exercício da curiosidade convoca a imaginação,
a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da
perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser.
Um ruído, por exemplo, pode provocar minha
curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o
ouvido.
Procuro comparar com outro ruído cuja razão de
ser já conheço. Investigo melhor o espaço.
Admito hipóteses várias em torno da possível
origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação.
Satisfeita uma curiosidade, a capacidade de
inquietar-me e buscar continua em pé. Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo, sem a
transitividade de nossa consciência.
Quanto mais faço estas operações com maior rigor
metódico tanto mais me aproximo da maior exatidão dos achados de minha
curiosidade.
Um dos saberes fundamentais à minha prática
educativo-crítica é o que me adverte da necessária promoção da curiosidade
espontânea para a curiosidade epistemológica.
Outro saber indispensável à prática
educativo-crítica é o de como lidaremos com a relação autoridade-liberdade*,
sempre tensa e que gera disciplina como indisciplina.
Resultando da harmonia ou do equilíbrio entre
autoridade e liberdade, a disciplina implica necessariamente o respeito de uma
pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser
transgredidos.
O autoritarismo e a licenciosidade são rupturas
do equilíbrio tenso entre autoridade e liberdade. O autoritarismo é a ruptura
em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade, a ruptura em
favor da liberdade contra a autoridade. Autoritarismo e licenciosidade são
formas indisciplinadas de comportamento que negam o que venho chamando a
vocação ontológica do ser humano.**
* Ver Freire, Paulo. Professora Sim, Tia
nado. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho d’Água,
1995.
* * Ver Freire, Paulo. Pedagogia do
Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1995.
Assim como inexiste disciplina no autoritarismo
ou na licenciosidade, desaparece em ambos, a rigor, autoridade ou liberdade.
Somente nas práticas em que autoridade e liberdade se afirmam e se preservam
enquanto elas mesmas, portanto no respeito mútuo, é que se pode falar de
práticas disciplinadas como também em práticas favoráveis à vocação para o ser
mais.
Entre nós, em função mesma do nosso passado
autoritário, contestado, nem sempre com segurança por uma modernidade ambígua,
oscilamos entre formas autoritárias e formas licenciosas. Entre uma certa
tirania da liberdade e o exacerbamento da autoridade ou ainda na combinação das
duas hipóteses.
O bom seria que experimentássemos o confronto
realmente tenso em que a autoridade de um lado e a liberdade do outro,
medindo-se, se avaliassem e fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas
mesmas, na produção de situações dialógicas. Para isto, o indispensável é que
ambas, autoridade e liberdade, vão se tornando cada vez mais convertidas ao
ideal do respeito comum somente como podem autenticar-se.
Comecemos por refletir sobre algumas das
qualidades que a autoridade docente democrática precisa encarnar em suas
relações com a liberdade dos alunos. E interessante observar que a minha
experiência discente é fundamental para a prática docente que terei amanhã ou
que estou tendo agora simultaneamente com aquela. E vivendo criticamente a
minha liberdade de aluno ou aluna que, em grande parte, me preparo para assumir
ou refazer o exercício de minha autoridade de professor. Para isso, como aluno
hoje que sonha com ensinar amanhã ou como aluno que já ensina hoje devo ter
como objeto de minha curiosidade as experiências que venho tendo com
professores vários e as minhas próprias, se as tenho, com meus alunos. O que
quero dizer é o seguinte: Não devo pensar apenas sobre os conteúdos
programáticos que vêm sendo expostos ou discutidos pelos professores das
diferentes disciplinas mas, ao mesmo tempo, a maneira mais aberta, dialógica,
ou mais fechada, autoritária, com que este ou aquele professor ensina.
Capítulo 3
Ensinar é uma especificidade humana
Que possibilidades de expressar-se, de crescer,
vem tendo a minha curiosidade? Creio que uma das qualidades essenciais que a
autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as liberdades
dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na firmeza
com que atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discute
suas próprias posições, com que aceita rever-se.
Segura de si, a autoridade não necessita de, a
cada instante, fazer o discurso sobre sua existência, sobre si mesma. Não
precisa perguntar a ninguém, certa de sua legitimidade, se “sabe com quem está
falando?”
Segura de si, ela é porque tem autoridade, porque a exerce com indiscutível sabedoria.
3.1 – Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade.
A segurança com que a autoridade docente se move
implica uma outra, a que se funda na sua competência profissional. Nenhuma
autoridade docente se exerce ausente desta competência. O professor que não
leve a sério sua formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura
de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe.
Isto não significa, porém, que a opção e a prática democrática do professor ou
da professora sejam determinadas por sua competência científica.
Há professores e professoras cientificamente
preparados mas autoritários a toda prova. O que quero dizer é que a
incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor.
Outra qualidade indispensável à autoridade em
suas relações com as liberdades é a generosidade.
Não há nada que mais inferiorize a tarefa
formadora da autoridade do que a mesquinhez com que se comporte.
A arrogância farisaica, malvada, com que julga
os outros e a indulgência macia com que se julga ou com que julga os seus. A
arrogância que nega a generosidade nega também a humildade, que não é virtude
dos que ofendem nem tampouco dos que se regozijam com sua humilhação. O clima
de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a
autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica
o caráter formador do espaço pedagógico.
A reação negativa ao exercício do comando é tão
incompatível com o desempenho da autoridade quanto a sofreguidão pelo mando. O
mandonismo é exatamente esse gozo irrefreável e desmedido pelo mando.
A autoridade docente mandonista, rígida, não
conta com nenhuma criatividade do educando. Não faz parte de sua forma de ser,
esperar, sequer, que o educando revele o gosto de aventurar-se.
A autoridade coerentemente democrática,
fundando-se na certeza da importância, quer de si mesma, quer da liberdade dos
educandos para a construção de um clima de real disciplina, jamais minimiza a
liberdade.
Pelo contrário, aposta nela. Empenha-se em
desafiá-la sempre e sempre; jamais vê, na rebeldia da liberdade, um sinal de
deterioração da ordem. A autoridade coerentemente democrática está convicta de
que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que
desperta.
A autoridade coerentemente democrática, mais
ainda, que reconhece a eticidade de nossa presença,
a das mulheres e dos homens, no mundo, reconhece, também e necessariamente, que
não se vive a eticidade sem liberdade e não se tem liberdade sem risco. O
educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais
eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e,
para isso, preciso correr o risco. Não se rompe como quem toma um suco de piranga
numa praia tropical. Mas, por outro lado, a autoridade coerentemente democrática
jamais se omite.
Se recusa, de um lado, silenciar a liberdade dos
educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo de construção da boa
disciplina.
Um esforço sempre presente à prática da
autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de um sonho
fundamental: o de persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo
consigo mesma, em si mesma, com materiais que, embora vindo de fora de si, sejam
reelaborados por ela, a sua autonomia. É com
ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade vai preenchendo o
“espaço” antes “habitado” por sua dependência. Sua autonomia
que se funda na responsabilidade que vai sendo assumida.
O papel da autoridade democrática não é,
transformando a existência humana num “calendário” escolar “tradicional”,
marcar as lições de vida para as liberdades, mas mesmo quando tem um conteúdo programático
a propor, deixar claro, com seu testemunho, que o fundamental no aprendizado do
conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se assume.
No fundo, o essencial nas relações entre
educador e educando, entre autoridade e liberdades, entre pais, mães, filhos e
filhas é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia.
Me movo como educador porque, primeiro, me movo
como gente.
Posso saber pedagogia, biologia como astronomia,
posso cuidar da terra como posso navegar.
Sou gente.
Sei que ignoro e sei que sei. Por isso, tanto
posso saber o que ainda não sei como posso saber melhor o que já sei. E saberei
tão melhor e mais autenticamente quanto mais eficazmente construa minha
autonomia em respeito à dos outros.
Ensinar e, enquanto ensino, testemunhar aos
alunos o quanto me é fundamental respeitá-los e respeitar-me são tarefas que
jamais dicotomizei. Nunca me foi possível separar em dois momentos o ensino dos
conteúdos da formação ética dos educandos. A prática docente que não há sem a
discente é uma prática inteira. O ensino dos conteúdos implica o testemunho
ético do professor. A boniteza da prática docente se compõe do anseio vivo de
competência do docente e dos discentes e de seu sonho ético. Não há nesta
boniteza lugar para a negação da decência, nem de forma grosseira nem
farisaica. Não há lugar para puritanismo. Só há lugar para pureza.
Este é outro saber indispensável à prática
docente. O saber da impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos da
formação ética dos educandos. De separar prática de teoria, autoridade de liberdade,
ignorância de saber, respeito ao professor de respeito aos alunos, ensinar de
aprender.
Nenhum destes termos pode ser mecanicistamente
separado, um do outro. Como professor, tanto lido com minha liberdade quanto
com minha autoridade em exercício, mas também diretamente com a liberdade dos
educandos, que devo respeitar, e com a criação de sua autonomia bem como com os
ensaios de construção da autoridade dos educandos. Como professor não me é possível
ajudar o educando a superar sua ignorância se não supero permanentemente a
minha.
Não posso ensinar o que não sei. Mas, este,
repito, não é saber de que apenas devo falar e falar com palavras que o vento
leva. É saber, pelo contrário, que devo viver concretamente com os educandos. O
melhor discurso sobre ele é o exercício de sua prática. É concretamente respeitando
o direito do aluno de indagar, de duvidar, de criticar que “falo” desses
direitos. A minha pura fala sobre esses direitos a que não corresponda a sua
concretização não tem sentido.
Quanto mais penso sobre a prática educativa,
reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós, tanto mais me convenço do
dever nosso de lutar no sentido de que ela seja realmente respeitada. O respeito
que devemos como professores aos educandos dificilmente se cumpre, se não somos
tratados com dignidade e decência pela administração privada ou pública da
educação.
3.2 – Ensinar exige comprometimento.
Outro saber que devo trazer comigo e que tem que
ver com quase todos os de que tenho falado é o de que não é possível exercer a atividade
do magistério como se nada ocorresse conosco.
Como impossível seria sairmos na chuva expostos
totalmente a ela, sem defesas, e não nos molhar. Não posso ser professor sem me
pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira
de ser, de pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a
maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu desempenho.
Daí, então, que uma de minhas preocupações
centrais deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e
o que faço, entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo.
Se perguntado por um aluno sobre o que é “tomar
distância epistemológica do objeto” lhe respondo que não sei, mas que posso vir
a saber, isso não me dá a autoridade de quem conhece, me dá a alegria de,
assumindo minha ignorância, não ter mentido. E não ter mentido abre para mim
junto aos alunos um crédito que devo preservar. Eticamente impossível teria
sido dar uma resposta falsa, um palavreado qualquer. Um chute, como se diz popularmente. Mas, de um lado, precisamente porque a
prática docente, sobretudo como a entendo, me coloca a possibilidade que devo
estimular de perguntas varias, preciso me preparar ao máximo para, de outro,
continuar sem mentir aos alunos, de outro, não ter de afirmar seguidamente que
não sei.
Saber que não posso passar despercebido pelos
alunos, e que a maneira como me percebam me ajuda ou desajuda no cumprimento de
minha tarefa de professor, aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. Se
a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática
reacionária, autoritária, elitista. Não posso discriminar o aluno em nome de
nenhum motivo. A percepção que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de
como atuo, mas também de como o aluno entende como atuo.
Evidentemente, não posso levar meus dias como
professor a perguntar aos alunos o que acham de mim ou como me avaliam. Mas
devo estar atento à leitura que fazem de minha atividade com eles. Precisamos
aprender a compreender a significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma
retirada da sala. O tom menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o
espaço pedagógico é um texto para ser constantemente
“lido”, interpretado, “escrito" e “reescrito”. Neste sentido, quanto mais solidariedade
exista entre o educador e educandos no “trato” deste espaço, tanto mais possibilidades
de aprendizagem democrática se abrem na escola.
Creio que nunca precisou o professor
progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a
ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista,
que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que
se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a
maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra.
Minha presença de professor, que não pode passar
despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política.
Enquanto presença não posso ser uma omissão mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de
analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha
capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo,
tem que ser o meu testemunho.
3.3 – Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de
intervenção no mundo.
Outro saber de que não posso duvidar um momento
sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como experiência
especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Intervenção que além do conhecimento dos
conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento.
Dialética e contraditória, não poderia ser a
educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante.
Neutra, “indiferente” a qualquer destas
hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou a de sua contestação, a
educação jamais foi, é, ou pode ser. É um erro decretá-la como tarefa apenas
reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força de desocultação
da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros
que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência.
De um lado, a compreensão mecanicista da
História, que reduz a consciência a puro reflexo da materialidade, e de outro,
o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da consciência no acontecer
histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco
livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de
classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos.
Do ponto de vista dos interesses dominantes, não
há dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de
verdades. Toda vez, porém, que a conjuntura o exige, a educação dominante é
progressista à sua maneira, progressista “pela metade”. As forças dominantes estimulam e materializam avanços
técnicos compreendidos e, tanto quanto possível, realizados de maneira neutra.
Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa
parte, esperar que a "bancada ruralista” aceitasse quieta e concordante a
discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas do país, da reforma agrária como
projeto econômico, político e ético da maior importância para o próprio desenvolvimento
nacional. Isso é tarefa para educadoras e educadores progressistas cumprir, dentro
e fora das escolas. É tarefa para organizações não-governamentais, para
sindicatos democráticos realizar. Já não é ingênuo esperar, porém, que o
empresariado que se moderniza, com raízes urbanas, adira à reforma agrária.
Seus interesses na expansão do mercado o fazem “progressista” em face da reação
ruralista. O próprio comportamento progressista do empresariado que se
moderniza, progressista em face da truculência retrógrada dos ruralistas, se esvazia
de humanismo quando da confrontação entre os interesses
humanos e os do mercado.
E é uma imoralidade, para mim, que se
sobreponha, como se vem fazendo, aos interesses radicalmente humanos, os do mercado.
Continuo bem aberto à advertência de Marx, a da
necessária radicalidade que me faz sempre desperto a tudo o que diz respeito à
defesa dos interesses humanos. Interesses superiores aos de puros grupos ou de
classes de gente.
Ao reconhecer que, precisamente porque nos
tornamos seres capazes de observar, de comparar, de avaliar, de escolher, de
decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu
para nós a probabilidade de transgredir a ética,
jamais poderia aceitar a transgressão como um direito mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos lutar e não diante da qual cruzar
os braços.
Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos
quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas em lugar de
condená-las. Não posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a
por sua malvadez, ao atribuir a “forças cegas” e imponderáveis os danos por
elas causados aos seres humanos. A fome frente a frente abastança e o
desemprego no mundo são imoralidades e não fatalidades como o reacionarismo
apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O que quero repetir, com
força, é que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso as
maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a
maioria. Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma “ordem”
desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias
em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que
sua fome é uma fatalidade do fim do século. Não junto a minha voz à dos que,
falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua
resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência,
da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do
seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada
vez mais sofridas.
A ideologia fatalista do discurso e da política
neoliberais de que venho falando é um momento daquela desvalia acima referida
dos interesses humanos em relação aos do mercado.
Dificilmente um empresário moderno concordaria
com que seja direito de “seu” operário, por exemplo, discutir durante o
processo de sua alfabetização ou no desenvolvimento de algum curso de
aperfeiçoamento técnico, esta mesma ideologia a que me venho referindo.
Discutir, suponhamos, a afirmação: “O desemprego no mundo é uma fatalidade do fim deste século.” E por que fazer a reforma
agrária não é também uma fatalidade? E por que acabar com a fome e com a
miséria não são igualmente fatalidades de que não se pode fugir?
É reacionária a afirmação segundo a qual o que
interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não
perder tempo com debates "ideológicos” que a nada levam. O operário
precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se
constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em
favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos
injusta e mais humana.
Naturalmente, reinsisto, O empresário moderno
aceita, estimula e patrocina o treino técnico de seu operário. O que ele
necessariamente recusa é a sua formação que,
envolvendo o saber técnico e científico indispensável, fala de sua presença no
mundo. Presença humana, presença ética, aviltada toda vez que transformada em
pura sombra.
Não posso ser professor se não percebo cada vez
melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição.
Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e
aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não
importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade,
frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa.
Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade
contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia
contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta
constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica
dos indivíduos ou das classes sociais.
Sou professor contra a ordem capitalista vigente
que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da
esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me
consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática,
boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por
este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu
corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho
que deve ser de lutador pertinaz, que cansa mas não desiste. Boniteza que se
esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos
alunos, não canso e me admirar.
Assim como não posso ser professor sem me achar
capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de minha disciplina não posso,
por outro lado, reduzir minha prática docente ao puro ensino daqueles
conteúdos. Esse é um momento apenas de minha atividade pedagógica. Tão importante
quanto ele, o ensino dos conteúdos, é o meu testemunho ético ao ensiná-los. É a
decência com que o faço. É preparação científica revelada sem arrogância, pelo
contrário, com humildade. É o respeito jamais negado ao educando, a seu saber
de “experiência feito” que busco superar com ele. Tão importante quanto o
ensino dos conteúdos é minha coerência na classe. A coerência entre o que digo,
o que escrevo e o que faço.
É importante que os alunos percebam o esforço
que faz o professor ou a professora procurando sua coerência. É preciso também
que este esforço seja de quando em vez discutido na classe. Há situações em que
a conduta da professora pode parecer aos alunos contraditória. Isto se dá quase
sempre quando o professor simplesmente exerce sua autoridade na coordenação das
atividades na classe e parece aos alunos que ele, o professor, exorbitou de seu
poder. Às vezes, é o próprio professor que não está certo
de ter realmente ultrapassado o limite de sua autoridade ou não.
3.4 – Ensinar exige liberdade e autoridade.
Noutro momento deste texto me referi ao fato de
não termos ainda resolvido o problema da tensão entre a autoridade e a
liberdade. Inclinados a superar a tradição autoritária, tão presente entre nós
resvalamos para formas licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo
onde só houve o exercício legítimo da autoridade.
Recentemente, jovem professor universitário, de
opção democrática, comentava comigo o que lhe parecia ter sido um desvio seu no
uso de sua autoridade. Disse, constrangido, ter se oposto a que aluno de outra
classe continuasse na porta entreaberta de sua sala, a manter uma conversa gesticulada
com uma das alunas. Ele tivera inclusive que parar sua fala em face do
descompasso que a situação provocava. Para ele, sua decisão, com que devolvera
ao espaço pedagógico o necessário clima para continuar sua atividade específica
e com a qual restaurara o direito dos estudantes e o seu de prosseguir a
prática docente, fora autoritária. Na verdade, não. Licencioso teria sido se
tivesse permitido que a indisciplina de uma liberdade mal centrada
desequilibrasse o contexto pedagógico, prejudicando assim o seu funcionamento.
Num dos inúmeros debates de que venho
participando, e em que discutia precisamente a questão dos limites sem os quais
a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo ouvi de um
dos participantes que, ao falar dos limites à liberdade eu estava repetindo a
cantilena que caracterizava o discurso de professor seu, reconhecidamente
reacionário, durante o regime militar. Para o meu interlocutor, a liberdade
estava acima de qualquer limite. Para mim, não, exatamente porque aposto nela, porque
sei que sem ela a existência só tem valor e sentido na luta em favor dela. A
liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada.
O grande problema que se coloca ao educador ou à
educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível
que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto
mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade
tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome.
Gostaria uma vez mais de deixar bem expresso o
quanto aposto na liberdade, o quanto me parece fundamental que ela se exercite
assumindo decisões. Foi isso, pelo menos, o que marcou a minha experiência de
filho, de irmão, de aluno, de professor, de marido, de pai e de cidadão.
A liberdade amadurece no confronto com outras
liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do
professor, do Estado. É claro que, nem sempre, a liberdade do adolescente faz a
melhor decisão com relação a seu amanhã. É indispensável que os pais tornem parte
das discussões com os filhos em torno desse amanhã. Não podem nem devem
omitir-se, mas precisam saber e assumir que o futuro é de seus filhos e não
seu. É preferível, para mim, reforçar o direito que tem a liberdade de decidir,
mesmo correndo o risco de não acertar, a seguir a decisão dos pais. É decidindo
que se aprende a decidir.
Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido
nunca, porque há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e de minha mãe a
decidir por mim. Não valem argumentos imediatistas como: “Já imaginou o risco,
por exemplo, que você corre, de perder tempo e oportunidade, insistindo nessa
ideia maluca?” A ideia do filho, naturalmente. O que há de pragmático em nossa
existência não pode sobrepor-se ao imperativo ético de que não podemos fugir. O
filho tem, no mínimo, o direito de provar a “maluquice de sua ideia”. Por outro
lado, faz parte do aprendizado da decisão a assunção das consequências do ato
de decidir. Não há decisão a que não se sigam efeitos esperados, pouco
esperados ou inesperados. Por isso é que a decisão é um processo responsável.
Uma das tarefas pedagógicas dos pais é deixar óbvio aos filhos que sua participação
no processo de tomada de decisão deles não é uma intromissão mas um dever, até,
desde que não pretendam assumir a missão de decidir por eles. A participação
dos pais se deve dar sobretudo na análise, com os filhos, das consequências
possíveis da decisão a ser tomada.
A posição da mãe ou do pai é a de quem, sem
nenhum prejuízo ou rebaixamento de sua autoridade, humildemente, aceita o papel
de enorme importância de assessor ou assessora do filho ou da filha.
Assessor que, embora batendo-se pelo acerto de
sua visão das coisas, jamais tenta impor sua vontade ou se abespinha porque seu
ponto de vista não foi aceito.
O que é preciso, fundamentalmente mesmo, é que o
filho assuma eticamente, responsavelmente, sua decisão, fundante de sua
autonomia. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se
constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas.
Por que, por exemplo, não desafiar o filho, ainda criança, no sentido de
participar da escolha da melhor hora para fazer seus deveres escolares? Por que
o melhor tempo para esta tarefa é sempre o dos pais? Por que perder a
oportunidade de ir sublinhando aos filhos o dever e o direito que eles têm,
como gente, de ir forjando sua própria autonomia? Ninguém é sujeito da autonomia
de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos 25 anos. A gente
vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser
para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido
que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências
estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências
respeitosas da liberdade.
Uma coisa me parece muito clara hoje: jamais
tive medo de apostar na liberdade, na seriedade, na amorosidade, na
solidariedade, na luta em favor das quais aprendi o valor e a importância da raiva.
Jamais receei ser criticado por minha mulher,
por minhas filhas, por meus filhos, assim como pelos alunos e alunas com quem
tenho trabalhado ao longo dos anos, porque tivesse apostado demasiado na
liberdade, na esperança, na palavra do outro, na sua vontade de erguer-se ou reerguer-se,
por ter sido mais ingênuo do que crítico. O que temi, nos diferentes momentos
de minha vida, foi dar margem, por gestos ou palavrações, a ser considerado um
oportunista, um “realista”, “um homem de pé no chão”, ou um desses “equilibristas”
que se acham sempre em “cima do muro” à espera de saber qual a onda que se fará
poder.
O que sempre deliberadamente recusei, em nome do
próprio respeito à liberdade, foi sua distorção em licenciosidade. O que sempre
procurei foi viver em plenitude a relação tensa, contraditória e não mecânica,
entre autoridade e liberdade, no sentido de assegurar o respeito entre ambas,
cuja ruptura provoca a hipertrofia de uma ou de outra.
É interessante observar como, de modo geral, os
autoritários consideram, amiúde, o respeito indispensável à liberdade como
expressão de incorrigível espontaneísmo e os licenciosos descobrem
autoritarismo em toda manifestação legítima da autoridade. A posição mais
difícil, indiscutivelmente correta, é a do democrata, coerente com seu sonho
solidário e igualitário, para quem não é possível autoridade sem liberdade e
esta sem aquela.
3.5 – Ensinar exige tomada consciente de decisões.
Voltemos à questão central que venho discutindo
nesta parte do texto: a educação, especificidade humana, como um ato de
intervenção no mundo. É preciso deixar claro que o conceito de intervenção não
está sendo usado com nenhuma restrição semântica. Quando falo em educação como
intervenção me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade, no
campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao
trabalho, à terra, à educação, à saúde, quanto à que, pelo contrário,
reacionariamente pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta.
Estas formas de intervenção, com ênfase mais num
aspecto do que noutro nos dividem em nossas opções em relação a cuja pureza nem
sempre somos leais. Rara vez, por exemplo, percebemos a incoerência agressiva
que existe entre as nossas afirmações “progressistas” e o nosso estilo
desastrosamente elitista de ser intelectuais. E que dizer de educadores que se
dizem progressitas mas de prática pedagógico-política eminentemente
autoritária? Não é por outra razão que insisti tanto em Professora Sim, Tia Não, na necessidade de criarmos, em nossa prática docente,
entre outras, a virtude da coerência. Não há nada talvez que desgaste mais um
professor que se diz progressista do que sua prática racista, por exemplo. É interessante
observar como há mais coerência entre os intelectuais autoritários, de direita
ou de esquerda. Dificilmente, um deles ou uma delas respeita e estimula a
curiosidade crítica nos educandos, o gosto da aventura. Dificilmente contribui,
de maneira deliberada e consciente, para a constituição e a solidez da autonomia
do ser do educando. De modo geral, teimam em depositar nos alunos apassivados a
descrição do perfil dos conteúdos, em lugar de desafiá-los a apreender a
substantividade dos mesmos, enquanto objetos gnosiológicos, somente como os
aprendem.
É na diretividade da educação, esta vocação que
ela tem, como ação especificamente humana, De “endereçar-se” até sonhos,
ideais, utopias e objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da
educação. A qualidade de ser política, inerente à sua natureza. É impossível,
na verdade, a neutralidade da educação. E é impossível, não porque professoras
e professores “baderneiros” e “subversivos” o determinem. A educação não vira
política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.
Quem pensa assim, quem afirma que é por obra
deste ou daquele educador, mais ativista que outra coisa, que a educação vira
política, não pode esconder a forma depreciativa como entende a política. Pois
é na medida mesmo em que a educação é deturpada e diminuída pela ação de “baderneiros”
que ela, deixando de ser verdadeira educação, possa a ser política, algo sem
valor.
A raiz mais profunda da politicidade da educação
se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza
inacabada e da qual se tornou consciente. Inacabado e consciente de seu
inacabamento, histórico, necessariamente o ser humano se faria um ser ético, um
ser de opção, de decisão. Um ser ligado a interesses e em relação aos quais
tanto pode manter-se fiel à eticidade quanto pode transgredi-la. É exatamente
porque nos tornamos éticos que se criou para nós a probabilidade, como afirmei
antes, de violar a ética.
Para que a educação fosse neutra era preciso que
não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com relação aos modos de
vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em
prática, aos valores a serem encarnados. Era preciso que não houvesse, em nosso
caso, por exemplo, nenhuma divergência em face da fome e da miséria no Brasil e
no mundo; era necessário que toda a população nacional aceitasse mesmo que
elas, miséria e fome, aqui e fora daqui, são uma fatalidade do fim do século.
Era preciso também que houvesse unanimidade na forma de enfrentá-las para
superá-las. Para que a educação não fosse uma forma política de intervenção no
mundo era indispensável que o mundo em que ela se desse não fosse humano. Há uma
incompatibilidade total entre o mundo humano da fala, da percepção, da
inteligibilidade, da comunicabilidade, da ação, da observação, da comparação,
da verificação, da busca, da escolha, da decisão, da ruptura, da ética e da
possibilidade de sua transgressão e a neutralidade não importa de quê.
O que devo pretender não é a neutralidade da
educação mas o respeito, a toda prova, aos educandos, aos educadores e às
educadoras. O respeito aos educadores e educadoras por parte da administração
pública ou privada das escolas; o respeito aos educandos assumido e praticado pelos
educadores não importa de que escola, particular ou publica. É por isto que
devo lutar sem cansaço. Lutar pelo direito que tenho de ser respeitado e pelo
dever que tenho de reagir a que me destratem. Lutar pelo direito que você, que
me lê, professora ou aluna, tem de ser você mesma e nunca, jamais, lutar por
essa coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade. Que é mesmo
a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder
minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? “Lavar as mãos” em face da
opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele. Como posso ser neutro
diante da situação, não importa qual seja ela, em que o corpo das mulheres e
dos homens vira puro objeto de espoliação e de descaso?
O que se coloca à educadora ou ao educador
democrático, consciente da impossibilidade da neutralidade da educação, é
forjar em si um saber especial, que jamais deve abandonar, saber que motiva e
sustenta sua luta: se a educação não
pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações
sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante. O que
quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da
transformação da sociedade, porque assim eu queira, nem tampouco é a
perpetuação do "status quo” porque o dominante o decrete. O educador e a
educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do seminário
que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é possível
mudar.
E isto reforça nele ou nela a importância de sua
tarefa político-pedagógica.
A professora democrática, coerente, competente,
que testemunha seu gosto de vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta sua
capacidade de luta, seu respeito às diferenças, sabe cada vez mais o valor que
tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua
presença no mundo, de que sua experiência na escola é apenas um momento, mas um
momento importante que precisa de ser autenticamente vivido.
3.6 – Ensinar exige saber escutar.
Recentemente, em conversa com um grupo de amigos
e amigas, uma delas, a professora Olgair Garcia, me disse que, em sua
experiência pedagógica de professora de crianças e de adolescentes mas também
de professora de professoras, vinha observando quão importante e necessário é saber escutar. Se, na verdade, o sonho que nos anima é
democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo,
sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos
demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a ferir com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o
outro, fala com ele. Mesmo que, em certas condições, precise de falar
a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra
posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua
fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a
difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em
uma fala com ele.
Há um sinal dos tempos, entre outros, que me
assusta: a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da
eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão, a criatividade
e o gosto da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos
vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas, de maneiras de ser,
em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se trata de asfixia
truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor
feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da
fábrica sobre seus operários, pelo Estado autoritário sobre os cidadãos, mas
pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência
extraordinária no que venho chamando “burocratização da mente”. Um estado
refinado de estranheza, de "autodemissão” da mente, do corpo consciente,
de conformismo do indivíduo, de acomodação diante de situações consideradas
fatalistamente como imutáveis. E a posição de quem encara os fatos como algo consumado,
como algo que se deu porque tinha que se dar da forma como se deu, é a posição,
por isso mesmo, de quem entende e vive a História como determinismo e não como possibilidade. É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todo poderosismo dos fatos que
não apenas se deram porque tinham que se dar mas que não podem ser
“reorientados” ou alterados.
Não há, nesta maneira mecanicista de compreender
a História, lugar para a decisão humana.*
Na medida mesma em que a desproblematização do
tempo, de que resulta que o amanhã ora é a perpetuação do hoje, ora é algo que
será porque está dito que será, não há lugar para a escolha, mas para a
acomodação bem comportada ao que está aí ou ao que virá. Nada é possível de ser
feito contra a globalização que, realizada porque tinha de ser realizada, tem
de continuar seu destino, porque assim está misteriosamente escrito que deve
ser. A globalização que reforça o mando das minorias poderosas e esmigalha e
pulveriza a presença impotente dos dependentes, fazendo-os ainda mais
impotentes é destino dado. Em face dela não há outra saída senão que cada um
baixe a cabeça docilmente e agradeça a Deus porque ainda está vivo. Agradeça a
Deus ou à própria globalização.
* Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da
Esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia
que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é
maior do que os mecanicismos que o minimizam.
A proclamada morte da História que significa, em
última análise, a morte da utopia e do sonho, reforça, indiscutivelmente, os
mecanismos de asfixia da liberdade. Daí que a briga pelo resgate do sentido cia
utopia ele que a prática educativa humanizante não pode deixar de estar impregnada
tenha de ser uma sua constante.
Quanto mais me deixe seduzir pela aceitação da
morte da História tanto mais admito que a impossibilidade do amanhã diferente
implica a eternidade do hoje neoliberal que aí está, e a permanência do hoje
mata em mim a possibilidade de sonhar. Desproblematizando o tempo, a chamada
morte da História decreta o imobilismo que nega o ser humano.
A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse
caso, falar a, que, na perspectiva democrática é um possível
momento do falar com, nem sequer é ensaiado. A desconsideração total pela
formação integral do ser humano, a sua redução a puro treino fortalecem a
maneira autoritária de falar de cima para baixo a que falta, por isso mesmo, a intenção
de sua democratização no falar com.
Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e
de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima
para baixo, mas insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca
a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é,
naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos
métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que
se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação
enquanto instrumento de apreciação do que fazer de sujeitos críticos a serviço,
por isso mesmo, da libertação e não da domesticação.
Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com.
No processo da fala e da escuta a disciplina do
silêncio a ser assumido com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e
escutam é um “sine qua” da comunicação dialógica. O primeiro sinal de que o
sujeito que fala sabe escutar é a demonstração de sua capacidade de controlar
não só a necessidade de dizer a sua palavra, que é um direito, mas também o
gosto pessoal, profundamente respeitável, de expressá-la.
Quem tem o que dizer tem igualmente o direito e
o dever de dizê-lo. É preciso, porém, que quem tem o que dizer saiba, sem
sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer. Mais ainda, que o que tem a dizer não é necessariamente,
por mais importante que seja, a verdade alvissareia por todos esperada. É
preciso que quem tem o que dizer saiba, sem dúvida nenhuma, que, sem escutar o
que quem escuta tem igualmente a dizer, termina por esgotar a sua capacidade de
dizer por muito ter dito sem nada ou quase nada ter escutado.
Por isso é que, acrescento, quem tem o que dizer
deve assumir o dever de motivar, de desafiar quem escuta, no sentido de que,
quem escuta diga, fale, responda. E
intolerável o direito que se dá a si mesmo o educador autoritário de
comportar-se como o proprietário da verdade de que se apossa e do tempo para
discorrer sobre ela. Para ele, quem escuta sequer tem tempo próprio pois o
tempo de quem escuta é o seu, o tempo de sua fala. Sua fala, por isso mesmo, se
dá num espaço silenciado e não num espaço com ou em silêncio. Ao contrário, o espaço do educador democrático,
que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente
de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala.
A importância do silêncio no espaço da
comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como
sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de
outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem
escutou. Fora disso, fenece a comunicação.
Voltemos a um ponto referido antes, mas sobre
que preciso insistir. Uma das características da experiência existencial no
mundo em comparação com a vida no suporte é a capacidade que mulheres e homens
criamos de inteligir o mundo sobre que e em que atuamos, o que se deu simultaneamente
com a comunicabilidade do inteligido. Não há inteligência da realidade sem a possibilidade
de ser comunicada.
Um dos sérios problemas que temos é como
trabalhar a linguagem oral ou escrita associada ou não à força da imagem, no
sentido de efetivar a comunicação que se acha na própria compreensão ou
inteligência do mundo. A comunicabilidade do inteligido é a possibilidade que ele
tem de ser comunicado mas não é ainda a sua comunicação.
Sou tão melhor professor, então, quanto mais
eficazmente consiga provocar o educando no sentido de que prepare ou refine sua
curiosidade, que deve trabalhar com minha ajuda, com vistas a que produza sua
inteligência do objeto ou do conteúdo de que falo. Na verdade, meu papel como
professor, ao ensinar o conteúdo a ou b, não é apenas o de me esforçar para, com clareza máxima, descrever
a substantividade do conteúdo para que o aluno o fixe. Meu papel fundamental,
ao falar com clareza sobre o objeto, é incitar o aluno a fim de que ele, com os
materiais que ofereço, produza a compreensão do objeto em lugar de recebê-la,
na íntegra, de mim. Ele precisa de se apropriar da inteligência do conteúdo
para que a verdadeira relação de comunicação entre mim, como professor, e ele,
como aluno se estabeleça. É por isso, repito, que ensinar não é transferir
conteúdo a ninguém, assim como aprender não é memorizar o perfil do conteúdo
transferido no discurso vertical do professor. Ensinar e aprender têm que ver
com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de
algo e com o empenho igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de
desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar. Isso não tem nada
que ver com a transferência de conteúdo e fala da dificuldade mas, ao mesmo
tempo, da boniteza da docência e da discência.
Não é difícil compreender, assim, como uma de
minhas tarefas centrais como educador progressista seja apoiar o educando para
que ele mesmo vença suas dificuldades na compreensão ou na inteligência do
objeto e para que sua curiosidade, compensada e gratificada pelo êxito da
compreensão alcançada, seja mantida e, assim, estimulada a continuar a busca permanente
que o processo de conhecer implica. Que me seja perdoada a reiteração, mas é preciso
enfatizar, mais uma vez: ensinar não é transferir inteligência do objeto ao
educando, mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne
capaz de inteligir e comunicar o inteligido. É neste sentido que se impõe a mim
escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em
sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele.
Escutar é obviamente algo que vai mais além da
possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido,
significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a
abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não
quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua
redução ao outro que fala. Isto não seria escuta, mas auto-anulação.
A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada,
a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar.
Pelo contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor
me situar do ponto de vista das ideias. Como sujeito que se dá ao discurso do
outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com
desenvoltura.
Precisamente porque escuta, sua fala discordante, em sendo afirmativa,
porque escuta, jamais é autoritária.
Não é difícil perceber como há umas tantas
qualidades que a escuta legítima demanda do seu sujeito.
Qualidades que vão sendo constituídas na prática
democrática de escutar.
Deve fazer parte de nossa formação discutir
quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo que elas precisam de
ser criadas por nós, em nossa prática, se nossa opção político-pedagógica é
democrática ou progressista e se somos coerentes com ela. É preciso que
saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos
outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao
novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos,
identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática
pedagógico-progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica.
Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas
virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina
pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino
a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não
as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto
superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente
não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.
Se a estrutura do meu pensamento é a única certa,
irrepreensível, não posso escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra
maneira que não a minha. Nem tampouco escuto quem fala ou escreve fora dos
padrões da gramática dominante. E como estar aberto às formas de ser, de pensar,
de valorar, consideradas por nós demasiado estranhas e exóticas de outra
cultura? Vemos como o respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige
de nós a humildade que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além
dos quais a nossa autovalia necessária vira arrogância e desrespeito aos
demais. É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo como
se cumprisse mera obrigação burocrática. A humildade exprime, pelo contrário,
uma das raras certezas de que estou certo: a de que ninguém é superior a
ninguém. A falta de humildade, expressa na arrogância e na falsa superioridade
de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra, de um gênero sobre o
outro, de uma classe ou de uma cultura sobre a outra, é uma transgressão da
vocação humana do ser mais.* O que a humildade não pode exigir de mim é a minha
submissão à arrogância e ao destempero de quem me desrespeita. O que a humildade
exige de mim, quando não posso reagir à altura da afronta, é enfrentá-la com dignidade.
A dignidade do meu silêncio e do meu olhar que transmitem o meu protesto
possível.
E óbvio que não posso me bater fisicamente com
um jovem a quem não é necessário juntar robustez e, menos ainda, a qualidade de
lutador. Nem por isso, porém, devo amesquinhar-me diante de seu desrespeito e
de seu agravo, trazendo-os comigo de volta para casa sem um gesto ao menos de
protesto.
É preciso que, assumindo com gravidade a minha
impotência na relação de poder entre mim e ele, fique sublinhada sua covardia.
É necessário que ele saiba que eu sei que sua falta de valor ético o
inferioriza. É preciso que ele saiba que, se fisicamente pode golpear-me e seus
golpes me causam dor, não tem, contudo, a força suficiente para dobrar-me a seu
arbítrio.
Sem bater fisicamente no educando o professor
pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudica-lo no processo de sua
aprendizagem. A resistência do professor, por exemplo, em respeitar a “leitura
de mundo” com que o educando chega à escola, obviamente condicionada por sua cultura
de classe e revelada em sua linguagem, também de classe, se constitui em um
obstáculo à sua experiência de conhecimento. Como tenho insistido neste e em
outros trabalhos, saber escutá-lo não significa, já deixei isto claro,
concordar com ela, a leitura do mundo ou a ela se acomodar, assumindo-a como
sua. Respeitar a leitura de mundo, do educando não é também um jogo tático com
que o educador ou educadora procura tornar-se simpático ao educando. É a maneira
correra que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais
crítica de inteligir o mundo.
Respeitar a leitura de mundo do educando
significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial,
como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento. É preciso que, ao
respeitar a leitura do mundo do educando para ir mais além dela, o educador
deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é
histórica e se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz
metodicamente rigorosa. E a curiosidade assim metodicamente rigorizada faz
achados cada vez mais exatos. No fundo, o educador que respeita a leitura de mundo
do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da
curiosidade, desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a
humildade crítica, própria da posição verdadeiramente científica.
O desrespeito à leitura de mundo do educando
revela o gosto elitista, portanto antidemocrático, do educador que, desta
forma, não escutando o educando, com ele não fala. Nele deposita seus comunicados.
Há algo ainda de real importância a ser
discutido na reflexão sobre a recusa ou ao respeito à leitura de mundo do
educando por parte do educador. A leitura de mundo revela, evidentemente, a
inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela
também o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação
da inteligência do mundo.
Uma das tarefas essenciais da escola, como centro
de produção sistemática de conhecimento, é trabalhar criticamente
inteligibilidade das coisas e dos fatos e a sua comunicabilidade. É imprescindível
portanto que a escola instigue constantemente a curiosidade do educando em vez de
“amaciá-la” ou “domesticá-la”. É preciso mostrar ao educando que o uso ingênuo
da curiosidade altera a sua capacidade de achar e obstaculiza a exatidão do
achado. É preciso por outro lado e, sobretudo, que o
educando vá assumindo o papel de sujeito da produção de sua inteligência do
mundo e não apenas o de recebedor da que
lhe seja transferida pelo professor.
* Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido.
Quanto mais me torno capaz de me afirmar como sujeito pode conhecer tanto melhor desempenho minha
aptidão para fazê-lo.
Ninguém pode conhecer por mim assim como não
posso conhecer pelo aluno. O que posso e o que devo fazer é, na perspectiva
progressista em que me acho, ao ensinar-lhe certo conteúdo, desafiá-lo a que se
vá percebendo na e pela própria pratica, sujeito capaz de saber. Meu papel de professor
progressista não é apenas o de ensinar matemática ou biologia mas sim, tratando
a temática que é, de um lado objeto de meu ensino, de outro, da aprendizagem do
aluno, ajudá-lo a reconhecer-se como arquiteto de sua
própria prática cognoscitiva.
Todo ensino de conteúdos demanda de quem se acha
na posição de aprendiz que, a partir de certo momento, vá assumindo a autoria também do conhecimento do objeto. O professor autoritário,
que recusa escutar os alunos, se fecha a esta aventura criadora.
Nega a si mesmo a participação neste momento de boniteza singular: o da
afirmação do educando como sujeito de conhecimento. É por isso que o ensino dos
conteúdos, criticamente realizado, envolve a abertura total do
professor ou da professora, à tentativa legítima do educando para tomar em suas
mãos a responsabilidade de sujeito que conhece. Mais ainda, envolve a
iniciativa do professor que deve estimular aquela tentativa no educando,
ajudando-o para que a efetive.
É neste sentido que se pode afirmar ser tão
errado separar prática de teoria, pensamento de ação, linguagem de ideologia,
quanto separar ensino de conteúdos de chamamento ao educando para que se vá
fazendo sujeito do processo de aprendê-los. Numa perspectiva progressista o que
devo fazer é experimentar a unidade dinâmica entre o ensino do conteúdo e o
ensino de que é e de como aprender. É ensinando matemática que ensino também
como aprender e como ensinar, como exercer a curiosidade epistemológica
indispensável à produção do conhecimento.
3.7 – Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica.
Saber igualmente fundamental à prática educativa
do professor ou da professora é o que diz respeito à força, às vezes maior do
que pensamos, da ideologia. E o que nos adverte de suas manhas, das armadilhas
em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação
da verdade dos faros, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a
realidade ao mesmo tempo em que nos torna “míopes”.
O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs
orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos ciprestes como sombras que
parecem muito mais manchas das sombras mesmas.
Sabemos que há algo metido na penumbra mas não o
divisamos bem. A própria “miopia” que nos acomete dificulta a percepção mais
clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que temos de
docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a
verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a realidade, de nos
“miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a
muitos de nós, aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neo-liberal
que proclama ser o desemprego no mundo uma desgraça do fim de século. Ou que os
sonhos morreram e que o válido hoje é o “pragmatismo” pedagógico, é o treino
técnico-científico do educando e não sua formação de que já não se fala.
Formação que, incluindo a preparação
técnico-científíca, vai mais além dela.
A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente
aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um
destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um
momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica
capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que
detêm o poder.
Fala-se, porém, em globalização da economia como
um momento necessário da economia mundial a que por isso mesmo, não é possível
escapar. Universaliza-se um dado do sistema capitalista e um instante da vida
produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil, o
México, a Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma
que os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e
não se discutem as condições anteriores e atuais das diferentes economias.
Nivelam-se os patamares de deveres entre as distintas economias sem se
considerarem as distâncias que separam os “direitos” dos fortes e o seu poder
de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos. Se a
globalização implica a superação de fronteiras, a abertura sem restrições ao
livre comércio, acabe-se então quem não puder resistir. Não se indaga, por
exemplo, se em momentos anteriores da produção capitalista nas sociedades que
lideram a globalização hoje elas eram tão radicais na abertura que consideram
agora uma condição indispensável ao livre comércio.
Exigem, no momento, dos outros, o que não
fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é
convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim
mesmo, de que não há nada a fazer mas seguir a ordem natural dos faros. Pois é
como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por
nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica.
O discurso da globalização que fala da ética
esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser
humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo
de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar
a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso
ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza
de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema
capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua
malvadez intrínseca.
Espero, convencido de que chegará o tempo em que,
passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim, o mundo se refará e
recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do lucro.
Não creio que as mulheres e os homens do mundo,
independentemente até de suas opções políticas, mas sabendo-se e assumindo-se
como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe como
uma espécie de mal-estar que se generaliza em face da maldade neoliberal.
Mal-estar que terminará por consolidar-se numa rebeldia nova em que a palavra
crítica, o discurso humanista, o compromisso solidário, a denúncia veemente da
negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo “genteficado” serão armas
de incalculável alcance.
Há um século e meio Marx e Engels gritavam em
favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora,
necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça
que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à
“fereza” da ética do mercado.
É neste sentido que jamais abandonei a minha
preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha
experiência educativa. A preocupação com a natureza humana* a que devo a minha
lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas
palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos.
Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove, sequer, se não
parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da
História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. Seres
éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho
insistentemente “falado” neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto
realmente me alegra saber-me um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o
próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia
é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo
das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. E a ética da solidariedade
humana.
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador
inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano, a me bater por
uma legislação que o defenda contra as arrancadas 'agressivas e injustas c]e
quem transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode estar acima
da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade
do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece
seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma
fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção
asiática, por exemplo, significa não apenas o colapso econômico-financeiro de
seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal
humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo
de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar
na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na
realidade histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é,
como disse e tenho repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma
globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e
não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo.
* Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da
Esperança, Cartas à Cristina e Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
O progresso científico e tecnológico que não
responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa
existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico
haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio
que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico
que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder
outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso
anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não tecnológica. O problema
me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer
coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade
dos outros de fazer e de ser, assim também não poderia ser livre para usar os
avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à
desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os
avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos
com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser
transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma
ética pequena, a do mercado, a do lucro.
Entre as transgressões à ética universal do ser
humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que implicasse a falta de
trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida. A
preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de
reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de
multiplicar-se.
Gostaria de deixar bem claro que não apenas
imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento
humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas
o lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que
nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele.
Se, de um lado, não ode haver desenvolvimento sem lucro este não pode ser, pó
por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o gozo
imoral do investidor.
De nada vale, a não ser enganosamente para uma
minoria que terminaria fenecendo também, uma sociedade eficazmente operada por
máquinas altamente “inteligentes”, substituindo mulheres e homens em atividades
as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer, e este é um
risco muito concreto que corremos.*
Não creio também que a política a dar carne a
este espírito ético possa jamais ser a ditatorial, contraditoriamente de
esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário já é em si uma
contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de
mulheres que se perdem ao perderem a liberdade. É exatamente por causa de tudo
isso que, como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico,
começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade,
só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a
natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem
um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos.
Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos como estes:
“ O negro é geneticamente inferior ao branco. É
uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz."
“Em defesa de sua honra, o marido matou a
mulher.” “Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?”
“Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e
logo quer as mãos.
“Nós já sabemos o que o povo quer e do que
precisa. ―Perguntar-lhe seria uma
perda de tempo.”
“O saber erudito a ser entregue às massas
incultas é a sua salvação.”
* MOERMANN, Joseph. Le Courrier – 8 Août, 1996 – Suisse La
globalization de l'economie provoquera-t-elle un mai 68 mondial? – La marmite
mondiale sousf pression.
“Maria é negra, mas é bondosa e competente.”
“Esse sujeito é um bom cara. E nordestino, mas e
sério e prestimoso.”
“Você sabe com quem está falando?”
“Que vergonha, homem se casar com homem, mulher
se casar com mulher.
“É isso, você vai se meter com gentinha, e o que
dá.
“Quando negro não suja na entrada, suja na
saída.”
“O governo tem que investir mesmo é nas áreas
onde mora gente que paga imposto.”
“Você não precisa pensar. Vote em fulano, que
pensa por você.”
“Você, desempregado, seja grato. Vote em quem
ajudou você. Vote em fulano de tal.”
“Está se vendo, pela cara, que se trata de gente
fina, de trato, que tomou chá em pequeno e não de um pé rapado qualquer.”
“O professor falou sobre a Inconfidência
Mineira.”
“O Brasil foi descoberto por Cabral.”
No exercício crítico de minha resistência ao
poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando
sabedoria indispensável à minha prática docente. A necessidade desta resistência
crítica, por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude sempre aberta aos
demais, aos dados da realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me
defende de tornar-me absolutamente certo das certezas. Para me resguardar das
artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me
enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para
guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com
acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar
exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário
da verdade. No fundo, a atitude correra de quem não se sente dono da verdade
nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente
feito. Atitude correra de quem se encontra em permanente disponibilidade a
tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar.
Disponibilidade à vida e a seus contratempos. Estar disponível é estar sensível
aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apeiam, ao
canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao riso
manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços que se abrem
para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade
permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção,
curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o
contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem
preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil.
3.8 – Ensinar exige disponibilidade para o diálogo.
Nas minhas relações com os outros, que não
fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da política, da
ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que devo “conquista-los”,
não importa a que custo, nem tampouco temo que pretendam “conquistar-me”. É no respeito
às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que
digo, que me encontro com eles ou com elas. É na minha disponibilidade à realidade que construo a minha segurança,
indispensável à própria disponibilidade. É impossível viver a disponibilidade à
realidade sem segurança, mas é impossível cambem criar a segurança fora do risco da disponibilidade.
Como professor não devo poupar oportunidade para
testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, ao
analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão governamental.
Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de que sou o
“maior”.
Minha segurança se funda na convicção de que sei
algo e de que ignoro algo a que se junta a certeza de que posso saber melhor o
que já sei e conhecer o que ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber
confirmado pela própria experiência de que, se minha inconclusão, de que sou
consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho
para conhecer.
Me sinto seguro porque não há razão para me
envergonhar por desconhecer algo. Testemunhar a abertura aos outros, a
disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática
educativa.
Viver a abertura respeitosa aos outros e, de
quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura ao
outro como objeto da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente.
A razão ética da abertura, seu fundamento político, sua referência pedagógica;
a boniteza que há nela como viabilidade do diálogo. A experiência da abertura
como experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado.
Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura
de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos
outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude.
O sujeito que se abre ao mundo e aos outros
inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação
e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História.
Certa vez, numa escola da rede municipal de São
Paulo que realizava uma reunião de quatro dias com professores e professoras de
dez escolas da área para planejar em comum suas atividades pedagógicas, visitei
uma sala em que se expunham fotografias das redondezas da escola.
Fotografias de ruas enlameadas, de ruas bem
postas também. Fotografias de recantos feios que sugeriam tristeza e
dificuldades. Fotografias de corpos andando com dificuldade, lentamente, alquebrados,
de caras desfeitas, de olhar vago. Um pouco atrás de mim dois professores
faziam comentários em torno do que lhes tocava mais de perto. De repente, um
deles afirmou: “Há dez anos ensino nesta escola. Jamais conheci nada de sua
redondeza além das ruas que lhe dão acesso. Agora, ao ver esta exposição* de
fotografias que nos revelam um pouco de seu contexto, me convenço de quão
precária deve ter sido a minha tarefa formadora durante todos estes anos.
Como ensinar, como formar sem estar aberto ao
contorno geográfico, social, dos educandos?”
A formação dos professores e das professoras
devia insistir na constituição deste saber necessário e que me faz certo desta coisa
óbvia, que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico,
social e econômico em que vivemos. E ao saber teórico desta influência teríamos
que juntar o saber teórico-prático da realidade concreta em que os professores
trabalham. Já sei, não há dúvida, que as condições materiais em que e sob que
vivem os educandos lhes condicionam a compreensão do próprio mundo, sua
capacidade de aprender, de responder aos desafios. Preciso, agora, saber ou
abrir-me à realidade desses alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica.
Preciso tornar-me, se não absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo, no mínimo,
menos estranho e distante dela. E a diminuição de minha estranheza ou de minha distância
da realidade hostil em que vivem meus alunos não é uma questão de pura
geografia.
Minha abertura à realidade negadora de seu
projeto de gente é uma questão de real adesão de minha parte a eles e a elas, a
seu direito de ser. Não é mudando-me para uma favela que provarei a eles e a
elas minha verdadeira solidariedade política sem falar ainda na quase certa perda
de eficácia de minha luta em função da mudança mesma. O fundamental é a minha decisão
ético-política, minha vontade nada piegas de intervir no mundo. É o que Amilcar
Cabral chamou “suicídio de classe” e a que me referi, na Pedagogia do Oprimido, como páscoa ou travessia. No fundo, diminuo a distância que me separa das
condições malvadas em que vivem os explorados, quando, aderindo realmente ao
sonho de justiça, luto pela mudança radical do mundo e não apenas espero que
ela chegue porque se disse que chegará. Diminuo a distância entre mim e a
dureza de vida dos explorados não com discursos raivosos, sectários, que só não
são ineficazes porque dificultam mais ainda meus alunos, diminuo a distância
que me separa de suas condições negativas de vida na medida em que os ajudo a
aprender não importa que saber, o do torneiro ou o do cirurgião, com vistas à
mudança do mundo à superança das estruturas injustas, jamais com vistas à sua
imobilização.
O saber alicerçante da travessia na busca da
diminuição da distância entre mim e a perversa realidade dos explorados é o
saber fundado na ética de que nada legitima a exploração dos homens e das
mulheres pelos homens mesmos ou pelas mulheres. Mas, este saber não basta. Em primeiro
lugar, é preciso que ele seja permanentemente tocado e empurrado por uma
calorosa paixão que o faz quase um saber arrebatado. É preciso também que a ele
se somem saberes outros da realidade concreta, da força da ideologia; saberes
técnicos, em diferentes áreas, como a da comunicação. Como desocultar verdades
escondidas, como desmistificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente
em que facilmente caímos.
* As fotos que compunham a exposição haviam sido
feitas por um grupo de professoras da área.
Como enfrentar o extraordinário poder da mídia,
da linguagem da televisão, de sua “sintaxe” que reduz a um mesmo plano o
passado e o presente e sugere que o que ainda não há já está feito.
i%aís ainda, que diversifica temáticas no
noticiário sem que haja tempo para a reflexão sobre os variados assuntos. De
uma notícia sobre Miss Brasil se passa a um terremoto na China; de um escândalo
envolvendo mais um banco dilapidado por diretores inescrupulosos temos cenas de
um trem que descarrilou em Zurique.
O mundo encurta, o tempo se dilui: o ontem vira
agora; o amanhã já está feito. Tudo muito rápido.
Debater o que se diz e o que se mostra e como se
mostra na televisão me parece algo cada vez mais importante.
Como educadores e educadoras progressistas não
apenas não podemos desconhecer a televisão mas devemos usá-la, sobretudo,
discuti-la.
Não temo parecer ingênuo ao insistir não ser
possível pensar sequer em televisão sem ter em mente a questão da consciência
crítica. É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da
comunicação, processo impossível de ser neutro. Na verdade, toda comunicação é
comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou
explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente
referido. Daí também o papel apurado que joga a ideologia na comunicação,
ocultando verdades mas também a própria ideologização no processo comunicativo.
Seria uma santa ingenuidade esperar de uma emissora de televisão do grupo do
poder dominante que, noticiando uma greve de metalúrgicos, dissesse que seu
comentário se funda nos interesses patronais.
Pelo contrário, seu discurso se esforçaria para
convencer que sua análise da greve leva em consideração os interesses da nação.
Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão
“entregues” ou “disponíveis” ao que vier.
Quanto mais nos sentamos diante da televisão –
há situações de exceção – como quem, em férias, se abre ao puro repouso e
entretenimento, tanto mais risco corremos de tropeçar na compreensão de fatos e
de acontecimentos. A postura crítica e desperta nos momentos necessários não
pode faltar.
O poder dominante, entre muitas, leva mais uma
vantagem sobre nós. E que, para enfrentar o ardil ideológico de que se acha
envolvida a sua mensagem na mídia, seja nos noticiários, nos comentários aos
acontecimentos ou na linha de certos programas, para não falar na propaganda comercial,
nossa mente ou nossa curiosidade teria de funcionar epistemologicamente todo o tempo.
E isso não é fácil. Mas, se não é fácil estar permanentemente em estado de
alerta é possível saber que não sendo um demônio que nos espreita para nos
esmagar, o televisor diante do qual nos achamos não é tampouco um instrumento
que nos salva. Talvez seja melhor contar de um a dez antes de fazer a afirmação
categórica a que Wright Mills* se refere: “É verdade, ouvi no noticiário das
vinte horas.”
3.9 – Ensinar exige querer bem aos educandos.
E o que dizer, mas sobretudo que esperar de mim,
se, como professor, não me acho tomado por este outro saber, o de que preciso
estar aberto ao gosto de querer bem, às vezes, à coragem de querer bem aos
educandos e à própria prática educativa de que participo. Esta abertura ao
querer bem não significa, na verdade, que, porque professor me obrigo a querer
bem a todos os alunos de maneira igual. Significa, de fato, que a afetividade
não me assusta, que não tenho medo de expressá-la. Significa esta abertura ao
querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar o meu compromisso com os
educandos, numa pratica específica do ser humano. Na verdade preciso descartar
como falsa a separação radical entre seriedade docente e efetividade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista
democrático, que serei tão melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais
distante e "cinzento” me ponha nas minhas relações com os alunos, no trato
dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída
da cognoscibilidade. O que não posso obviamente permitir é que minha
afetividade interfira no cumprimento ético de meu dever de professor no
exercício de minha autoridade. Não posso
condicionar a avaliação do trabalho escolar de um aluno ao maior ou
menor bem querer que tenha por ele.
* Mills, Wright. A elite do poder.
A minha abertura ao querer bem significa a minha
disponibilidade à alegria de viver. Justa alegria de viver, que, assumida
plenamente, não permite que me transforme num ser “adocicado” nem tampouco num
ser arestoso e amargo.
A atividade docente de que a discente não se
separa é uma experiência alegre por natureza. E falso também tomar como
inconciliáveis seriedade docente e alegria, como se a alegria fosse inimiga da
rigoridade. Pelo contrário, quanto mais metodicamente rigoroso me torno na
minha busca e na minha docência, tanto mais alegre me sinto e esperançoso também.
A alegria não chega apenas no encontro do achado mas faz parte do processo da
busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza
e da alegria. O desrespeito à educação, aos educandos, aos educadores e às
educadoras corrói ou deteriora em nós, de um lado, a sensibilidade ou a
abertura ao bem querer da própria prática educativa de outro, a alegria necessária
ao que-fazer docente. É digna de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica
para despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto
da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido. É esta força
misteriosa, às vezes chamada vocação, que explica a quase devoção com que a
grande maioria do magistério nele permanece, apesar da imoralidade dos
salários. E não apenas permanece, mas cumpre, como pode, seu dever.
Amorosamente, acrescento.
Mas é preciso, sublinho, que, permanecendo e
amorosamente cumprindo o seu dever, não deixe de lutar politicamente, por seus
direitos e pelo respeito à dignidade de sua tarefa, assim como pelo zelo devido
ao espaço pedagógico em que atua com seus alunos.
É preciso, por outro lado, reinsistir em que não
se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria, prescinda da
formação científica séria e da clareza política dos educadores ou educadoras. A
prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio
técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje. É exatamente
esta permanência do hoje neoliberal que a ideologia contida no discurso da
“morte da História” propõe. Permanência do hoje a que o futuro
desproblematizado se reduz. Daí o caráter desesperançoso, fatalista, anti-utópico
de uma tal ideologia em que se forja uma educação friamente tecnicista e se
requer um educador exímio na tarefa de acomodação ao munido e não na de sua
transformação. Um educador com muito pouco de formador, com muito mais de treinador, de transferidor de
saberes, de exercitador de
destrezas.
Os saberes de que este educador
"pragmático” necessita na sua prática não são os de que venho falando
neste livro. A mim não me cabe falar deles, os saberes necessários ao educador “pragmático”
neoliberal mas, denunciar sua atividade anti-humanista.
O educador progressista precisa estar convencido
como de suas consequências é o de ser o seu trabalho uma especificidade humana.
Já vimos que a condição humana fundante da educação é precisamente a
inconclusão de nosso ser histórico de que nos tornamos conscientes. Nada que diga
respeito ao ser humano, à possibilidade de seu aperfeiçoamento físico e moral,
de sua inteligência sendo produzida e desafiada, os obstáculos a seu
crescimento, o que possa fazer em favor da boniteza do mundo como de seu
enfeamento, a dominação a que esteja sujeito, a liberdade por que deve lutar,
nada que diga respeito aos homens e às mulheres pode passar despercebido pelo
educador progressista. Não importa com que faixa etária trabalhe o educador ou
a educadora. O nosso é um trabalho realizado com gente, miúda, jovem ou adulta,
mas gente em permanente processo de busca. Gente formando-se, mudando,
crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os
valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir. Não sendo superior nem
inferior a outra prática profissional, a minha, que é a prática docente, exige
de mim um alto nível de responsabilidade ética de que a minha própria capacitação
científica faz parte. É que lido com gente. Lido, por isso mesmo,
independentemente do discurso ideológico negador dos sonhos e das utopias, com
os sonhos, as esperanças tímidas, às vezes, mas às vezes, fortes, dos
educandos. Se não posso, de um lado, estimular os sonhos impossíveis, não devo,
de outro, negar a quem sonha o direito de sonhar. Lido com gente e não com
coisas. E porque lido com gente, não posso, por mais que, inclusive, me dê
prazer entregar-me à reflexão teórica e crítica em torno da própria prática
docente e discente, recusar a minha atenção dedicada e amorosa à problemática
mais pessoal deste ou daquele aluno ou aluna.
Desde que não prejudique o tempo normal da
docência, não posso fechar-me a seu sofrimento ou à sua inquietação porque não
sou terapeuta ou assistente social.
Mas sou gente. O que não posso, por uma questão
de ética e de respeito profissional, é pretender passar por terapeuta. Não
posso negar a minha condição de gente de que se alonga, pela minha abertura
humana, uma certa dimensão terápica.
Foi convencido disto que, desde jovem, sempre
marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde encontro os alunos, com
quem comparto a prática educativa, Foi sempre como prática de gente que entendi
o que-fazer docente. De gente inacabada, de gente curiosa, inteligente, de
gente que pode saber, que pode por isso ignorar, de gente que, não podendo
passar sem ética se tornou contraditoriamente capaz de transgredi-la. Mas, se
nunca idealizei a prática educativa, se em tempo algum a vi como algo que, pelo
menos, parecesse com um que-fazer de anjos, jamais foi fraca em mim a certeza
de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos
obstaculizam de ser mais. Naturalmente, o que de maneira permanente me ajudou a
manter esta certeza foi a compreensão da História como possibilidade e não como
determinismo, de que decorre necessariamente a importância do papel da
subjetividade na História, a capacidade de comparar, de analisar, de avaliar,
de decidir, de romper e por isso tudo, a importância da ética e da política.
É esta percepção do homem e da mulher como seres
“programados, mas para aprender” e, portanto, para ensinar, para conhecer, para
intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício constante
em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e
educandos. Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como
uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções desejos, os
sonhos devessem ser reprimidos por um de ditadura reacionalista. Nem tampouco
compreendi a prática educativa como uma experiência que faltasse o rigor em que
se gera a necessária disciplina intelectual.
Estou convencido, porém, de que a rigorosidade
séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me
fazem necessariamente um se amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em
palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade
científica. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa arrogância.
Não nego a competência, por outro lado, de arrogantes, mas lamento neles a ausência
de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria melhor. Gente
mais gente.
Capítulo 1 – Não há
docência sem discência
1.1 – Ensinar exige
rigorosidade metódica
1.2 – Ensinar exige
pesquisa
1.3 – Ensinar exige
respeito aos saberes dos educandos
1.4 – Ensinar exige
criticidade
1.5 – Ensinar exige
estética e ética
1.6 – Ensinar exige a
corporeificação das palavras pelo exemplo
1.7 – Ensinar exige
risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação
1.8 – Ensinar exige
reflexão crítica sobre a prática
1.9 – Ensinar exige o
reconhecimento e a assunção da identidade cultural
Capítulo 2 – Ensinar não
é transferir conhecimento
2.1 – Ensinar exige
consciência do inacabamento
2.2 – Ensinar exige o
reconhecimento de ser condicionado
2.3 – Ensinar exige
respeito à autonomia do ser do educando
2.4 – Ensinar exige bom
senso
2.5 – Ensinar exige
humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores
2.6 – Ensinar exige
apreensão da realidade
2.7 – Ensinar exige
alegria e esperança
2.8 – Ensinar exige a
convicção de que a mudança é possível
2.9 – Ensinar exige
curiosidade
Capítulo 3 – Ensinar é
uma especificidade humana
3.1 – Ensinar exige
segurança, competência profissional e generosidade
3.2 – Ensinar exige
comprometimento
3.3 – Ensinar exige
compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo
3.4 – Ensinar exige
liberdade e autoridade
3.5 – Ensinar exige
tomada consciente de decisões
3.6 – Ensinar exige saber
escutar
3.7 – Ensinar exige
reconhecer que a educação é ideológica
3.8 – Ensinar exige
disponibilidade para o diálogo
3.9 – Ensinar exige querer bem aos educandos