terça-feira, 26 de julho de 2016
O GRANDE MENTECAPTO
Fernando Sabino é autor
contemporâneo dos
mais importantes. Dono de um estilo inconfundível em que ressalta o extremo cuidado com a linguagem, é um especialista em criar situações cômicas de profunda beleza plástica. Sua capacidade descritiva faz com que o leitor, além de se deleitar com a complicação da trama, consiga visualizar a cena criada pelo
narrado. Sua obra é extensa e
inclui principalmente crônicas e
contos. Seus romances ― O Encontro Marcado; O Menino no Espelho; O Grande
Mentecapto ― são fruto de
profunda preparação e
artesanato impecável. Por
isso mesmo cresce a cada dia a importância de sua obra no panorama da atual Literatura Brasileira.
Nesse romance de 1979, o Autor elabora uma trama com a nítida intenção de homenagear as pessoas humildes, simples e puras. Já na epígrafe da narrativa, "Todo aquele, pois, que se fizer pequeno como
este menino, este será o maior no
reino dos céus.".
Nota-se a vontade de elevar os puros, os inocentes e os ingênuos.
Na linha da novela picaresca ‒ vide o Dom Quixote de La Mancha, de
Cervantes ‒, em que o personagem se desloca por um espaço indefinido, à cata dos conflitos, para resolvê-los heroicamente, Viramundo vive uma sequência de peripécias acontecidas no Estado de Minas Gerais, contracenando com
personagens dos mais variados matizes e comportando-se sempre como o
bem-intencionado, o puro, o ingênuo submetido às
artimanhas e maldades de um mundo que ainda não está de todo
resolvido. Andarilho, louco, despossuído, vagabundo, idealista. Marginal em uma sociedade que não entende e em que não se enquadra, o Viramundo instaura um sentimento
de ternura e de pena por todos aqueles que, em sua simplicidade, sofrem o
descaso, a ironia, a opressão e a prepotência.
Como o Quixote, com a sua amada Dulcinéia, e como Dirceu, com a sua adorada Marília, Viramundo põe em suas
ações
tresvariadas a esperança de
realizar-se emocionalmente com a sua idealizada e inalcançável Marília, filha do governador de Minas Gerais. Sua ilusão alucinada é reforçada pelos
pseudos amigos que o enganam com falsas cartas de amor e incentivam sua loucura
mansa e seu sonho impossível.
Viramundo conhece que o mundo é uma grande metáfora e o
trata com idealismo como se ele fosse real. Consertar o mundo é sua missão e ele se dedica a ela com toda a força de sua decisão, não se deixando abalar pelo insucesso, pelo ridículo, pela violência ou pelo vitupério. Em seu delírio, o
irreal e o real andam de mãos dadas, não há a separação entre o concreto e o abstrato, e por isso o herói não se abala física ou
emocionalmente com nada com que se defronte: não teme os fortes, os violentos; não se assusta com fantasmas e nem com ameaças; aceita resignadamente o que a vida lhe
reserva.
Percebe-se aqui que, além de pícaro,
nosso herói pode ser
considerado como bufão, pois
jacta-se tolamente sobre supostas capacidades de resolver as injustiças e o desacerto do mundo. Não tem qualquer ligação definitiva com a vida; não assume compromissos; é desprezado e usado por aqueles com os quais se relaciona.
A pureza deste aventureiro é a crítica à hipocrisia das relações humanas em um mundo que perdeu o sentido da solidariedade e da
fraternidade. Sua alegria ingênua e desinteressada opõe-se ao jogo bruto dos interesses malferidos, ao conservadorismo e à arrogância. Porta-voz dos loucos, dos mendigos, das prostitutas, o Viramundo
conhece os meandros da enganação e da falsidade dos políticos e dos poderosos.
A crítica à mesmice, ao chavão e ao clichê faz-se
pela presença da paródia a muitos autores e personagens historicamente
conhecidos.
Viramundo não era
conhecido, mas termina por criar fama em razão dos casos incríveis em
que se envolve. Sob a aparência imunda de um mendigo está um sujeito com cultura geral incomum. Sua fala de homem conhecedor
surpreende e sua experiência de
ex-seminarista e ex-militar confunde e admira aqueles com quem convive. Sua
esquisitice e suas respostas prontas a todas as indagações fazem com se acredite tratar-se de um louco
manso e inofensivo.
Outro aspecto interessante é a exploração da temática da loucura. O Autor parece convidar o leitor
a uma reflexão sobre a
origem e o convívio com a
ideia da excentricidade do comportamento humano. Viramundo pode ser considerado
um louco, mas quem não o é? O que a sociedade considera loucura? Como
classificar e tratar os indivíduos que atuam em dissonância com aquilo que se considera normalidade? A sociedade mostrada no
romance está povoada de
tipos que comumente chamamos de loucos: os habitantes de Mariana agem
desvairadamente ao tentar linchar Dona Peidolina; o diretor do hospício é mais estranho que os próprios internos do manicômio; o capitão
Batatinhas é absolutamente
alienado. Há no decorrer
de toda a narrativa o questionamento da fragilidade dos limites entre a sanidade
e a loucura.
No limiar da consumação de sua caminhada, Viramundo mudou. No começo era idealista e cheio dos cometimentos da paixão. Manteve-se assim durante muito tempo até encarar a dura realidade da convivência humana. A série de acontecimentos em que figura como perdedor física e emocionalmente faz com que se desiluda.
Descobre que as cartas de amor eram falsas; os amigos eram falsos; sua crença era falsa. Por todo lado só encontra sofrimento, opressão, hipocrisia. Está
só, absolutamente só, e a solidão é tudo que lhe resta.
Seu fim é emblemático. Morre vitimado pelo próprio irmão. Paga por um crime que não cometeu. A intertextualidade bíblica é evidente:
compara a trajetória e o
comportamento de Viramundo com a Via-Sacra do Cristo, em todos os sentidos, inclusive
no sacrifício final.
SABINO, Fernando. O Grande Mentecapto. Rio de Janeiro: Record, 44ª edição, 1995.
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