segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Laços de família
(Clarice Lispector)
Inclui-se
entre os melhores livros de contos de nossa Literatura. São 13 contos
centrados, tematicamente, no processo de aprisionamento dos indivíduos através
dos "laços de família", de sua prisão doméstica, de seu cotidiano. As
formas de vida convencionais e estereotipadas não se repetindo de geração para
geração, submetendo-se as consciências e as vontades. A dissecação da classe média
carioca resulta numa visão, desencantada e descrente dos liames familiares, dos
"laços" de convenção e interesse que minam a precária união familiar.
Os três mais conhecidos são Amor, Uma galinha, e Feliz Aniversário.
Devaneio e embriaguez duma rapariga
Uma típica senhora portuguesa
casada, certo dia ao encontrar-se defronte ao espelho a mirar-se, estando só em casa (os filhos e o
marido estavam fora) começou a devanear. Tanto que ficou o tempo inteiro no quarto sob a cama, o que
fez o marido pensar que esta estava doente.
Tão logo os filhos voltam
ao lar, a vida retoma o seu norte e nossa personagem volta ao seu ritmo cotidiano,
apenas desmanchado por um encontro de negócios entre seu marido e respectivo chefe.
Embriaga-se e desenvolve muita prosa com o chefe do marido, em
verdade enciumava a beleza da vestimenta de outra mulher no recinto e isto lhe feriu
a vaidade.
Ao chegar em casa repensa sua própria sensualidade e o desejo que podia despertar nos homens.
Amor
Ana, uma mulher casada, pacata e mãe de dois filhos, tinha
uma vida doméstica muito calma,
donde cuidava dos seus com o esmero e amor típicos de uma pessoa fraterna e sensível. Aliás Ana, em hebraico
significa "pessoa benéfica, piedosa".
Certo dia ao ir às compras encontrou-se com um cego que muito a impressionou; com a freada
brusca do bonde onde se encontrava, os ovos que carregava acabaram quebrando-se
pronto! A sua paz tão duramente conquistada
desapareceu.
Transtornada acabou por descer no Jardim Botânico que por sua beleza
fê-la temer o próprio inferno. Aqui
podemos fazer um paralelo entre a beleza que salta aos olhos e o cego que está privado disto_ este último vive o próprio inferno em terra.
Esta então é a explicação de tanto que
impressionara a personagem.
Ao voltar para casa sentia que alguma coisa havia mudado dentro
de si, abraçou o filho tão fortemente que o
assustou e foi ajudar o marido quando este derrubou o café.
Carinhosamente este
pegou-lhe a mão e levou-a para o
quarto para dormirem.
Uma galinha
Uma galinha de domingo, pronta para o abate. Contudo quando
apanhada pelo pai da menina que é a narradora da estória, a galinha acaba
pondo um ovo, imediatamente a menina avisa os demais familiares do fato e
alerta-os para a nova condição de "mãe" da galinha.
O pai de família, sentindo-se culpado por tê-la feito correr para o abate, acaba por nomear a ave como de estimação sob pena de que se o
animal fosse sacrificado nunca mais voltaria a alimentar-se da galinha.
Contudo, houve um dia em que "mataram-na, comeram-na e
passaram-se anos."
A imitação da rosa
Laura, casada e sem filhos, preparava-se para um jantar na
casa de amigos. Era a primeira vez que ela faria isto desde que voltara do hospital,
onde fora internada. Provavelmente por causa de um surto. Ela pretendia estar
pronta, de banho tomado, em seu vestido marrom, a casa limpa e a empregada
despachada, quando seu marido, Armando, chegasse. Assim teria tempo livre para
ficar à disposição dele. e ajudá-lo a arrumar-se.
Laura parecia perseguir a perfeição a todo custo, vigiava-se para ser uma esposa modelo, submissa e
obediente, mediana até na cor dos cabelos, nem
loura, nem morena: de modestos cabelos marrons Ela procura parecer normal,
premedita todos os seus gostos. Não quer que os outros se preocupem com ela. Pensa o quanto seria bom ver o
marido enfim relaxado, conversando como amigo, no jantar, sem lembrar-se de que
ela existe.
Exausta e feliz, pois acabara de passar em ferro todas as
camisas de Armando. Laura sentou-se na poltrona da sala e cochilou um breve
instante. Quando acordou, teve a sensação de que a sala estava renovada. Admirou intensamente as rosas que comprara
pela manhã, na feira. Eram
perfeitas. Resolveu então dá-las a amiga que iria, à noite visitar. Estava
decidido, mandaria as flores pela empregada. Mas, logo depois, Laura hesitava.
Por que as rosas, tão bonitas, não podiam ser dela
mesma? Por que a beleza e exuberância das rosas a ameaçava? Acabou cedendo-as, a empregada levou as flores, e ela não conseguiu voltar atrás.
É provável que a perfeição que Laura vira nas
rosas tivesse lhe provocado o impulso de romper novamente com seu lado submisso
e servil para se tornar incansável. Super-humana, independente, tranquila, perfeita e serena.
Quando o marido chegou do trabalho, Laura ainda estava sentada
na poltrona, e nada tinha feito do que planejara Dirigiu-se a ele:
"Voltou. Armando. Voltou. (..) Não pude impedir. Disse ela, e a
derradeira piedade pelo homem estava ria sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir. Repetiu,
(...) Foi por causa das rosas, disse com modéstia(...) Ele a olhou envelhecido e curioso.
Ela estava sentada com seu vestidinho de casa. Ele sabia que
ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável.
Feliz aniversário
Tudo preparado para o encontro anual da família. Na casa de Zilda,
a única filha, as bolas coloridas
espalhavam-se pela sala e o bolo confeitado enfeitava o centro da mesa. Na cabeceira,
arrumada e perfumada com água de colônia para disfarçar o cheiro de
guardado, estava Cornélia, a matriarca e
aniversariante que completava 89 anos.
Primeiro chegaram as noras com os netos, depois os filhos. A
velha. Sentada. Impassível, se perguntava como ela, tão forte, pudera gerar
uma família tão medíocre.
Cantaram, parabéns atrapalhados todos fingiam entusiasmo, incapazes de uma alegria verdadeira.
A velha foi ríspida o quanto pode.
Escandalizou os presentes e envergonhou Zilda, cuspindo no chão.
Temos o retrato de uma velha amargurada pela morte do filho
que admirava, e o desprezo por todos os demais é oriundo neste fato. É preciso observar que Cornélia é a matriarca de todo o
clã e seu nome é de acepção latina e significa
duro, forte.
A menor mulher do mundo
Encontrada no coração da África, por Marcel
Pretre, um caçador e explorador, a
menor mulher do mundo tinha 45cm e era escura como um macaco. Vivia numa árvore com o seu concubino
e estava grávida.
A sua foto, tirada pelo francês, na qual ela aparecia em tamanho natural, foi publicada em jornais de
todo o planeta despertando nas famílias o desejo de possuir e proteger aquele pigmeu do sexo feminino, ser
humano em miniatura.
Os selvagens Bantos, conterrâneos da menor mulher do mundo, adoravam capturar e comer aquelas
miniaturas. As crianças queriam a mulher
para brincarem de boneca.
"Mamãe, se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele
está dormindo? Quando ele
acordasse, que susto, hein", disse um menino. Sua mãe olhava-se no espelho
e enrolava o cabelo quando ouviu isso, Lembrou-se de uma história contada pela empregada,
que passara a vida num orfanato.
As meninas da instituição não tinham brinquedos. Um
dia, uma delas morreu, e as outras esconderam-na das freiras no armário. Quando não estavam sendo
vigiadas, pegavam a defunta como se fosse uma boneca, davam-lhe banho, renteavam-lhes
os cabelos botavam-na de castigo, punham-na para dormir... Pensando nisso a
mulher considerou cruel a necessidade humana de amar e possuir, a malignidade
de nosso desejo de ser feliz, a ferocidade com que queremos brincar.
A alma das famílias queria devotar-se àquela frágil criatura africana.
Enquanto isso, a própria coisa rara, a
menor mulher do mundo, grávida, sentia o seu peito morno de amor.
Amava e ria. Amava o explorador amarelo, a sua bota, o seu
anel brilhante. Amava e ria, e deixava o homem grande perplexo. Pequena Flor,
era assim que o francês a chamava, sabia que
o amor era não ser comida pelos
Bantos, era achar uma bota bonita, gostar da cor do homem que não é negro, e rir.
O explorador não entendia o amor que lhe saía por aquele riso. Ele, que já conhecia um pouco da sua língua, fazia-lhe algumas perguntas, às quais Pequena Flor respondia "sim", "Que era muito bom ter
uma árvore para morar, sua,
sua mesmo, pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir."
O Jantar
Num restaurante, um homem observa atentamente um velho a
comer. Ambos não se conheciam. A brusquidão e a dureza do velho
chamaram a atenção do homem, que lhe vigiava
cada gesto. Até que o homem, extasiado,
e sentindo certa náusea, percebeu no velho
uma lágrima. Então, não tocou mais no prato,
enquanto o velho terminou a sua refeição, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garçom e atravessou o salão, luminoso,
desaparecendo. O observador medita: "eu sou um homem ainda."
"Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando
soube que vou morrer eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruiria. Empurro
o prato, rejeito a carne e seu sangue".
Preciosidade
Ela era uma estudante de 15 anos, não era bonita, mas tinha
sua preciosidade. A mocinha, protagonista deste conto, atravessará este estado
transformando-se em mulher, rito em que se dará a perda do que lhe é precioso possivelmente sua virgindade.
Acordava muito cedo para ir à escola, precisava tomar um ônibus e um bonde, além de caminhar até o ponto. O caminho era
difícil, não gostava que a
olhassem. Andava rígida, severa, não admitindo sequer que
os homens no ônibus ou os rapazes na
escola pensassem nela. Mas o barulho de seus sapatos com saltos de madeira
chamava a atenção de todos, o que a
perturbava terrivelmente. Ela era inteligente e aplicada nos estudos (uma
maneira de ser respeitada e manter os homens afastados), À tarde tinha em casa
apenas a companhia dos livros e da empregada.
Certa manhã, ao sair para a escola, só na rua percebeu que ainda estava muito escuro, quase noite. Prosseguiu,
enfrentando a madrugada. A caminho do ponto, viu na rua dois rapazes que
andavam em sentido oposto ao seu. Procurou manter o ritmo e a calma, eles
passariam por ela e continuariam naquela direção, distanciando-se. Avançou, procurando não olhar para eles, nem
demonstrar medo. Mas o que se seguiu não teve explicação. "(...) foram
quatro mãos que não sabiam o que queriam,
quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que
ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou
paralisada".
Na fuga os sapatos dos dois rapazes fizeram um barulho louco
que soou por algum tempo na sua cabeça. Ela premiu-se contra o muro, ficou ali impossibilitada de qualquer ação, até que, lentamente, começou a mover-se, catar os
seus livros e cadernos, e neles via a sua antiga caligrafia. Ela era outra.
Dirigiu-se à escola, onde chegou com
duas horas de atraso.
Não falou a ninguém sobre o que ocorrera.
No banheiro, gritou: "estou sozinha no mundo!".
Em casa, durante o jantar, reivindicou:" Preciso de
sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto
de madeira, chama muita atenção ao que lhe responderam: "Você não é uma mulher e todo salto
é de madeira."
Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber
por que processo, do ser preciosa.
"Os laços de família"
Depois de duas semanas de visita, Catarina levava a sua mãe para a estação, onde a senhora tomaria
o trem e se despediria da filha. Elas estão no táxi. Catarina recorda-se
do desconforto causado pela breve convivência entre a sua mãe e o seu marido. O
genro e a sogra mal se suportavam. Mas, na hora da partida, ambos encheram-se
de generosidade e delicadeza. Catarina tinha vontade de rir. Ria então pelos olhos, como
permitia seu estrabismo.
A mãe desta jovem mulher
chamava-se Severina, A severa mãe, em tom de desafio e acusação, lembrava o quanto o menino, seu neto, estava magro. Magro e
nervoso." Catarina concordava, paciente. Antônio, esposo de Catarina e pai do menino nervoso, certa noite irritou-se
profundamente com tais observações da sogra.
De repente, uma freada do carro lançou as duas mulheres uma
contra a outra, provocando entre elas uma brusca intimidade de corpos já esquecida. Era como se
lhes acontecesse um desastre, uma catástrofe irremediável. Não esqueci nada?",
perguntava Severina pela terceira vez. Elas evitaram olhar-se até a estação. Catarina nunca fora
de muitos carinhos e intimidades com a mãe. Fora, sim, uma filha muito próxima, muito achegada ao pai, cheia de beijos, abraços, cumplicidade.
Dentro do trem, como elas não tivessem o que dizer, a mãe retirou um espelho da bolsa, examinando a sua aparência.
Quando a campainha da estação tocou, mãe e filha se olharam
assustadas, chamando uma pela outra. Parecia que, todos aqueles anos, elas se
tinham esquecido de dizer algo, como: "sou
tua mãe, Catarina. E ela
deveria ter respondido: e eu sou tua filha". Mas não o disseram,
fizeram-se recomendações. Mandaram lembranças para os parentes, e
o trem se foi. Agora, sem a mãe, Catarina recuperava o seu modo firme de andar. Caminhar sozinha era mais
fácil, nada a impediria
de subir mais um degrau misterioso nos seus dias.
Catarina voltou para casa "disposta a usufruir da
largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no
peito." Encontrou o marido na sala, lendo os jornais de sábado, o seu dia tomado
de volta com a partida da sogra. O menino magro e nervoso estava no quarto,
distraído... Procurando chamar
a atenção do filho, a mãe sacudia uma toalha na
sua frente. Foi quando, pela primeira vez, o menino lhe disse: 'Mamãe', sem nada pedir, e
num tom diferente do que usava antes.
Alguma coisa se quebrara entre eles e Catarina estava
extasiada, O seu corpo inteiro riu, não só os olhos. Tomou o seu
filho pela mão e saíram para um passeio,
deixando Antônio atônito na sala, sem saber
aonde iam O homem dirigiu-se a janela e viu, já na calçada, a mulher e o
filho.
Ele olhava pela janela, a mulher andando depressa com o filho.
Sentia-se frustrado, ela tomava sozinha o seu momento de alegria. Decidiu que
depois do jantar iriam ao cinema. Depois do cinema, seria noite. E "este
dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador".
Começos de uma fortuna
Artur é um garoto obcecado por dinheiro. O conto gira em torno das suas preocupações em como ganhá-lo: dai, a presença de palavras como
mesada e frases como: "logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se
perde dinheiro" ou "basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.
Indo ao cinema com o seu colega Carlinhos, com Glorinha e uma
amiga desta, Artur se mostra menos preocupado em divertir-se do que em imaginar
se está sendo explorado ou não. De certo modo,
Carlinhos é o oposto de Artur:
acredita que dinheiro existe para ser gasto, preocupando-se menos em ganhá-lo do que em ganhar
uma garota. Já Artur não pretende tomar
quantias emprestadas (para não ter de devolvê-las), não planeja empregá-las em coisas. No
entanto, ele se vê obrigado a fazer um
empréstimo com Carlinhos,
uma vez que não tem como pagar a
entrada de cinema para Glorinha.
O crime do professor de matemática
Era domingo, os católicos dirigiam-se à igreja. Um homem os
observava da colina mais alta da chapada. Carregava um saco pesado na mão e, nas costas, a
culpa de um dia ter abandonado um cão com o qual tinha uma relação de afeto. De dentro do saco o senhor retirou um cachorro morto. Era-lhe
desconhecido, sentou-se ao seu lado e observou, solitário, a paisagem ao
redor, a chapada deserta com a sua única árvore. Do saco tirou
uma pá e começou a pensar onde
enterraria o defunto. Talvez rio centro da chapada, lugar em que ele mesmo
gostaria de ser enterrado. Diante da dificuldade de determinar a exata posição do centro da chapada,
resolveu enterrá-lo ali mesmo,
precisamente embaixo dos seus pés. Pegou a pá e pôs-se a cavar.
O crime do professor de matemática não consistia em ter
matado o cão desconhecido.
Encontrara-o já morto, numa esquina, e surpreendera-se com a ideia de enterrá-lo. O corpo do cão representava para ele
o cão verdadeiro, o que
abandonou ao mudar-se com a família de uma cidade para aquela em que agora vivia. Enfim, o professor
enterrou o cão, bem à superfície, para que não perdesse a
sensibilidade. Para o homem, esse ato era a maneira que achara de redimir-se do
seu pecado, de punir-se do seu crime com o outro cão, o abandonado.
Sentindo-se finalmente livre, o homem pôs-se a pensar no
verdadeiro cão, como quem pensasse
na verdadeira vida, Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias a tua", pensou com saudades. "Dei-te o nome de José para te dar um nome que
te servisse ao mesmo tempo de alma, (...) Quanto me amaste mais do que te amei.
Refletindo a relação que estabelecera com o cão, o homem revelará aos poucos os motivos que
tornaram impossível a convivência entre ambos:
"E, abanando tranquilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te
dera. (...) Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e
de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar.
Era o ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que entendêssemos. Minha
ferocidade e a tua não deveriam se trocar
por doçura: era isso que pouco
a pouco me ensinavas, e era isso também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias demais. De ti mesmo exigias que fosses um cão. De mim exigias que
eu fosse um homem."
A cabeça matemática e fria do homem
pouco a pouco entendeu que o que fizera ao cão era impune e definitivo, pois "não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as
profundas traições".
O professor, então, passou a olhar a cova onde havia enterrado sua "fraqueza e sua condição, e era como se
"José, o cão abandonado, exigisse
dele (...) num último arranco, que
fosse um homem e como homem assumisse o seu crime.
O professor não queria mais se sentir livre de seu crime, não seria nunca um homem se abandonasse tão facilmente também sua culpa. "Agora,
mas matemático ainda, procurava
um meio de não se ter punido."
O homem, lentamente, desenterrou o cachorro desconhecido e renovou o seu crime
para sempre, transformando em um verdadeiro homem, o professor desceu a
chapada.
O búfalo
"Eu te odeio" disse a mulher, muito depressa, a um
homem que não a amava. Mas a mulher
só sabia amar e perdoar, e
'se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida'. Então, numa tarde de primavera, ela visitou o jardim zoológico em busca de um
animal que lhe ensinasse a odiar.
Encontrara amor nos leões, na girafa, nos macacos. O camelo fizera-lhe topar com a paciência e a poeira. Só a última, e a sua aridez,
a interessava. A aridez e não mais as lágrimas. Onde estaria o
bicho que lhe daria o sentimento que procurava? Com a sua violência, sozinha, foi para
a 'fila dos namorados", esperando a sua vez de entrar no carrinho da
montanha russa. Depois de ser sacudida no ar como uma boneca, saiu pálida, como se fora
"jogada fora de uma igreja".
Voltou a andar, procurando o animal e o ódio. Encontrou o búfalo, que a espiava ao
longe.
Ele era negro e seus cornos muito alvos. A mulher ficou
desconfiada, parecia que o búfalo a olhava. Ela desviou os olhos, o seu coração batia descompassado.
"O búfalo deu uma volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto
todo doeu um pouco. (...) Uma coisa branca espalhara-se dentro dela (...). A
morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo e longo suspiro ela voltou à tona. Não sabia onde estivera.
Estava de pé, muito débil, emergida daquela
coisa branca e remota onde estivera."
O animal agora lhe parecia mais negro e maior. Começou a provocá-lo, gritando e jogando-lhe
pedras. O ódio, como um fio de
"sangue negro', como gotas de "óleo amargo" começou a pingar dentro dela, "fêmea desprezada". O búfalo voltou-se para ela e encarou-a de longe.
"Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo
grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse
implorando amor ao búfalo".
O búfalo, provocado,
aproximou-se lentamente. "Ele se aproximava, a poeira erguia-se".
Como a mulher não recuava um só passo, os seus olhos e
os do animal fitaram-se diretamente. "Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava. O olhar
a mantinha presa "ao mútuo assassinato, como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto
escorregava enfeitiçada ao longo das
grades. Em tão lenta vertigem que
antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo".
Características dos
contos de Clarice Lispector
Pertencente ao circuito literário nacional dos idos de 1945,
Clarice recebeu influência direta do romance psicológico e do chamado fluxo de
consciência (stream of consciouness) presente na literatura irlandesa desde a
publicação de Ulisses de James Joyce.
O forte apelo intimista e a miríade de imagens desencadeadas
em seus angustiantes textos revelam a própria condição de solidão do homem no
mundo.
Há um aspecto a ser levantado nas personagens criadas por ela:
usualmente são moças, velhas, casadas, solteiras, enfim, mulheres e sua
realidade social e pessoal deflagradas sob o olhar hipnotizante e martirizador
de Clarice
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