"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Vocações

Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. Só que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi pára ver se estava com febre. Só na segunda é que foi carinho. Ia porque ia ser médica. Só tinha uma coisa: não podia ver sangue.
— Mas Leninha, como é que…
— Deixa que eu me arranjo.
Não que ela tivesse nojo de sangue… desmaiava. Não podia ver carne mal passada. Ou Ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la. Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la — era o instinto medico —, mas botava o curativo com o rosto virado.
— Acertei? Acertei?
— Acertou o joelho. Só que é na outra perna.
Mas fez vestibular para medicina, passou e preparou-se para começar o curso.
— E as aulas de anatomia, Leninha? E os cadáveres?
— Deixa que eu me arranjo.
Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário. Quando abrissemum cadáver, fecharia os olhos. A Olga descreveria tudo para ela.
— Agora estão tirando o fígado. Tem uma cor meio…
— Por favor, sem detalhes…
Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue.
Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados.
— É concentração professor...
Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar a convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas.
— Mais pra esquerda… Aí agora corta!
Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou sua alma gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque, puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso.
— Algum problema? — perguntou, pronta para medicá-lo.
— Não — tentou sorrir o homem. — É o avião.
— Você tem medo de voar?
— Pavor. Sempre tive.
— Então porque voa?
— Na minha profissão, é preciso.
— Qual é a sua profissão?
— Piloto.
Casaram-se uma semana depois.
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VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mãe de Freud. Círculo de Livro, 1985.

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