"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

sábado, 7 de dezembro de 2013

A ponte e a crase


O poeta Ferreira Gullar um dia me disse que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”. Não sei de quem é a frase — talvez seja do próprio Gullar —, mas é lapidar. A crase talvez não humilhe, mas causa embaraços. A coisa começa na confusão entre o nome do acento que indica a crase e a própria crase. Vamos por partes. O acento que aparece em “à”, “às”, por exemplo, chama-se grave.
O acento é grave. Crase é o nome do fenômeno. Crase vem do grego e significa fusão, mistura. De qualquer coisa com qualquer coisa. O dicionário Aurélio diz que a palavra é empregada em linguagem médica, para indicar “mistura, equilíbrio das partes constitutivas dos líquidos orgânicos”. Em gramática, quando se fala de crase, fala-se da fusão de duas vogais iguais.
No português moderno, em 99% dos casos, a crase se restringe à fusão da preposição “a” com o artigo “a”. É o que ocorre em “O livro pertence à diretora”, por exemplo. O verbo pertencer rege a preposição “a”. Se uma coisa pertence, pertence a alguém. Esse “a” se funde com o artigo feminino “a”, exigido pelo substantivo feminino “diretora”. Pois bem. A fusão dessas vogais (a+a) é representada pelo acento grave a+a=à.
Tome cuidado com a pronúncia, com a leitura. Muita gente, quase sempre com a melhor das intenções, espicha esse “a” na leitura: “O livro pertence aa diretora”. Mais caprichosos, alguns exageram e ficam uma semana com o “à” na boca (pertence aaaaaa diretora). Nada disso. Lê-se esse “a” como se lê “a” ou “há”. Na boca o som é o mesmo.
E que relação a crase tem com a ponte? Você já deve ter visto na televisão uma propaganda da TAM, que termina com a seguinte frase: “A ponte que liga (ou “une” — não me lembro) preço à qualidade”. Que tal o acento grave? Pense comigo. Parece que a ponte liga (ou une) x a y. Quem são x e y?Preço e qualidade, dois substantivos, isto é, duas palavras de mesma natureza.
Existe em língua um processo chamado simetria, paralelismo. Ou se coloca artigo para os dois substantivos, ou não se coloca nenhum. Ao empregar o acento grave antes de “qualidade”, o redator fundiu preposição e artigo, ou seja, empregou o artigo para “qualidade”. E onde está o artigo para “preço”? O gato comeu.
Moral da história: “A ponte que une o preço à qualidade”. Ou “A ponte que une preço a qualidade”. É isso.


“Inculta & Bela”, Pasquale Cipro Neto.
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