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Recebi recentemente uma carta interessante de um leitor, da qual transcrevo parte, como motivo deste artigo.
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“Professor Ernani. Seu manifesto pela simplificação ortográfica atende em cheio minhas próprias aspirações, entretanto ouvi recentemente um argumento contra essa simplificação, que a comparava à devastação de um sítio arqueológico para a construção de um centro comercial. Baseava-se na opinião de que a língua é uma espécie de grande depósito arqueológico de momentos passados da cultura de um povo e que seus detalhes e especificidades são testemunhos vivos de sua história.
Partindo dessa analogia, é bom lembrar que tanto o arqueológico como o comercial são fatores importantes e não excludentes socialmente. Talvez a comparação mais apropriada seja a construção de um centro comercial por cima ou ao lado de um sítio arqueológico, preservado integralmente e servido de uma passagem aberta e sinalizada para permitir-lhe acesso, visitação e estudo, isso porque a mudança na escrita de uma palavra não impede a pesquisa de sua origem e história. Eis alguns exemplos:
É do século XV a seguinte redação “Começo este liuro nom como author e achador das cousas em elle contheudas…”, que hoje, reescrevendo-se cada palavra, resulta em “Começo este livro, não como autor e achador das coisas nele contidas”. Note-se que livro se escrevia com U, autor com TH, coisas com U, elle com L duplo e, decorridos 600 anos, é possível entender o texto e o considerarmos como um “depósito arqueológico”, estudando a cultura da língua a partir da observação de seus “detalhes e especificidades”, conforme a crítica que chegou ao Roberto e ele gentilmente nos passou. O estudioso que for pesquisar a etimologia da palavra autor, encontrará três momentos distintos (author > auctor > autor) e poderá debruçar-se sobre as circunstâncias e a filosofia geradora dessas modificações.
Do século XIX, a frase “O poder dos reys hespanhoes eh muito mais immovel que as instituiçoens da monarchia” é hoje grafada assim “O poder dos reis espanhóis é muito mais imóvel que as instituições da monarquia”, maneira de escrever em que se percebem razoáveis diferenças: reis se escrevia com Y; espanhóis, com H inicial e E final; é tinha H e não acento agudo; imóveis apresentava M duplo; instituições recebia N após o E em vez de til sobre o O; e monarquia se registrava com CH. O fato de se haver modificado a grafia não impede o estudo da origem, da história, das transformações culturais da língua portuguesa, ao contrário, torna-se uma passagem pela qual se pode realizar esse estudo. Se a grafia da palavra monarquia evoluir para monarkia, não se perde o fio da gramática ou linguística histórica (monarchia > monarquia > monarkia), ao contrário, cria-se outro testemunho para o pesquisador.
Cabe aqui lembrar que, apenas no século passado, de 1911 a 1990, a grafia do Português sofreu nove mudanças e nem por isso se apagaram os traços do passado, por um motivo muito simples: a grafia constitui apenas uma convenção temporária para representar as palavras da língua e cada reforma ortográfica é prova de um estágio cultural, que pode ser considerado do ponto de vista sociolinguístico, psicolinguístico etc. É possível pensar em todas as reformas feitas até hoje como testemunhos enriquecedores da história da nossa língua, o que invalida plenamente o argumento contrário.
Para além de todos esses aspectos, o mais importante da reforma que propomos sedia-se no fato de que será a primeira reforma ortográfica a abolir, a falta de pesquisa, a superficialidade, a improvisação, a ilogicidade, o ditatorialismo e muitos outros fatores negativos que se encontram incrustados, embutidos em todas as experiências ortográficas que tivemos até hoje, responsáveis pelo analfabetismo crônico de todos os lusófonos, no sentido próprio da palavra analfabeto, o de “quem não sabe usar as letras”, pois todos sofremos da necessidade de consultar dicionário para escrever esta ou aquela palavra.
A ortografia que queremos e estamos conquistando para o nosso atualíssimo século XXI deve ser baseada em pesquisa séria e profunda e deve adequar-se à lógica racional e universal, instrumento necessário às atuais técnicas do ensino-aprendizagem, visando a nos libertar da escravidão ao dicionário na hora de escrever e revelando para os pesquisadores do futuro o quanto o nosso século evoluiu e se distanciou de todos os anteriores em termos também ortográficos, sendo o primeiro a expurgar a grafia anacrônica e medieval até hoje a nós imposta e que dificulta a inserção de todo nosso povo no mundo alfabetizado. Conheça mais no www.acordarmelhor.com.br
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Ernani Pimentel
Professor, pesquisador, gramático, conferencista, presidente da Vestcon.
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