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A Unicamp (Universidade de Campinas) é reconhecida no país por muitos de seus méritos. E, a bem da verdade, a Unicamp começa bem já no vestibular. Muitas das questões ― é pena que não sejam todas ― são interessantes, inteligentes, de ótimo nível.
O vestibular dessa importante escola começou em 1987. Nesse ano, justamente a primeira questão da prova de português pedia ao aluno que indicasse as marcas típicas da oralidade, ou seja, da língua falada, presentes no discurso de um engenheiro eletrônico. Tratava-se de uma entrevista concedida por ele a um jornal. Disse o engenheiro: “Os grandes problemas, você deve ter um desenvolvimento tecnológico local”.
A questão pedia que o aluno reescrevesse a frase, adequando-a “à língua escrita culta”. De imediato, chama a atenção a falta de conexão. A expressão “os grandes problemas” parece atirada, jogada, perdida. Falta verbo, falta algo que una essa expressão ao resto da frase. Talvez algo como “Para resolver os grandes problemas, você...”. Epa! Você? Quem é você? Até prova em contrário, você é a pessoa com quem estou conversando.
Você é meu interlocutor. E esse “você” da resposta do engenheiro parece muito pouco para a dimensão ― nacional ― do pensamento. “Para resolver os grandes problemas, é preciso desenvolvimento tecnológico local”. Ou: “A solução dos grandes problemas exige desenvolvimento tecnológico local”. Ou ainda: “Para a solução dos grandes problemas, exige-se desenvolvimento tecnológico local”. Percebeu? O “você” do engenheiro não era a pessoa com quem ele conversava. E é aí que quero chegar. É cada vez mais freqüente, na linguagem oral, o uso da palavra “você” com valor genérico.
Dia desses, ouvi famoso jogador de futebol dizer que “quando você bate na bola com o lado de fora do pé...”. Ouvi também uma mulher dizer a um repórter ― repito: um repórter, homem, do sexo masculino ― que “quando você está grávida...”. O repórter fez cara de espanto, com os olhos arregalados, como que a perguntar: “Eu? Grávida?”.
Numa corrida do Grande Prêmio de Fórmula 1, o locutor Galvão Bueno, enquanto explicava o regulamento, dizia que “quando você deixa o carro morrer na largada, deve ir para o fim da fila”. Como houve duas ameaças de largada, Galvão disse pelo menos duas vezes que “quando você...”. O problema é que Galvão não estava conversando com os pilotos, e sim com o telespectador, que não deixa carro morrer na largada, por uma razão muito simples: não participa de corridas.
Pelo menos na linguagem formal, culta, é bastante desejável a eliminação desse cacoete. É cansativo, pobre e enfadonho o uso da palavra “você” como indicador de algo genérico, coletivo. No caso da corrida, bastaria dizer que “quando se deixa o carro morrer na largada, deve-se ir para o fim da fila”. ― Também se poderia dizer que “quando o piloto deixa o carro morrer na largada, deve ir para o fim da fila”.
O saudoso governador de São Paulo, Mário Covas, é outro que abusava do bendito você que não é você. Vi-o em várias entrevistas ― antes e depois das campanhas ―, repetindo à exaustão que “quando você investe bem o dinheiro do povo”, “quando você aplica no social”, “quando você faz o que realmente é necessário para o povo”, “quando você...”. Vamos quebrar a monotonia: “Quando se investe bem o dinheiro do povo” (ou “Quando o governo/os governantes investe/investem bem o dinheiro do povo”); “Quando se aplica no social” (ou “Quando o governo/os governantes aplica/aplicam no social”); “Quando se faz o que realmente é necessário para o povo” (ou “Quando o governo/os governantes faz/fazem o que realmente é necessário para o povo”).
Uma ex-aluna esteve na Austrália, para estudar. Lá ficou alguns meses. Viciada em você, traduzia essa história de “você” ao pé da letra. A todo instante, dizia “When you...” (“Quando você”, em inglês). Diz ela que as pessoas se assustavam. Punham a mão no peito e diziam ― em inglês, é claro: ― Eu, não!”. No começo, minha ex-aluna não entendia o porquê da reação. Não demorou muito para perceber.
Talvez haja uma explicação sociolinguística ou psicolinguística para o sumiço dos indicadores genéricos da nossa linguagem oral. Será que não é, mais uma vez, porque o brasileiro tem pavor do que é coletivo, genérico, ou seja, tudo no Brasil precisa ser individual, personalizado? Quem sabe. Os antropólogos também podem meter a colher. Aceitam-se sugestões. E lá vai uma, mais do que urgente: pelo menos em situações formais ― sobretudo na escrita ―, pare com esse cacoete de usar você que não é você.
Até a próxima. Um forte abraço.
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Pasquale Cipro Neto
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