Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava perto do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Mar Português
"Ó mar salgado, quanto do teu sal
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Nesta análise do poema Ismália, de 5 estrofes com 4 versos cada, com rimas alternadas, uma leitura possível sugere que a personagem-título enlouquece e se suicida, enquanto que a estruturação nos remete para um aspecto gráfico-formal, observamos que nas primeiras 4 estrofes, sempre nos versos 3 e 4 , um verbo que se repete: viu/viu; queria/queria; estava/estava; queria/queria. A repetição serve para reforçar idéias contrastantes, já que em cada um desses versos está presente um substantivo, um verbo, um complemento que exprime oposição: céu/mar; subir/descer; perto/longe; subiu/desceu. Destes, a oposição céu/mar é constante nas 5 estrofes.
Na primeira estrofe, o poema narra o enlouquecimento de Ismália que, à janela da torre, viu a lua a espelhar-se no mar ("Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar"). Na segunda estrofe, a loucura ("sonho") leva-a a debruçar-se mais para fora da janela ("Banhou-se toda em luar") e ter desejos conflitantes - a lua do céu e a lua do mar, como se estivesse entre duas escolhas. Na 3ª estrofe, já delirando ("no desvario seu") ela começa a cantar; na 4ª, é sugerido que Ismália estendeu os braços para 'voar' ("... como um anjo pendeu/ As asas..."); na 5ª e última estrofe, a imagem torna-se ambígua: as "asas" dadas por Deus são seus braços, ou se referem à alma que voou para o céu?
A "loucura" de Ismália é também comparada a um sonho: "No sonho em que se perdeu". A 'loucura' é assim vista de forma poética, não agressiva, e nem necessariamente negativa: aproximando "loucura" e "sonho", o poeta pode estar sugerindo que a loucura é um estado fora do ordinário, do comum da vida, como é o estado do sonho. Sonhamos dormindo, ou mesmo acordados, quando imaginamos alguma coisa ou situação.
Considerando que estas análises apenas sugerem possibilidades entre tantas leituras que se façam deste primoroso poema, a questão da intertextualidade entre este e outros textos também pode ser amplamente explorada, e então se tem início ao fantástico e infindável horizonte que se abre no universo literário e que nos permite imaginar, por exemplo, a inadjetivável aproximação da grandiosidade da criação de Alphonsus de Guimaraens com a fascinante obra do genial Fernando Pessoa.
O mar, com que Guimaraens encerra cada estrofe de seu poema, pode ser comparado com o mar dos versos de “Mar Português, com que Fernando Pessoa engrandeceu os feitos dos navegadores portugueses no grande Poema épico “Mensagem” que narra toda a trajetória de Portugal, que antes só tinha acontecido nos textos camonianos.
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