"Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles".

domingo, 3 de maio de 2009

Intertextualizando Guimaraens e Pessoa

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava perto do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
(Alphonsus de Guimarães)


Mar Português

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu"
(Fernando Pessoa)

Nesta análise do poema Ismália, de 5 estrofes com 4 versos cada, com rimas alternadas, uma leitura possível sugere que a personagem-título enlouquece e se suicida, enquanto que a estruturação nos remete para um aspecto gráfico-formal, observamos que nas primeiras 4 estrofes, sempre nos versos 3 e 4 , um verbo que se repete: viu/viu; queria/queria; estava/estava; queria/queria. A repetição serve para reforçar idéias contrastantes, já que em cada um desses versos está presente um substantivo, um verbo, um complemento que exprime oposição: céu/mar; subir/descer; perto/longe; subiu/desceu. Destes, a oposição céu/mar é constante nas 5 estrofes.
Na primeira estrofe, o poema narra o enlouquecimento de Ismália que, à janela da torre, viu a lua a espelhar-se no mar ("Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar"). Na segunda estrofe, a loucura ("sonho") leva-a a debruçar-se mais para fora da janela ("Banhou-se toda em luar") e ter desejos conflitantes - a lua do céu e a lua do mar, como se estivesse entre duas escolhas. Na 3ª estrofe, já delirando ("no desvario seu") ela começa a cantar; na 4ª, é sugerido que Ismália estendeu os braços para 'voar' ("... como um anjo pendeu/ As asas..."); na 5ª e última estrofe, a imagem torna-se ambígua: as "asas" dadas por Deus são seus braços, ou se referem à alma que voou para o céu?
A "loucura" de Ismália é também comparada a um sonho: "No sonho em que se perdeu". A 'loucura' é assim vista de forma poética, não agressiva, e nem necessariamente negativa: aproximando "loucura" e "sonho", o poeta pode estar sugerindo que a loucura é um estado fora do ordinário, do comum da vida, como é o estado do sonho. Sonhamos dormindo, ou mesmo acordados, quando imaginamos alguma coisa ou situação.
Considerando que estas análises apenas sugerem possibilidades entre tantas leituras que se façam deste primoroso poema, a questão da intertextualidade entre este e outros textos também pode ser amplamente explorada, e então se tem início ao fantástico e infindável horizonte que se abre no universo literário e que nos permite imaginar, por exemplo, a inadjetivável aproximação da grandiosidade da criação de Alphonsus de Guimaraens com a fascinante obra do genial Fernando Pessoa.
O mar, com que Guimaraens encerra cada estrofe de seu poema, pode ser comparado com o mar dos versos de “Mar Português, com que Fernando Pessoa engrandeceu os feitos dos navegadores portugueses no grande Poema épico “Mensagem” que narra toda a trajetória de Portugal, que antes só tinha acontecido nos textos camonianos.
É o mar, agente supremo de toda a essência portuguesa, que em Guimaraens representa o reflexo do céu e a dimensão de profundidade e distanciamento próprios daqueles cuja insanidade volteia, em Fernando Pessoa representa o medo e o desafio que os lusitanos precisaram superar para solidificar os alicerces da nação.
Uma leitura do texto pessoano sugere que o mar poderia ter sido doce e que ficou salgado com as lágrimas do povo português. Talvez fosse para imortalizar o lado doloroso e trágico dos heróis portugueses que o poeta escreveu “quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”. Se com Guimaraens o mar alcança a sublimação da busca pela liberdade semelhante à ascensão aos céus, em Pessoa é a valorização dos sentimentos de um povo, é a cor, o sabor. Se com um representa o delírio que antecede a morte, com o outro é a imortalidade.


Análises: Prof. Juarez Firmino

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